“Meu marido não queria viajar” - Gazeta Esportiva
Tiago Salazar
São Paulo - SP
12/01/2017 09:00:29
 

Um beijo de despedida no aeroporto, uma última ligação com a promessa de um novo contato em breve, a ansiedade de sempre, mas a consciência da necessidade em aceitar uma rotina de trabalho. Tudo dentro da normalidade, até um inesperado telefonema no meio da madrugada. Assim como outras 69 famílias, Mara Paiva e Fabienne Belle tiveram o sono interrompido naquele 29 de novembro de 2016 para entrar de cabeça em um pesadelo que parece não ter fim. Há um ano da tragédia com a aeronave Avro Regional Jet 85 da LaMia, Mara, viúva do ex-jogador, técnico, dirigente e comentarista Mário Sérgio, e Fabienne, ex-esposa de Luiz César Martins Cunha, o Cezinha, então fisiologista do clube catarinense, estão unidas e decididas a lutar pelas famílias que perderam seus alicerces. Em meio a tanta burocracia, acabam também sendo ombro e ouvido uma da outra na tentativa em compreender uma dor que ainda castiga. À Gazeta Esportiva, presidente (Fabienne Belle) e vice-presidente (Mara Paiva), da AFAV-C (Associação dos Familiares e Amigos das Vítimas do Voo da Chapecoense) fazem revelações íntimas e de grande relevância para o andamento dos processos referentes ao acidente que chocou o mundo.

“Hoje, se eu falar para você que eu recomecei a minha vida, que eu me reconstruí, eu não estaria sendo sincera. Eu estou tocando a minha vida, porque ficaram muitas coisas pendentes”, diz Fabienne, obrigada a aceitar uma história de amor de 22 anos ser interrompida do dia para noite. “Nos primeiros dias, os primeiros meses, você não dorme, não se alimenta. Aí você começa a entender o que aconteceu e tenta recuperar pelo menos essa parte física, porque senão você entra em um espiral e não sai mais”.

Mara, no auge de seus 50 anos, ainda custa a crer. “Quando eu olho para dentro de mim eu vejo que não passou um ano. É como tivesse sido ontem ou hoje o acidente. Mas, muita coisa aconteceu. Me dou conta que já vivi um ano longe do meu marido, mas, ao mesmo tempo, internamente, é como se eu tivesse estado com ele ontem, é como se eu tivesse deixado ele ontem no aeroporto”.

A cordialidade quase esconde a dor que está ali o tempo todo. É perceptível. O clima na Vila Madalena contrasta chuva com raios de sol e, apesar da proximidade com os famosos bares do bairro paulistano ninguém consegue pensar em nada no hall de entrada do edifício em que Mara reside com o filho de 19 anos. Além dele, outros dois, já mais velhos, carregam o sangue de Mário Sérgio.

“Eu percebo nos meninos que esse impacto é muito grande. Eles ainda estão tentando se aprumar, ainda estão tentando, porque o Mario era uma figura muito forte dentro da casa. Ele era o esteio dentro de todos. Eu tinha um papel complementar, lógico, mas era o alicerce da família toda, da família Paiva”, explica, para em seguida lembrar também dos três netos.

Os familiares estão vulneráveis, é fato, não só Mara e Fabienne, mas o sofrimento não é mais forte do que a gana no desejo em honrar os que deixaram seus lares a trabalho e em buscar os direitos de cada um. Essa força é o que sustenta os anseios da AFAV-C.

“A dor que isso gerou em saber que eles perderam direito a vida foi uma coisa muito grande. Na verdade, foi uma grande tragédia e dessa grande tragédia nasceram outras tragédias, que são as tragédias das nossas vidas pela perda dos nossos maridos, dos nossos entes queridos. E isso não pode ficar impune. Essa necessidade veio diante desse fato. Se ninguém tivesse feito nada, isso passaria despercebido e cada família seguiria sua trajetória, sem a mínima satisfação”, explica Fabienne Belle, sem deixar que a voz mansa e abatida sobreponha sua confiança e postura firme.

Nesse momento, Mara interrompe. Claramente incomodada e inconformada, a mulher de Mário Sérgio não quer guardar consigo um sentimento que era do marido, à época escolhido pela emissora em que trabalhava para comentar o duelo de ida pelas finais da Copa Sul-Americana entre Nacional de Medellín e Chapecoense.

