A luta continua - Gazeta Esportiva
Tiago Salazar
São Paulo
11/29/2018 06:00:08
 

A saudade, a revolta e a maneira como encarar a perda de um ente próximo e querido são particularidades de cada indivíduo. No aniversário de dois anos do lamentável acidente que envolveu o elenco da Chapecoense e vitimou 71 pessoas, Mara Paiva, viúva do ex-jogador e comentarista Mário Sérgio, conta à Gazeta Esportiva como ainda tenta superar o trauma causado pela queda da aeronave Avro Regional Jet 85 da LaMia.

“No meu caso, a única diferença é que antes eu chorava todos os dias e agora choro uma vez por semana. Com o passar do tempo, a ferida, ela não cicatriza, mas vai (…) A gente vai se acostumando a lidar com a dor”, explica, buscando as palavras. “Acabamos criando uma rotina diferente”.

“Por exemplo, eu procuro ver bastante as minhas netas, porque antes nós combinávamos jantares em família, tínhamos esses jantares periódicos. Hoje não temos essa formalidade. Ficou informal justamente para mudar o modelo. Tenho neto no Rio de Janeiro, vejo menos, tenho duas netas que moram aqui em São Paulo, procuro estar mais presente, sem necessariamente ter uma situação formal”, diz, diante de uma fase de adaptação que não parece ter prazo para se encerrar.

“As coisas que eu costumava fazer com o Mário: a gente corria junto, ia para o clube… Acabei criando uma outra rotina. Comecei a ir em horários que não ia com ele, para dar uma quebrada nisso, porque essa falta é muito complicada, pesadíssima”.

Esquecer aquele que esteve ao seu lado por 22 anos, porém, está fora de cogitação. O sofrimento é inevitável e Mara ainda conta com seu eterno parceiro para tocar a vida como ela é. As lágrimas também são companhias nesse momento de provação.

“Nunca tomamos uma decisão sozinhos. Sempre falei com ele e ele comigo. Quando um falava é porque já tinha conversado com o outro”, lembra. “Agora, eu fico imaginando como é que ele se portaria em cada situação. Como se ele tivesse….”. Uma pausa para respirar se faz necessária, mas Mara continua, já com a voz embargada.

“Depois de anos de intensa convivência, a gente já sabe (como o companheiro pensa). Quando eu não sei o que fazer, uma noite de sono é o suficiente. Acordo no dia seguinte com a resposta pronta. E vai ser assim a vida toda. É uma dor que dói até o osso”, conclui.

Relembre o especial produzido pela Gazeta Esportiva:
“Deus usou o Follmann para salvar minha vida”
“Quero voltar a voar”
“Da UTI programei meu retorno”
“Meu marido não queria viajar”
“Tudo que é possível a Chapecoense fez”
“A gente nasce sem nada e morre sem levar nada”
Ídolo arregaça as mangas
Muita saudade e nenhuma solução

Mara Paiva se torna uma mulher comum, vulnerável como qualquer outra pessoa poderia estar mediante a tanta dor. Que os olhos marejados, no entanto, não enganem a quem imagina uma fraqueza postural. Não a toa a convivência com Mário Sérgio foi tão intensa e bem relacionada. O jeito turrão, perseverante e sincero do ex-jogador e comentarista são incorporados por Mara, firme até hoje na luta pelo resguardo dos direitos das famílias das vítimas da tragédia de 29 de novembro de 2016.

Vice-presidente da AFAV-C (Associação dos Familiares e Amigos das Vítimas do Voo da Chapecoense), Mara atualiza os progressos conquistados nesses dois anos, desde que a luta contra grandes instituições começou. Os acessos são cada vez mais restritos, mas as possibilidades se abriram com novos documentos em mãos. O tempo para entrar com ação judicial, por exemplo, se expiraria nessa quinta, mas um movimento nesse sentido já foi feito.

“Entramos com ação solicitando a prorrogação desse prazo. Na verdade não é uma ação. É um protesto”, explica, no instante que o tom de voz retoma sua firmeza costumeira.

