“A gente nasce sem nada e morre sem levar nada” - Gazeta Esportiva
Tiago Salazar
São Paulo - SP
11/27/2017 12:12:02
 

Uma perna amputada, um tornozelo deformado e limitado a 20% de seus movimentos naturais, 13 fraturas espalhadas pelo corpo, dois parafusos inseridos na coluna cervical, cirurgias, dias em coma, muita dor. Os traumas físicos e psicológicos sofridos por Jakson Follmann depois de sobreviver à queda do avião que levava a delegação da Chapecoense, jornalistas e convidados para a Colômbia há um ano são imensuráveis, talvez capaz de compreensão apenas pelas outras cinco pessoas que sobreviveram ao acidente que vitimou 71. O que espanta, no entanto, é a forma como o ex-goleiro de 25 anos resolveu encarar a vida posteriormente àquele fatídico 29 de novembro de 2016.

“Hoje estou bem, faço inúmeras coisas, dirijo, jogo futebol, brinco no clube. Medo não dá, até por tudo que aconteceu. A última coisa que eu vou ter é medo. Voltei a correr um pouquinho. Está sendo muito proveitosa essa minha recuperação”, conta Follmann, em entrevista concedida à Gazeta Esportiva em meio a sua concorrida agenda que se autojustifica pela época.

Desde os primeiros passos no estacionamento do edifício da Fundação Cásper Líbero, passando pela redação, até o acervo de fotografias da Gazeta Press, Jakson Follmann provocou risadas, cumprimentou alguns conhecidos, posou para fotografias e, enfim, se ajeitou na cadeira. O sorriso parecia congelado em seu rosto. A autoestima de Folmann tornava praticamente impossível imaginar os apuros passados pelo sobrevivente da maior tragédia esportiva da história.

“Eu sempre fui brincalhão, minha família, meus amigos, minha esposa sempre diz que eu deito sorrindo, acordo sorrindo, estou sempre bem com a vida. Eu tinha duas opções: ou ficar me lamentando no canto pelas perdas, e é claro que as perdas vão permanecer, mas, falando de mim mesmo, eu procurei ver pelo outro lado. O lado de poder aproveitar a vida, o milagre, essa segunda chance. Eu estou superbem, feliz para caramba”, explica, antes de revelar como que o acidente ainda repercute em sua vida, na rotina do dia a dia.

“Na verdade, eu nunca tive um pesadelo. Eu tive sonhos com as pessoas, alguns amigos meus, mas sempre foram sonhos bons, nunca pesadelo. Sempre dormi superbem e acho que o que me ajuda bastante é a minha fé, estar com a cabeça boa, pensar coisas positivas… Isso me ajuda bastante. E eu vejo muito que a imagem que eu tenho de todos os colegas que partiram é uma imagem de alegria, rostos alegres, sorridentes”.

Toda essa disposição para seguir em frente sem dar tempo para que frustrações e lamentações ganhem espaço não significa que o ex-reserva de Danilo, com passagens por Grêmio, Juventude, Linense e URT, ignore as dores emocionais. A superação é um trabalho diário, de paciência e perseverança.

“Passou muito rápido. Muito rápido mesmo. Parece que foi ontem que eu estava retornando para o Brasil, parece que foi ontem que eu estava retornando para a sala de cirurgia e já vai fazer um ano de tudo. É difícil você esquecer, não tem como esquecer tudo o que aconteceu. Se eu olhar para mim, ao redor do meu dia a dia, eu vou ver que falta alguma coisa, faltam muitas coisas. A gente sempre fala, parece que todo mundo foi viajar e está voltando. E eu também procuro tocar minha vida. Procuro não me apegar para não ficar para baixo, mas também procuro não esquecer. E me fez bem até hoje eu estar com o pensamento para frente, positivo. Me ajudou muito na minha recuperação”, diz.

Com o intuito de se preservar, evitar algum tipo de depressão, essa e outras estratégias foram adotadas por Jakson Follmann desde o momento em que fora encontrado sob os escombros da aeronave Avro RJ-85 da LaMia, já sem uma parte de uma das pernas e inundado de lama na região montanhosa do município de La Unión, na Colômbia.

