"Da UTI programei meu retorno" - Gazeta Esportiva
Lucas Sarti e Tiago Salazar
São Paulo - SP
11/30/2017 08:30:02
 

A rotina do locutor Rafael Henzel de acompanhar o time da Chapecoense para narrar os jogos da equipe de Santa Catarina foi interrompida em novembro de 2016. O jornalista foi um dos sobreviventes do trágico acidente aéreo que vitimou 71 pessoas diante da queda do avião Avro RJ-85 da LaMia. A aeronave que levava a delegação da Chape para o primeiro duelo da final da Copa Sul-Americana contra o Nacional, além de membros da imprensa e convidados, caiu na madrugada do dia 29 de novembro de 2016, a poucos metros do aeroporto José María Córdova, em Medellín, na Colômbia, destino final do voo. Sete costelas quebradas, dois pulmões perfurados e diversas lesões, porém, não foram suficientes para interromper a paixão de Henzel, que apenas 50 dias depois de ser resgatado nas montanhas de La Unión já estava narrando novamente.

“Na UTI mesmo eu já fiquei programando meu retorno ao trabalho para 40 dias depois do acidente e consegui cumprir. 50 dias depois do acidente voltei a narrar jogos de futebol, naquele Palmeiras e Chapecoense, aqui em Chapecó”, conta o emocionado jornalista em depoimento enviado à Gazeta Esportiva.

Exemplo de superação, Henzel serve como inspiração na cidade de Chapecó, onde continua residindo. Um ano após a tragédia, a cidade, aos olhos do jornalista, ainda custa a se recuperar. Voltar a exercer a profissão que ama e que faz com maestria há tantos anos foi, além de uma forma de curar as mazelas, também de homenagear colegas que não tiveram chance de escapar do fim trágico.

“É preciso superar. A dor ela existe, mas o sofrimento não pode ser eterno. A gente perdeu colegas também, eu voltei ao trabalho como forma de homenagem, porque eu sei que aqueles que se foram, se estivessem no meu lugar, também fariam o mesmo, que é voltar e contar um pouco mais da história nas emissoras de rádio ou televisão”, ensina. “É preciso seguir”.

Para continuar em frente, Henzel se apoia em suas duas paixões: futebol e jornalismo. Assim como Alan Ruschel, lateral que voltou a atuar profissionalmente oito meses após a tragédia, Henzel também está “batendo uma bolinha” em peladas por Chapecó, buscando aproveitar da melhor forma sua “segunda chance”.

Essa empolgação e vontade de viver não cega Rafael Henzel para as questões fundamentais de acolhimento e auxílio aos familiares das vítimas do acidente e, principalmente, àqueles que não tinham vínculo com o clube, que acabaram ficando à margem, principalmente no início das conversas.

“Estamos falando de atletas, claro, mas tem também outras pessoas que não eram atletas e que estavam no avião, que não foram indenizadas pelo seguro da CBF e da Associação Chapecoense de Futebol. Tem que haver esse entendimento e ali na frente a Justiça vai determinar quem tem mais direito ou menos direito nesse caso. Além de a Chapecoense buscar juntamente com os familiares a indenização de países que foram também corresponsáveis por esse acidente”, cobra.

Resultado da maior tragédia aérea esportiva da história, o jornalista também descarrega suas energias na escrita. Em junho deste ano, Henzel lançou o livro “Viva como se estivesse de partida”, em que conta cronologicamente como os fatos se sucederam. Após sobreviver a uma queda de avião, ter as costelas quebradas, os pulmões perfurados e a dor de perder colegas de profissão, Rafael Henzel passa uma mensagem de otimismo, sempre com o mantra “seguir em frente” em sua mente e muita vontade de viver em seu coração.


Abaixo você confere, na íntegra, o depoimento de Rafael Henzel:

Vida após um ano

Nesse um ano eu dividi a minha vida em duas partes, para dar entrevistas inclusive. A primeira parte para explicar realmente o que houve dentro daquele avião. Não houve desespero, nenhum tipo de confusão, houve apenas uma dúvida muito grande e, como digo para as famílias daqui, muitas pessoas perderam suas vidas sem saber o que aconteceu, muitas pessoas dormindo também. E depois falando da reconstrução de tudo aquilo que foi importante para as nossas vidas, a importância das pessoas, a importância da recuperação. Eu, particularmente, vivo a mesma vida praticamente que vivia no dia 28/11/2016. Estou jogando meu futebol, estou narrando jogos pelo Brasil inteiro e, claro, estou trabalhando em dois períodos na rádio, como eu já fazia anteriormente também.

Lembrança da tragédia

A gente lembra com muita tristeza de tudo o que aconteceu, a gente está completando um ano da tragédia. Seis pessoas sobreviveram. Graças a Deus as seis pessoas estão bem perante a tudo o que aconteceu. Eu fui abençoado com um milagre, assim como os demais, porém, eu não fiquei esperando por um outro milagre. Na UTI mesmo eu já fiquei programando meu retorno ao trabalho para 40 dias depois do acidente e consegui cumprir. 50 dias depois do acidente voltei a narrar jogos de futebol, naquele Palmeiras e Chapecoense, aqui em Chapecó. Eu tive sete costelas quebradas, os dois pulmões perfurados, uma pneumonia muito forte, lesões no rosto, lesões no pé, mas graças a Deus, com a ajuda dos médicos, com o apoio de todas as pessoas que rezaram pela gente, ficou naquele momento apenas a dor de perder nossos colegas. Sempre faço questão de lembrar que foram 20 jornalistas que perderam a vida, muitos convidados, membros da comissão técnica, diretoria, além, obviamente, dos jogadores.