“Meu marido não queria viajar!”, crava. “Ele não queria viajar porque ele entendia que as informações que chegavam até nós por meio da emissora que ele trabalhava eram informações desencontradas. As pessoas que trabalhavam na emissora e que estavam no Rio de Janeiro e que participariam da viagem não sabiam como viriam a São Paulo, porque tudo ficou por conta do clube. Embora a emissora estivesse colocando seis profissionais dentro do avião, tudo ficou por conta do clube”, revela Mara, detalhando a angústia de Mário Sérgio poucos dias antes de embarcar no aeroporto de Guarulhos.

“Nos últimos dias do meu marido, ele estava muito intranquilo, muito insatisfeito, porque ele percebia que ia cobrir um evento de uma forma que não estava legal. Ele via a desorganização, ele via a falta de segurança de todos os envolvidos e, como ele era uma pessoa muito transparente, ele deixava isso claro”, reitera.

Essa indignação fez parte do sentimento que norteou a criação da AFAV-C. Hoje, os objetivos são muito claros para as cerca de 60 pessoas que estão vinculadas à Associação. “Buscar todos os direitos das famílias, os interesses e as causas do acidente, trazer os responsáveis para assumirem seus deveres com essas famílias. Nossa maior causa é essa”, avisa a presidente Fabienne Belle. Ela alerta ainda para um ponto que pode ter passado despercebido para o público em geral, principalmente na semana do acontecimento, e é algo que gera muita mágoa até hoje entre os familiares das vítimas.

“O que aconteceu é que logo após o acidente teve aquela comoção mundial e a Chapecoense começou a se apropriar do acidente, que é uma coisa que todo mundo entendia como a tragédia da Chapecoense. Existiram todas aquelas ajudas, o clube se viu também na necessidade de reconstruir o seu elenco. E as famílias foram deixadas de lado. Existiu todo esse processo realmente de abandono”, explica Fabienne, com a ajuda de Mara. “A gente precisava mostrar para as pessoas que a tragédia era a tragédias das famílias”.

“É o que a gente costuma dizer: goleiro, zagueiro, atacante, todos, técnico… As peças já foram repostas. Os comentaristas também já foram contratados outros, narrador também, repórteres, cinegrafista, enfim… Só que o pai do meu filho, o meu marido, o marido dela, o filho da outra senhora, eles não voltam nunca mais. Isso não tem reposição”, completa a vice-presidente da AFAV-C.

Demostrando muita cumplicidade, Fabienne e Mara parecem se conhecer há anos. O entrosamento é nítido e o fato de uma ter consciência da dor da outra torna tudo mais fácil e encurta o tempo para aproximação. Apesar de Mário Sérgio e Cezinha terem trabalhado juntos no São Caetano e no Grêmio no início dos anos 2000, quis o destino que ambas se conhecessem no pior momento após a maior tragédia esportiva da história.

Nada supera o instante do choque com a notícia das 71 mortes. Uma situação subsequente naquele cenário devastador, no entanto, causou mais dor em uma ferida aberta há tão pouco tempo. Se hoje a Chapecoense busca uma aproximação, e isso é confirmado pelas famílias, os primeiros contatos estiveram longe do ideal e dificilmente serão apagados.

“Vou ser bem direta: Logo após o acidente, um mês, um mês e meio após o acidente, as famílias que eram vinculadas à Chapecoense estiveram em Chapecó para uma reunião. E lá aconteceram coisas, assim, que me entristeceram demais, porque as pessoas não conseguiam enxergar que existiam ali não inimigos, e sim pessoas que tinham perdido tudo na vida. Eu perdi tudo. Eu perdi meu sonho, perdi meus projetos, e eles não conseguiam enxergar isso. Foram extremamente frios com relação a esse sentimento. E a forma como nós fomos tratados a partir daquele momento, como se nós fossemos um peso a ser carregado. E não ao contrário. Porque hoje quem carrega o peso do acidente sou eu, quem carrega o peso com aquele símbolo sou eu. É uma coisa que me deixou muito chocada, a falta de humanidade com que nós fomos tratados”, desabafa Fabienne Belle, com os olhos marejados.