“Quando eu acordo lá embaixo no meio da mata, não passa nada na minha cabeça. Quando eu abro meus olhos eu só peço por socorro e tenho medo de morrer. Só isso que eu lembro”, detalha. “É igual estar em um pesadelo que você não consegue acordar. Sem falar das dores, eu tinha muita dor, da cintura para baixo eu tinha muita dor, as minhas pernas estavam adormecidas. Eu tinha muita dor e medo de morrer”, reforça.

Mesmo assim, o choque mais forte que pode se lembrar ocorreu depois de acordar pela primeira vez desde a sua entrada no hospital. Com a consciência restabelecida, Follmann se emocionou quando viu seus pais e a então noiva Andressa Perkovski. Ninguém, porém, poderia imaginar o que estaria por vir na sequência.

“Eu lembro que um psicólogo chegou e falou: ‘olha, Jakson, o avião de vocês caiu, fez bum, morreu todo mundo e só sobreviveu você, o Alan (Ruschel) e o Neto de jogadores, e você perdeu a perna e não vai mais jogar futebol’”, recorda Follmann. “Na lata. Não sei se ele deveria falar assim. E no momento que ele fala isso, eu disse: ‘prefiro a minha vida do que minha perna’”, revela, explicando que custou até mesmo para perceber do que realmente se tratava toda aquela cena. Aliás, dimensionar a repercussão do acidente era pedir muito para Follmann.

Por opção, Jakson Follmann preferiu se blindar dos noticiários. Nos quase 60 dias que passou internado em hospitais da Colômbia, São Paulo e Chapecó, o ex-jogador do clube catarinense evitou televisão, internet, se refutou de assistir ao comovente velório coletivo na Arena Condá e, por isso, acabou pego de surpresa quando descobriu que não só o Brasil, mas o mundo estava em luto.

“A dimensão de tudo mesmo foi no momento que a gente teve o jogo contra o Palmeiras (amistoso dia 21 de janeiro), que foi a entrega das medalhas. Ali eu comecei a ver a dimensão, porque eu não tinha esse contato com as pessoas de fora, eu não tinha essa dimensão, eu não sabia o que estava acontecendo”, relata. “Os médicos, as pessoas diziam: ‘fica tranquilo, o mundo todo está rezando por vocês’. E eu pensava: ‘poxa, o mundo todo? O Brasil todo?’, imaginava, espantado.

“A emoção tomou conta, porque passa um filme na tua cabeça. Eu cheguei na Arena Condá, passava em qualquer canto e lembrava do que a gente fazia, no vestiário, foi difícil, emoção tomou conta, a saudade veio, não teria como ser diferente. E quando você entra em campo e todo mundo gritando seu nome. Ali que eu vi. Já sabia que tinha morrido 71 pessoas, mas ali eu vi que foi muito grande mesmo”.

Mas é só voltar a falar do presente, ou até mesmo do futuro, para Jakson Folmann trocar a feição tensa pelo sorriso leve e otimista. Os olhos saltados revelam sonhos, objetivos, acima de tudo uma vontade de viver e conquistar, agora não mais três pontos, e sim uma família e uma replanejada carreira profissional. E quando surge a pergunta sobre como é voar desde então, Follmann arranca gargalhadas de quem está por perto.

“O que eu não gosto mesmo é de viajar à noite. Isso eu não gosto, prefiro viajar de dia. Há uns 15, 20 dias atrás eu retornei de São Paulo para Chapecó à noite e a gente não conseguia pousar porque tinha muita neblina. Foi meu primeiro voo que eu não consegui pousar, tive que voltar, era à noite, eu não enxergava nada, e aí bateu um desespero, não vou te mentir”.


A dificuldade em viajar com o céu escuro é mais um obstáculo que terá de ser superado, afinal, a decisão pelo caminho a seguir dentro da Chapecoense obrigará o gaúcho a ter de retomar à rotina dentro de aeroportos.

“Penso em ser dirigente, pretendo fazer um curso de gestão ano que vem, quero crescer junto com o clube. E as coisas estão dando certo, se encaixando, e esse é o meu dia a dia. Vivo no clube, todos os dias eu vou lá, procuro ficar envolvido. A vida toda eu fiz isso, isso me faz bem”.

A queda do avião com a delegação da Chapecoense há um ano também atrapalhou os planos pessoais de Jackson Follmann, que tinha casamento marcado para dali a 17 dias. Hoje, já com o matrimônio consumado e depois de curta lua de mel, o desejo é de prosperar com filhos.