Chapecoense de volta à ativa

No final do ano, fazendo uma avaliação, a Chapecoense não esteve diferente do que foi em 2014, 2015 e 2016, nos três anos anteriores, na disputa do Campeonato Brasileiro. Mesmo início, mesmas oscilações de um time que tem uma das menores folhas de pagamento da Série A. Além de tudo, havia a necessidade de encontrar um líder dentro de campo, de você reunir de uma hora para outra 30 jogadores, uma nova comissão técnica, de repente trocar a comissão técnica uma ou duas vezes. Muita gente se pergunta: por que trocar? Foi necessário até a chegada do Gilson Kleina, que conseguiu organizar a equipe, equilibrar para que a Chapecoense conseguisse permanecer na Série A do Campeonato Brasileiro.

Compromisso com os familiares

A Chapecoense tem três ações muito fortes. Tem que ter o marketing para levar a sua marca, o futebol e o apoio às famílias, que agora nesta reta final da temporada começa a ser um pouquinho mais humanizado esse relacionamento com aqueles que perderam seus entes queridos. Estamos falando de atletas, claro, mas tem também outras pessoas que não eram atletas e que estavam no avião, que não foram indenizadas pelo seguro da CBF e da Associação Chapecoense de Futebol. Tem que haver esse entendimento e ali na frente a Justiça vai determinar quem tem mais direito ou menos direito nesse caso. Além de a Chapecoense buscar juntamente com os familiares a indenização de países que foram também corresponsáveis por esse acidente.

Os números da tragédia

71
Mortos
20
Membros da imprensa
19
Jogadores
14
Membros da comissão técnica
9
Dirigentes
7
Membros da tripulação
2
Convidados
+300
Trabalharam no resgate
45
Peritos na identificação das vítimas

Impacto na cidade

A gente tem notícias de pessoas que não voltaram para o estádio ainda, que se ressentem na presença dos demais, que sentem a tristeza ainda de todas as perdas que tivemos em Chapecó. Jogadores aqui eram como vizinhos mais próximos, que saíam na rua a todo momento, que estavam nos locais também muito frequentados e sempre muito bem relacionados com a comunidade chapecoense. É preciso superar, a dor ela existe, mas o sofrimento não pode ser eterno. A gente perdeu colegas também, eu voltei ao trabalho como forma de homenagem, porque eu sei que aqueles que se foram, se estivessem no meu lugar, também fariam o mesmo, que é voltar e contar um pouco mais da história nas emissoras de rádio ou televisão. É preciso seguir. Eu, por exemplo, voltei para a Arena Condá muito antes de os jogos começarem para ver aquele local onde foi feito o velório coletivo, voltei a subir aquelas escadas, voltei a sentir de novo a emoção do torcedor de ter futebol em Chapecó, mas realmente a cidade ainda se ressente, porém, um ano depois, é preciso avançar. É óbvio que tem o primeiro dia dos pais, o primeiro natal, o um ano da tragédia. Todos os meses são muito impactantes para todos nós, mas agora, obviamente não para as famílias que perderam seus entes, a gente vai avançando, a gente precisa avançar, buscar os direitos de cada um.

Livro motivacional

Eu lancei um livro que se chama “Viva como se estivesse de partida”. Esse livro conta cronologicamente tudo o que aconteceu com a nossa vida desde o dia 23 de novembro, quando a Chapecoense chegou até a decisão para a Copa Sul-Americana. Depois, a viagem para o jogo do Palmeiras, a viagem para Medellín, tudo aquilo que aconteceu em sequência e como eu tentei enfrentar, no princípio muito abalado também por conta do acidente, a importância das pessoas de acreditar, de ter fé. Também falo isso nas palestrar que estou dando em todo o Brasil. Jamais pensei em morrer, mesmo quando o avião ficou sem energia, muito menos quando me encontrei no meio do mato. Acreditei sempre que era possível e graças a Deus hoje estou aqui vivendo praticamente a mesma vida que eu vivia antes do acidente. Fico muito feliz de estar com a minha família, com os meus amigos, com a lembrança daqueles que se foram, mas podendo aproveitar essa segunda chance que Deus me deu. O livro conta toda essa minha trajetória e é uma mensagem de muito otimismo que a gente tenta passar, porque nós todos fomos resultado da maior tragédia do esporte, de uma grande irresponsabilidade.

Os seis sobreviventes

Alan Luciano Ruschel
Lateral da Chapecoense
Jakson Ragnar Follmann
Goleiro da Chapecoense
Hélio Hermito Zampier Neto
Zagueiro da Chapecoense
Rafael Henzel
Jornalista
Erwin Tumiri
Técnico da aeronave
Ximena Suarez
Comissária de bordo


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