Pouco mais de uma hora de conversa e impressiona como Fabienne e Mara se completam e demostram uma fragilidade já esperada ao mesmo tempo que passam contundência no discurso e no anseio em representar e auxiliar as pessoas que ficaram sem seus alicerces, como elas. Tudo isso, em segundos, desaparece quando as duas são convidadas não a responder qualquer questão, e sim a enviar um recado aos seus “amores”.

Antes de começar, Mara, que impressionantemente detém muito do jeitão de Mário Sérgio, se emociona. “O que eu diria é que nós somos almas-gêmeas, sempre fomos. Ele sabe disso. Eu estou cuidando do legado que ele deixou. Vou refazer minha vida, claro que vou, mas ele sabe que ele tem o lugar dele na minha vida e isso vai ser para sempre”.

Mais comedida, como sempre, também ao estilo do ex-marido Cezinha, Fabienne, não menos emocionada, fala com sorriso no rosto. “Eu falaria o que eu disse no dia que ele saiu para ir para o jogo do Palmeiras (em São Paulo, pelo Brasileirão), antes de seguir a viagem (para Colômbia): que nós estaríamos sempre juntos. Isso que eu falaria para ele, porque ele foi a pessoa mais leal que eu conheci. Uma pessoa muito íntegra, leal, muito dedicado à família, às coisas em que ele acreditava, à história de vida que ele construiu. Ele era a minha vida. O que nos unia era o amor e o cuidado que um tinha com o outro. Então, eu vou falar o que eu disse para ele, que nós sempre estaríamos juntos. E nós vamos sempre estar juntos. Todos os dias da minha vida, desde o dia do acidente, eu acordo, lembro dele, e assim vou seguindo a minha vida”.

Confira mais vídeos da entrevista com Fabienne Belle e Mara Paiva:
Capítulo 1 – Um ano da tragédia
Capítulo 2 – O primeiro abalo
Capítulo 3 – “Ele não queria viajar”
Capítulo 4 – Segurar a dor para agir
Capítulo 5 – Primeiro contato com o clube
Capítulo 6 – ABRAVIC: rival ou aliada?
Capítulo 7 – Um ano e… Nada
Capítulo 8 – Mágoas pessoais
Capítulo 9 – Mensagem a quem se foi

Aqui você confere, na íntegra, a entrevista exclusiva que Fabienne Belle e Mara Paiva concederam à Gazeta Esportiva para o especial de um ano da tragédia com o avião da Chapecoense:

Um ano se passou…

Fabienne Belle – Para mim a sensação é que foi ontem, todos os dias eu relembro, como se eu tivesse parado naquele dia, todos os dias vêm essa lembrança, uma dificuldade emocional muito grande, a gente tem que vencer uma barreira todos os dias para continuar a nossa história. Hoje, se eu falar para você que eu recomecei a minha vida, que eu me reconstruí, eu não estaria sendo sincera. Eu estou tocando a minha vida, porque ficaram muitas coisas pendentes, estou tocando, levando a diante. É um processo muito longo, foi muito dolorido e acredito que isso vai levar um bom tempo para as coisas se normalizarem. A data, para mim, ainda tem um impacto muito grande.

Mara Paiva – Eu, em termos emocionais, acho que só estive pior no período do acidente. Sem dúvida nenhuma esse é um período de baixa mesmo, onde eu percebo o tempo interno completamente diferente do tempo externo. Quando eu olho para dentro de mim eu vejo que não passou um ano. É como tivesse sido ontem ou hoje o acidente. Mas, muita coisa aconteceu. Me dou conta que já vivi um ano longe do meu marido, mas, ao mesmo tempo, internamente, é como se eu tivesse estado com ele ontem, é como se eu tivesse deixado ele ontem no aeroporto. Eu acho que eu também estou tocando. Estou tocando porque nós temos uma meta, um ideal, que surgiu depois do acidente, com o falecimento deles. E nós, eu e ele, temos três filhos, três netos e nós temos que reagir e dar um formato digno a minha vida, mas ainda não consegui reconstruir, não.