“Com certeza. Acho que ano que vem, acho que está cedo ainda. Eu preciso voltar à ativa, ela se formou em Educação Física, vai defender sua tese no mestrado, a gente estando bem encaminhado a gente vai pensar em ter filhos, porque eu quero muito ter filhos, é uma pressão da família, uma pressão dos amigos. A gente está bem pressionado, mas a gente também quer”.

A lição que herdara de uma experiência tão marcante como a de sobreviver a um acidente aéreo certamente será importante no convívio familiar de Jakson Follmann, seja com seus filhos, com sua esposa ou até mesmo ao lado de familiares e amigos. O ângulo de quem recebe uma nova chance de viver e de dar sequência precisa ser valorizado, preservado e disseminado. E é assim que Jakson Follmann espera caminhar daqui para frente, sempre em frente.

“A gente procura sempre falar para todos para aproveitar esse momento, essa chance. Isso que fica. Tem uma frase que eu gosto: a gente nasce sem nada e morre sem levar nada. É poder aproveitar o dia de hoje, porque o amanhã pertence a Deus”.

As 71 vítimas fatais

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Aqui você confere, na íntegra, a entrevista exclusiva que Jakson Follmann concedeu à Gazeta Esportiva para o especial de um ano da tragédia com o avião da Chapecoense:

Recuperação

Hoje estou muito bem. Claro que requer muito tempo a recuperação. Eu tive 13 fraturas pelo corpo, tive minha amputação, tenho um problema sério no tornozelo, perdi o osso do tálus, o ossinho do tornozelo. Tenho uma haste de 26cm que liga a tíbia ao calcanho, tirei pele da coxa para colocar no tornozelo e perdi 80% dos movimentos do tornozelo esquerdo. Então, minha recuperação está muito boa. A prótese foi muito tranquilo, demorou para caminhar bem, me movimentar melhor com muletas, mas o tempo foi passando, eu nunca atropelei nada também, hoje estou bem, faço inúmeras coisas, dirijo, jogo futebol, brinco no clube. Medo não dá, até por tudo que aconteceu a última coisa que eu vou ter é medo. Voltei a correr um pouquinho. Está sendo muito proveitosa essa minha recuperação.

De bem com a vida

Eu sempre fui brincalhão, minha família, meus amigos, minha esposa sempre diz que eu deito sorrindo, acordo sorrindo, estou sempre bem com a vida. Eu tinha duas opções: ou ficar me lamentando no canto pelas perdas, é claro que as perdas vão permanecer, mas, falando de mim mesmo, eu procurei ver pelo outro lado. O lado de poder aproveitar a vida, o milagre, essa segunda chance. Eu estou superbem, feliz para caramba.

Rotina

Eu acordo, vou para o clube, vivo o dia a dia do clube. Acompanho todos os treinamentos, acompanho todos os jogos em casa. Como sou embaixador do clube, tenho vários lugares para visitar. Fico sempre ao lado do presidente também para aprender, porque eu também quero ser um gestor do clube.

Objetivos

Penso em ser dirigente, pretendo fazer um curso de gestão ano que vem, quero crescer junto com o clube. E as coisas estão dando certo, se encaixando, e esse é o meu dia a dia. Vivo no clube, todos os dias eu vou lá, procuro ficar envolvido. A vida toda eu fiz isso, isso me faz bem

A cidade de Chapecó

Nunca passou isso pela minha cabeça (deixar a cidade), muito pelo contrário. Sempre quis ficar em Chapecó. A gente sabe que as pessoas não perguntam as coisas por maldade, e sim por curiosidade, porque querem saber. E por incrível que pareça, em Chapecó, as pessoas não perguntam muito o que eu lembro, como foi. Em qualquer canto que a gente vai em Chapecó, as pessoas param para bater foto, para abraçar, para chorar. Essas perguntas quem faz mais é no decorrer das viagens que a gente faz no Brasil afora.

Sequelas emocionais

Na verdade, eu nunca tive pesadelo. Eu tive sonhos com as pessoas, alguns amigos meus, mas sempre foram sonhos bons, nunca pesadelo. Sempre dormi superbem e acho que o que me ajuda bastante é a minha fé, estar com a cabeça boa, pensar coisas positivas… Isso me ajuda bastante. E eu vejo muito que a imagem que eu tenho de todos os colegas que partiram é uma imagem de alegria, rostos alegres, sorridentes.