“Não tínhamos documentos. Agora conseguimos documentos. Contratamos um expert em seguro, quem paga é a Chapecoense, um atuário. Especialista em seguro com a visão corporativa. Ele está passando o pente fino, são mais de 6 mil páginas de e-mails e documentos”.

“Nós viajamos para Miami atrás de informações e documentos, para a Bolívia, duas vezes, para a Colômbia, fizemos visitas a esses órgãos, fizemos apelo, colocamos as situações das famílias, que a seguradora está negando o pagamento, porque a companhia aérea não tinha seguro. Era uma companhia meia-boca, já vinha com problemas, atuando de uma forma perigosa”, comenta.

O estreitamento com o clube catarinense se deu após alguns conflitos. A Fundação Vida foi criada com membros da Chape e da AFAV-C para consumar essa união, aparentemente, interessante para ambas as partes.


“Agora, eles estão ajudando a gente. Eles que estão bancando essas viagens. A gente manteve essa associação por um ano. Eles entenderam que precisam nos ajudar”, comemora. “Essa fundação vai ter objetivo de contar com ajuda da iniciativa privada, para levantar fundos. Isso (o processo) vai demorar de cinco a 10 anos”, reforça. “E também para dar uma força para as famílias. As contas chegam diariamente, as crianças precisam estudar, vivemos em um país que precisamos de assistência médica, os nossos maridos tinham esse objetivo, trabalhavam para manter as famílias”.

Ao lado de Fabienne Belle, presidente da AFAV-C e viúva de Cesinha, ex-fisiologista da Chapecoense, Mara Paiva aproveita para esclarecer as maiores divergências e cobranças das famílias sobre o tema.

“Na Colômbia é uma ação contra a Aerocivil (Aeronáutica Civil da Colômbia), porque, se o avião não tinha seguro, como a Colômbia teve acesso a documentação e permitiu que ele decolasse? Ele não tinha permissão para sobrevoar a Colômbia”, aponta.

“Havia uma cláusula de exclusão territorial. A aeronave não poderia ir para a Colômbia, e era justamente o destino final. Entramos (com a ação) solicitando o seguro. Não é contra o governo, é contra a Aerocivil. Estamos pedindo esse seguro”, reitera, entre a confiança e o receio pelo o que vem à frente.

Os números da tragédia e os sobreviventes

“Estamos em um ano eleitoral, houve dança de cadeiras, não sabemos mais para quem apelar. Infelizmente, envolveu Colômbia e Bolívia, países que estão piores que o Brasil. Foi uma falta de sorte. Isso não deveria ter acontecido, em lugar nenhum, mas aconteceu em países inertes. E aqui contamos com ano eleitoral. Nós vamos continuar apelando, pedindo, contando com a generosidade, boa vontade. Agora é momento de aguardar”.

A seguradora da LaMia, a boliviana Bisa, segue se recusando não só a pagar o seguro, como também agora não abre as portas sequer para negociações com a AFAV-C. Para piorar o cenário, a Chapecoense passará por um pleito eleitoral para escolher seu novo presidente no mês que se aproxima, o que deixa muita gente, como Mara, aflita.

“Eu tenho (medo), embora nós tenhamos assinado um acordo de intenções. Isso é um compromisso assumido pela instituição, independente do gestor. Mesmo assim, a gente tem medo”, admite. Até mesmo o possível rebaixamento da Chapecoense no Campeonato Brasileiro assusta. “Se o time cair, não sei o que vai ser”.

O voo CP-2933 levaria 77 pessoas, entre jogadores, membros da comissão técnica, dirigentes, jornalistas, convidados e tripulação, de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, para o aeroporto José Maria Córdova, na Colômbia. A queda no município de La Unión só deixou seis sobreviventes.

Não faltaram manifestações de apoio e solidariedade desde então. Homenagens foram feitas pelo mundo todo. Mesmo assim, nessa cansativa luta por paz interior e direitos perante a justiça, Mara não mede as palavras.

“Tenho que agradecer a minha família, a paciência e carinho dos meus filhos, netos, noras, que quando começo eu choro, dizem que estão juntos. E a imprensa do Brasil. Só. Mais ninguém”.