As sequelas

Fabienne Belle – Eu tenho insônia. Na verdade, é um processo. Tem momentos que eu me sinto melhor, tem momentos que realmente aquela emoção toma conta, a ausência do meu marido é muito sentida, o impacto dessa ausência na família toda. É muito difícil. Emocionalmente a gente vai trabalhando, você tem que ir esgotando todos os dias aquelas emoções negativas para que você tenha força, senão você não amanhece.

Mara Paiva – Eu percebo nos meninos, são três filhos, que esse impacto é muito grande. Eles ainda estão tentando se aprumar, ainda estão tentando, porque o Mário era uma figura muito forte dentro da casa. Ele era o esteio dentro de todos. Eu tinha um papel complementar, lógico, mas era o alicerce da família toda, da família Paiva. Sem dúvida nenhuma isso repercute muito, eu fico muito triste quando vejo isso nos meninos, mas também vejo em mim. É quase um ano, eu tentei lidar com isso sem tomar medicação, faço terapia, minha formação até me leva a isso, eu sou psicóloga, mas agora há questão de dez dias eu acabei sucumbindo, acabei tendo que começar a tomar medicação, porque eu não dormia.

Fabienne Belle – Nos primeiros dias, os primeiros meses, você não dorme, não se alimenta, aí você começa a entender o que aconteceu e tenta recuperar pelo menos essa parte física, porque se não você entra em um espiral e não sai mais.

As 71 vítimas fatais

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A notícia

Mara Paiva – Eu vou falar uma coisa para você: Eu jurei que não ia falar sobre isso, mas vou. Não gostaria de falar sobre isso, mas, faz parte. Eu estava dormindo, eu e meu filho, devia ser umas 3h30, 4 horas, a notícia já havia repercutido e um amigo de trabalho do meu marido entrou em contato conosco pelo telefone. Eu atendi e ele dizia assim: ‘Mara, só Deus agora. Só Deus. Meu amigo, só Deus’. Eu disse: ‘Escuta, mas o que está acontecendo? Do que você está falando?’. E ele continuava repetindo isso: ‘Só Deus, só Deus’. E isso ficou repercutindo na minha cabeça por meses. Vou te dizer que por 30 dias eu não consegui dormir só pensando nisso.
E aí eu disse: ‘Você pode me dizer, por favor, o que é que está acontecendo?’. E ele disse: ‘O avião que estava levando o Mário caiu’. E aí quando eu repeti o que ele estava me dizendo, meu filho teve uma crise, um choque, que ele arrancou o telefone da minha mão e atirou na parede, porque ele não queria ouvir. Daí eu não preciso falar mais nada….

Fabienne Belle – Eu estava sozinha em casa, não tenho filhos, e meu marido, antes de sair para o voo, para entrar na aeronave da LaMia para ir para a Colômbia, me ligou, era umas sete e pouco da noite, me avisou que estavam saindo aquele horário, que parariam em Cobija para fazer um reabestecimento e depois seguiriam para a Colômbia, e que por volta de 00h30, 1 hora, estariam chegando. Quando se aproximou desse horário e ele não me ligou eu já comecei a ficar muito aflita, fui buscar o voo em um site que faz o monitoramento das aeronaves e ali eu vi “aeronave não encontrada”. Já entrei em contato com alguns amigos dele na Colômbia, eles já foram para o aeroporto e de lá eles me confirmaram, praticamente logo após o acidente. Eles já me deram a confirmação e eu liguei para todas as pessoas que eu tinha contato em Chapecó para ver se eles sabiam de alguma coisa. Liguei para minha irmã para ela vir para minha casa para ela me ajudar no que fosse possível. Quando começaram a dar as primeiras informações de que havia sobreviventes eu ainda acreditava que meu marido ia ser um deles, eu tinha a ilusão que ele havia sobrevivido, o que infelizmente não se concretizou.

A revelação de Mara

Mara Paiva – Meu marido não queria viajar. Ele não queria viajar porque ele entendia que as informações que chegavam até nós por meio da emissora que ele trabalhava eram informações desencontradas. Eles não tinham até o domingo à tarde, até 16h30 mais ou menos, as pessoas que estavam no Rio de Janeiro, as pessoas que trabalhavam na emissora e que estavam no Rio de Janeiro e que participariam da viagem não sabiam como viriam a São Paulo, porque tudo ficou por conta do clube, embora a emissora estivesse colocando seis profissionais dentro do avião, tudo ficou por conta do clube.