Como tudo aconteceu

A gente estava sentado no meio do avião, rente a asa. Estava sentado eu, sozinho, porque como era um voo longo, todo mundo sentava sozinho para poder deitar, se acomodar melhor. O Neto com o Rangel na minha frente, o Alan mais atrás e o Rafael mais atrás do que o Alan (Ruschel). E aí, no meio do voo, o Cadu (Gaúcho), que era o nosso diretor, veio pedir para nós, atletas, sentarmos mais para frente e deixarmos a imprensa atrás, porque tinha muita gente, muitos convidados. E eu lembro que o Alan não queria, porque o Alan chega no voo e apaga. Eu falei para ele: ‘vem sentar do meu lado, vamos escutar música’. Eu insisti umas duas ou três vezes até a hora que ele veio sentar.

Eu e o Alan nos conhecemos há mais de dez anos, jogamos na base e no profissional do Juventude, nos conhecemos há muito tempo. O que a gente conversou algumas vezes, e ainda conversa, quando toca no assunto do acidente, é a gente ficar vivo em uma tragédia que tinha 77 pessoas e, dentro dos seis sobreviventes, estar eu e ele, que temos amizade há mais de 10 anos.

Noção da tragédia

É claro que depois que desliga as luzes e o motor, você não tem o que fazer a não ser rezar e pedir a Deus que livrasse todos nós do pior. Naquele momento, na minha cabeça: poxa, alguma coisa grave aconteceu. Eu não queria acreditar que o avião estava caindo. É uma situação muito complicada.

Quando eu acordo lá embaixo no meio da mata, não passa nada na minha cabeça. Quando eu abro mais olhos, eu só peço por socorro e tenho medo de morrer. Só isso que eu lembro. Quando eu abro meus olhos eu achava que estava na beira de um rio, de um mar, porque tinha areia nas minhas costas e chovia, mas era o barro que tinha em mim. Eu não sabia onde eu estava. É igual estar em um pesadelo que você não consegue acordar. Sem falar das dores, eu tinha muita dor, da cintura para baixo eu tinha muita dor, as minhas pernas estavam adormecidas. Eu tinha muita dor e medo de morrer.

Eu quando acordo do coma, a cena mais linda que eu vejo são meus pais e minha esposa ao meu lado. Quando vi onde eu estava: poxa, estou em um hospital, estou na cama. Comecei a lembrar que eu estava na mata, do socorro, do frio. Mas eu não falava com ninguém isso. Minha família e os médicos respeitaram muito esse momento. E com o passar dos dias, eu fiquei 16 dias na UTI na Colômbia, eu fui afirmando algumas coisas, e as coisas foram se encaixando com o que eu achava, pensava, lembrava. E foi bastante difícil, cara.

A ‘bomba’

Logo antes de tudo isso, tinha um psicólogo do hospital e, quando eu acordei, junto com os médicos da minha família, estava até só com meu pai, porque eles revezavam e meu pai ficava à noite, eu lembro que esse psicólogo chegou e falou: olha, Jakson, o avião de vocês caiu, fez bum, morreu todo mundo e só sobreviveu você, o Alan e o Neto de jogadores, e você perdeu a perna e não vai mais jogar futebol.

Na lata. Não sei se ele deveria falar assim. E no momento que ele fala isso, eu disse: prefiro a minha vida do que minha perna. Só que eu ainda não tinha a dimensão. A dimensão de tudo mesmo foi no momento que eu fui, só quando a gente estava em Chapecó, no momento que a gente teve o jogo contra o Palmeiras, que foi a entrega das medalhas, que ali eu comecei a ver a dimensão. Porque eu não tinha esse contato com as pessoas de fora, eu não tinha essa dimensão, eu não sabia o que estava acontecendo. Era muito privado as visitas no hospital, eu não olhava TV, fui ver alguma coisa de rede social vinte e poucos dias depois.

Os médicos, as pessoas diziam: fica tranquilo, o mundo todo está rezando por vocês. E eu pensava: poxa, o mundo todo, o Brasil todo?

Os números da tragédia

71
Mortos
20
Membros da imprensa
19
Jogadores
14
Membros da comissão técnica
9
Dirigentes
7
Membros da tripulação
2
Convidados
+300
Trabalharam no resgate
45
Peritos na identificação das vítimas

Sem TV

Opção minha. Eu preferia não ver. Eu fiquei 56 dias nos hospitais. Não acho que demorei muito tempo, eu fui dando tempo ao tempo, respeitando tudo o que aconteceu comigo, me respeitando e focado na minha recuperação.