Mensagens gravadas

Mara Paiva – Eu tenho toda a conversa que foi estabelecida entre a emissora e ele. Eu tenho comprovação disso tudo. Essa falta de cuidado com os profissionais ficou muito clara. Ele estava muito apreensivo com isso.

O aviso de Mario

Mara Paiva – Sim, ele chegou a falar que não queria viajar. Inclusive, eu, quando voltei, eu o deixei no aeroporto, quando cheguei em casa eu telefonei para o Mauro Beting, que era amigo e tinha recentemente saído da emissora. Eu estava muito preocupada, o Mário tinha me passado uma preocupação muito grande pelo esquema, pela falta de planejamento, pela falta de organização. É importante falar, porque era uma preocupação dele.

Deixar a dor para agir

Fabienne Belle – Eu acredito que foi uma necessidade muito grande, primeiro pessoal, porque eu entendo que houve uma falta de zelo, eles não foram cuidados, não foram observados como seres humanos para serem colocados em uma companhia aérea que tinha um perfil duvidoso. A dor que isso gerou em saber que eles perderam direito a vida foi uma coisa muito grande. Na verdade, foi uma grande tragédia e dessa grande tragédia nasceram outras tragédias, que são as tragédias das nossas vidas pela perda dos nossos maridos, dos nossos entes queridos. E isso não pode ficar impune. Essa necessidade veio diante desse fato. Se ninguém tivesse feito nada, isso passaria despercebido e cada família seguiria sua trajetória, sem a mínima satisfação. Veio dessa necessidade. Você deixa de lado sua parte emocional, se concentra naquilo que é importante, porque o acidente aéreo é muito complexo, envolve várias partes do direito, você enxerga que se não existir uma orientação para isso, as coisas vão sendo deixadas para trás. Você precisa realmente organizar tudo isso. A necessidade de honrar o nome dessas pessoas, porque essa falta de zelo não pode ficar impune. As empresas não podem esquecer que estão carregando seres humanos, são pais, são provedores. As consequências desse acidente, hoje, atingem cerca de 200 pessoas diretas, dependentes diretos dessas vítimas. Então, isso não pode acontecer e simplesmente todo mundo virar as costas e cada um que corra atrás daquilo que tem capacidade, condições físicas, emocionais e financeiras para ir buscar.

Mara Paiva – Outra coisa que nos mobilizou foi ter percebido que o valor pessoal e profissional de todos não foi reconhecido. Isso foi uma coisa que nos impactou muito. Da mesma forma que a Chapecoense virou o centro das atenções e, de alguma forma, acabou virando o segundo time de todo mundo, só que não. A gente precisava mostrar para as pessoas que a tragédia era a tragédias das famílias, porque foram os nossos familiares, os nossos amores, que foram sacrificados. Isso foi uma coisa que fez com que nós tomássemos essa decisão. Importante dizer que além da Chapecoense não ser vítima, as emissoras que também colocaram seus profissionais dentro da aeronave, porque meu marido não tinha vínculo nenhum com a Chapecoense, ele estava ali dentro daquela aeronave porque ele ia comentar um jogo. Não fosse a emissora que ele trabalhava ou a função que ele exercia de comentarista, ele não estaria dentro daquela aeronave. Então, a falta de cuidado, a falta de zelo, que também, dentro da nossa ótica, se estende para os profissionais da imprensa que estavam ali. Essa questão, que vocês devem saber muito bem, de viajar de qualquer maneira para cobrir um evento, eu cansei de ver isso dentro da minha casa, e nos últimos dias do meu marido, ele estava muito intranquilo, muito insatisfeito, porque ele percebia que ia cobrir um evento de uma forma que não estava legal. Ele via a desorganização, ele via a falta de segurança de todos os envolvidos e, como ele era uma pessoa muito transparente, ele deixava isso claro. É um dos pontos que nós nos apegamos também.

Fabienne Belle – Essa prática é muito comum no futebol. Existe uma necessidade de ser cobrado uma forma de transportar, para todos os profissionais envolvidos. Existe uma regulamentação, é necessário aplicar uma regulamentação nesse transporte, porque essa tragédia aconteceu comigo, aconteceu com ela e com outras 69 pessoas. Ela não pode acontecer novamente por falta de cuidado. Tragédia acontece, mas, por falta de cuidado? Isso tem que ser evitado.