Eu não vi velório na Arena Condá até hoje, não como os caixões chegaram. Procurei me preservar.

Quando a ficha caiu

A emoção tomou conta, porque passa um filme na tua cabeça. Eu cheguei na Arena Condá, passava em qualquer canto e lembrava do que a gente fazia, no vestiário, foi difícil, emoção tomou conta, a saudade veio, não teria como ser diferente. E quando você entra em campo e todo mundo gritando seu nome. Ali que eu vi. Já sabia que tinha morrido 71 pessoas, mas ali eu vi que foi muito grande mesmo.

Um ano depois

Passou muito rápido. Muito rápido mesmo. Parece que foi ontem que eu estava retornando para o Brasil, parece que foi ontem que eu estava retornando para a sala de cirurgia e já vai fazer um ano de tudo. É difícil você esquecer, não tem como esquecer tudo o que aconteceu. Se eu olhar para mim, ao redor do meu dia a dia, eu vou ver que falta alguma coisa, faltam muitas coisas. A gente sempre fala, parece que todo mundo foi viajar e está voltando. E eu também procuro tocar minha vida. Procuro não me apegar para não ficar para baixo, mas também procuro não esquecer. E me fez bem até hoje eu estar com o pensamento para frente, positivo. Me ajudou muito na minha recuperação.

Medo de avião

Eu acho que depois que tudo aconteceu eu já devo ter voado umas 50 vezes. Eu tive alta na terça, na quarta eu estava voando já. Eu entro no voo e faço minha oração e vamos embora. Se tornou mais uma necessidade. E não é o fato de eu voar ou deixar de voar que vai acontecer ou deixar de acontecer alguma coisa. É claro que eu tenho medo, sim, de botar os pés em um avião e sentar em uma poltrona. Eu tenho medo.

Quem tem mais medo

Eu acho que o Neto tem mais medo. O Alan é tranquilo. Até hoje. O Alan senta, deita e dorme. O Neto já é mais cagão nesse ponto. O que eu não gosto mesmo é de viajar à noite. Isso eu não gosto, prefiro viajar de dia. Há uns 15, 20 dias atrás eu retornei de São Paulo para Chapecó à noite e a gente não conseguia pousar porque tinha muita neblina. Foi meu primeiro voo que eu não consegui pousar, tive que voltar, era à noite, eu não enxergava nada, e aí bateu um desespero, não vou te mentir.

Família aflita

Eles ficam muito preocupados, essa própria viagem que eu citei, meu pai ligou no aeroporto de Florianópolis para perguntar o que tinha acontecido, porque eu ainda não tinha dado notícia. Eu sempre dei notícia aos meus pais. E depois do que tudo que aconteceu meus pais ficam bastante preocupados.

Esporte paralímpico

Se eu falar que não faz parte dos meus planos eu vou estar mentindo, mas não é minha meta. Eu quero voltar a praticar esporte, para voltar a ser ativo, mas não quero praticar esporte como alto rendimento nesse momento. Se eu quiser abraçar o mundo eu não vou fazer nada. Eu tenho muita coisa para fazer em Chapecó, agora eu quero ser um gestor também. Eu vou voltar a praticar esportes, eu tenho que me redescobrir dentro do esporte, até porque agora eu não posso ter muito impacto no tornozelo, eu vou ver o que eu posso fazer, quem sabe lá na frente, daqui uns anos. Ainda é muito recente de tudo que aconteceu.

Minha lesão mais grave foi na C2 da cervical. Eu coloquei dois parafusos na cervical. Estava a dois centímetros da medula. Eu ainda sinto algum desconforto, porque mexeu muito na musculatura do pescoço. Essa lesão foi a mais grave que eu tive.

Ideia de amputar o pé esquerdo

Do meu tornozelo (esquerdo) passou pelos médicos brasileiros, muito pelos médicos do clube, o Dr. (Carlos) Mendonça, o Mario Gotto, o Dr. (Marcos) Sonagli foi um cara que… Eu lembro muito do Dr. Sonagli porque, como tinham muitos pacientes, eles se revezavam, e eu lembro muito do Dr. Sonagli ficar mais comigo. Foi ele para fazer a amputação (da perna direita) e ele brigou muito para não amputar o meu tornozelo esquerdo. Lá na Colômbia queriam amputar minha perna para cima do joelho, porque eu peguei uma infecção generalizada, tive que ser entubado de novo. E falaram para minha família: olha, família, vocês vão ter de voltar para hotel, não vai dar para vocês acompanharem ele e, infelizmente, se preparem para o pior, porque ele pode não voltar. E aí começou a ficar preta minha perna, começou a subir, e aí o Dr. Sonagli não deixou. Queriam amputar meu tornozelo e o Dr. não deixou, junto com o Dr. Mendonça, não deixaram. E aí foi dando tempo ao tempo, eu não fechei meu coto na Colômbia nem em São Paulo, fui fechar lá em Chapecó. O que me salvou também foram os curativos à vácuo. Eu tinha dois curativos à vácuo tanto no meu coto quanto no meu tornozelo. Isso ajudou bastante, expulsavam as coisas ruins, me ajudou bastante. E lá em Chapecó fecharam tanto o meu coto quanto o meu tornozelo.

Eu vim da Colômbia, fui para o (Hospital Albert) Einstein, fiquei uma semana. Cheguei de madrugada, de manhã eu já estava operando a cervical. Depois fui para Chapecó. Lá em Chapecó eu fiquei 36 dias (internado). Eu fiquei 17 dias na Colômbia, sete dias aqui (SP), e 36 dias em Chapecó.

Vida de cobrança como dirigente

A minha vida todo como atleta era assim, sendo cobrado, sendo julgado. Vai chegar o momento, já chegou o momento de eu trabalhar, de retomar minha vida. E como eu botei como meta ser um gestor, um gestor dentro do clube, da própria chapecoense, eu sei que vai ter críticas, vai ter elogios, então, não tem porque eu ficar me abalando

Vida pessoal

Eu tinha casamento dia 16 de dezembro de 2016, e aí tudo aconteceu e a gente teve que adiar…

Plano de ter filhos

Com certeza. Acho que ano que vem, acho que ainda está cedo ainda. Eu preciso voltar à ativa, ela se formou em Educação Física, vai defender sua tese no mestrado, a gente estando bem encaminhado a gente vai pensar em ter filhos, porque eu quero muito ter filhos, é uma pressão da família, uma pressão dos amigos. A gente está bem pressionado, mas a gente também quer. A gente quer, mas, tudo no seu devido lugar, no seu devido tempo.

Como filhos saberão de tudo

Eu hoje não imagino, mas sei que isso vai acontecer. Não tem como fugir disso, querer esconder alguma coisa. Não é mostrar, mas se por ventura meus filhos vieram até mim, eu vou poder contar algumas coisas do acontecido, mas sempre reforçando o milagre da vida, o milagre de a gente estar vida, mostrar aos meus filhos que Deus existe, a valorização das coisas simples da vida, porque a gente nunca sabe o dia de amanhã.

Trabalho social

Eu vou montar também uma clínica de prótese em Chapecó junto com o pessoal que me reabilitou aqui em São Paulo.

A futilidade no futebol

Claro que a gente procura conversar com eles e falar sobre o que aconteceu com a gente, sobre a valorização das coisas simples da vida, o simples fato de você poder ir ao banheiro, de estar em pé, de abraçar alguém. Poder abraçar uma pessoa em pé fez uma diferença grande para mim. O que eu queria era poder ficar em pé, depois dar os primeiros passos, depois poder abraçar meus pais, minha esposa. São essas coisas que passam despercebidos por nós no dia a dia e que fazem uma diferença muito grande, mas você só nota quando está em uma situação como eu estive. A gente procura sempre falar para todos para aproveitar esse momento, essa chance. Isso que fica. Tem uma frase que eu gosto: A gente nasce sem nada e morre sem levar nada. É poder aproveitar o dia de hoje, porque o amanhã pertence a Deus.

Os seis sobreviventes

Alan Luciano Ruschel
Lateral da Chapecoense
Jakson Ragnar Follmann
Goleiro da Chapecoense
Hélio Hermito Zampier Neto
Zagueiro da Chapecoense
Rafael Henzel
Jornalista
Erwin Tumiri
Técnico da aeronave
Ximena Suarez
Comissária de bordo


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