Mara Paiva – Nós não nos conhecíamos, embora nossos maridos já tivessem trabalhos juntos. Na época que o Mário era técnico do São Caetano, ele conheceu o Cezinha. E, depois, na época que o Mário era diretor do Grêmio, o Cezinha também estava lá. Mas nós nos conhecemos depois do acidente, pela necessidade de falar, de discutir, de buscar algum tipo de ação que pudesse aplacar um pouco todo aquele desespero.

Os números da tragédia

71
Mortos
20
Membros da imprensa
19
Jogadores
14
Membros da comissão técnica
9
Dirigentes
7
Membros da tripulação
2
Convidados
+300
Trabalharam no resgate
45
Peritos na identificação das vítimas

Objetivo da AFAV-C

Fabienne Belle – Buscar todos os direitos das famílias, os interesses e as causas do acidente, trazer os responsáveis para assumirem seus deveres com essas famílias. Nossa maior causa é essa.

Os obstáculos

Fabienne Belle – Todos. Nós estamos enfrentando todos os tipos de obstáculo, desde a dificuldade para levantar documentos. A questão do seguro que nos foi negado a apólice. A seguradora agora nos propôs uma causa humanitária, mas, para essa causa humanitária ela exige uma quitação para praticamente todos os envolvidos. Isso não é interessante para as famílias, pelo contrário, isso tira os direitos das famílias a pleitear. Nós estamos enfrentando todos os tipos de dificuldades, falta de transparência… Por exemplo, durante esse período todo existiu uma investigação no Ministério Público de Santa Catarina e nós só fomos tomar conhecimento dessa investigação a partir do despacho para a imprensa. Quer dizer, nós somos os principais interessados, e eles procuram a imprensa para divulgar esse inquérito? E eles também colocam dentro desse inquérito que as famílias são autossuficientes, que elas têm condições de tocar a vida delas e ninguém precisa fazer nada porque cada um tem seu advogado. Você vê que existe uma série de dificuldades.

Mara Paiva – Há uma distorção da realidade. Há uma distorção de informações. A nossa associação não tem nenhum tipo de verba para nos ajudar. Então, desde a criação da associação até todas as ações que nós fazemos, quando vamos à Brasília.. Tudo isso é patrocinado por nós mesmos. Nós não temos nem ajuda de custo. E também não estamos pedindo, e também não achamos junto, essa coisa de ficar pedindo dinheiro em nome das famílias. Nós achamos que isso é até pejorativo, funciona de forma a denegrir o nome das famílias. Em nome da honra desses arrimos achamos que nós não devemos fazer isso. É claro que nós temos uma limitação financeira, mas nós assumimos essa causa, então, vamos assim

Polêmica com a Chape

Fabienne Belle – O que aconteceu é que logo após o acidente teve aquela comoção mundial e a Chapecoense começou a se apropriar do acidente, que é uma coisa que todo mundo entendia como a tragédia da Chapecoense. Existiram todas aquelas ajudas, o clube se viu também na necessidade de reconstruir o seu elenco e as famílias foram deixadas de lado. Existiu todo esse processo realmente de abandono. As famílias estão em um estado vulnerável em todos os sentidos. Nós não temos amparo psicológico. Além de termos perdido nossos maridos, nossos arrimos de família, nós perdemos os arrimos de família, aquelas pessoas que estavam lá a trabalho, eles exerciam a função profissional para garantir o bem-estar das suas famílias. Nós nos vimos também sem um amparo financeiro. As famílias estão expostas a essa situação vulnerável e o clube buscou reconstruir a sua história, repôs seus ativos financeiros e as famílias foram realmente deixadas de lado.

ABRAVIC (Associação Brasileira da Vítimas do Acidente com a Chapecoense)

Fabienne Belle – Ela foi constituída por pessoas, o corpo gestor dela são pessoas que não são parentes, pessoas que não têm vínculo nenhum com as famílias, mas eles têm o trabalho deles, muito diferente do nosso. A AFAV-C já é formada por familiares, por pessoas que perderam pessoas diretas. A ABRAVIC surgiu para pessoas que tinham vínculo oneroso com a Chapecoense. As pessoas que não tinham esse vínculo não estavam sendo a atendidas.

Mara Paiva – Não poderiam fazer parte dessa associação. Isso é uma coisa importante que a Fabi está dizendo, porque essa diferença já existe desde a constituição das associações, porque quando a ABRAVIC surgiu ela surgiu exclusivamente para pessoas que tinham vínculo oneroso com o clube, e isso fazia parte até da ficha de inscrição. No rodapé da ficha vinha essa informação.

Fabienne Belle – Todas pessoas que tinham contrato de trabalho com a Chapecoense, que não fossem CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), não estariam cobertas pela Associação (ABRAVIC)

Relação com ABRAVIC

Fabienne Belle – Em agosto nós tivemos uma reunião com o clube e com a ABRAVIC. Essa reunião serviria para nos aproximar. Nós abrimos esse diálogo de aproximação em benefício das famílias.

Mara Paiva – E pedimos para que eles tirassem essa cláusula de que só teria acesso aos benefícios que a ABRAVIC oferece quem tivesse vínculo oneroso com o clube. Nós pedimos que isso acontecesse, eles nos atenderam, e aí, se a Fabienne me permitir, eu queria esclarecer uma questão. Embora haja uma diferença muito grande, a diferença é abissal entre a ABRAVIC e a AFAV-C, em princípio pela origem, que nós já falamos aqui, e depois pelos objetivos, porque eles têm uma proposta assistencialista, a ideia é atender as necessidades das famílias de forma pontual. E a nossa é de atender de uma forma ampla e definitiva. Nós não vamos buscar questões que tenham um prazo de validade. É para que nós possamos dar continuidade a nossas vidas. Então, nós vamos atrás dos direitos das famílias. Dessa forma, nós enxergamos a ABRAVIC como um primeiro estágio. É importante, o trabalho que eles desenvolvem hoje, embora seja um trabalho que vai ter um fim a curto, médio prazo, porque são questões pontuais, é um trabalho importante. Mas, é muito importante que fique claro que não é só isso, que nós não vamos estar satisfeitos enquanto famílias, que perdemos nossos arrimos, só desta forma. A gente precisa atender as necessidades de algumas famílias mais carentes nesse momento, mas é importante que a opinião pública não veja isso como a solução para o problema. A gente tem que encarar isso para uma outra tragédia que aconteça. Acho que isso tem que ficar como um norte.

Ainda sem respostas

Fabienne Belle – A palavra, eu acredito que nesse momento, seria desconforto, indignação, porque realmente existem os responsáveis e os co-responsáveis, que cada um seja listado e assuma o seu dever diante dessas famílias. Existe um desconforto muito grande no grupo quanto a isso, uma preocupação, porque como é um acidente que envolveu a legislação de três países, existe um prazo para cada país. Toda essa parte é um peso que as famílias carregam até hoje, então, é uma situação que vai se prolongar ainda por um período, e a cada passo que nós vamos vencendo, superando, surgem novas angústias no grupo. A angústia inicial era aquela parte do trauma, aí foi evoluindo para o seguro, e a cada etapa que nós vamos vencendo, vão surgindo novos tipos de emoção. A palavra é inquietação e desconforto, e indignação.

Mágoa

Mara Paiva – Eu tenho. Eu tenho uma e já respondo de bate-pronto. Não só com relação ao o que o meu marido significou para o futebol, esquecendo isso. O que ele significava para a minha família. O fato de não ter o valor pessoal e profissional dele reconhecido, isso é uma mágoa que eu vou levar para o fim da minha vida, porque ele era um cara que assumia todas suas responsabilidades com tanta transparência, com tanta integridade, tanta dignidade, ele vestia tanto a camisa das causas e das empresas por onde ele passou, camisa eu falo de clubes também, na vida dele, ele até muitas vezes chegou a ser mal interpretado por ser tão transparente, por ser uma pessoa tão íntegra. Então, não ter o valor dele é uma mágoa acho que minha família inteira vai carregar até o fim da vida, até o final dos nossos dias. Um cara que tinha essa postura, essa conduta, não ter o valor pessoal e profissional dele reconhecido realmente isso foi um baque muito grande para todos nós, foi muito impactante.

Aproximação com a empresa

Mara Paiva – Não, até hoje. Isso é uma coisa que é claro. A Justiça existe para isso e eu acredito muito na Justiça. Eu tenho certeza absoluta que no final das contas a gente vai conseguir isso, mas ter de brigar na Justiça para ter esse reconhecimento é muito difícil para nós.

Fabienne Belle – Acho que todo evento após acidente gerou muitas mágoas. São mágoas que são difíceis de serem apagadas. Aquela marca ficou e não sai mais. Tive alguns episódios também relacionado a essa questão que a Mara levantou, do não reconhecimento do valor daquela vida, como funcionário. Questão assim de que durante o processo as famílias foram agredidas… Não sei nem falar, porque foram tantas coisas que aconteceram. Vou ser bem direta: logo após o acidente, um mês, um mês e meio após o acidente, as famílias que eram vinculadas à Chapecoense estiveram em Chapecó para uma reunião e lá aconteceram coisas, assim, que me entristeceram demais, porque as pessoas não conseguiam enxergar que existiam ali não inimigos, e sim pessoas que tinham perdido tudo na vida. Eu perdi tudo. Eu perdi meu sonho, perdi meus projetos, e eles não conseguiam enxergar isso. Foram extremamente frios com relação a esse sentimento. E a forma como nós fomos tratados a partir daquele momento, como se nós fossemos um peso a ser carregado. E não ao contrário, porque hoje quem carrega o peso do acidente sou eu, quem carrega o peso com aquele símbolo sou eu. É uma coisa que me deixou muito chocada, a falta de humanidade com que nós fomos tratados. Eu senti isso em mim muito forte, isso também foi uma das minhas motivações em seguir com as questões da associação, porque o ser humano não pode tratar outro ser humano dessa forma. Acho que o mínimo que nós podemos fazer enquanto pessoa é o respeito pela vida, pela dignidade humana. Essa dignidade humana é ampla, é no tratamento, é na forma como você enxerga o direito do outro. Isso criou realmente em mim uma dor, porque você acaba mesmo se deparando com essa falta de sensibilidade.

Mara Paiva – Se você for parar para pensar, nós estamos falando em dois discursos diferentes, mas estamos falando a mesma coisa. O exemplo que fecha bem isso é que os jogadores já foram repostos, o time já foi refeito. É o que a gente costuma dizer: goleiro, zagueiro, atacante, todos, técnico… As peças já foram repostas. Os comentaristas também já foram contratados outros, narrador também, repórteres, cinegrafista, enfim… Só que o pai do meu filho, o meu marido, o marido dela, o filho da outra senhora, eles não voltam nunca mais. Isso não tem reposição.

Recado a Mário e Cezinha

Mara Paiva – Brincadeira. Não pode fazer isso comigo…
O que eu diria é que nós somos almas-gêmeas, sempre fomos. Ele sabe disso. Eu estou cuidando do legado que ele deixou. Vou refazer minha vida, claro que vou, mas ele sabe que ele tem o lugar dele na minha vida e isso vai ser para sempre.

Fabienne Belle – Eu falaria o que eu disse o dia que ele saiu para ir para o jogo do Palmeiras, antes de seguir a viagem: que nós estaríamos sempre juntos. Isso que eu falaria para ele, porque ele foi a pessoa mais leal que eu conheci. Uma pessoa muito íntegra, leal, muito dedicado à família, às coisas que ele acreditava, à história de vida que ele construiu. Ele era a minha vida. O que nos unia era o amor e o cuidado que um tinha com o outro. Então, eu vou falar o que eu disse para ele, que nós sempre estaríamos juntos. E nós vamos sempre estar juntos. Todos os dias da minha vida, desde o dia do acidente, eu acordo, lembro dele, e assim vou seguindo a minha vida. É o que a Mara falou. De alguma forma, em algum momento, eu vou reconstruir minha vida, vou recomeçar, mas ele sempre vai ser metade do meu coração.

Os seis sobreviventes

Alan Luciano Ruschel
Lateral da Chapecoense
Jakson Ragnar Follmann
Goleiro da Chapecoense
Hélio Hermito Zampier Neto
Zagueiro da Chapecoense
Rafael Henzel
Jornalista
Erwin Tumiri
Técnico da aeronave
Ximena Suarez
Comissária de bordo


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