A cor da fé - Gazeta Esportiva
Fernanda Silva
São Paulo
06/27/2018 08:00:32
 

Não era superstição. O branco tinha sido tão ingrato com o Brasil em 1950, quando perdeu a final para o Uruguai em casa, que os jogadores se recusavam a vesti-lo novamente. Não queriam e não entrariam em campo com o segundo uniforme. A uma vitória de conquistar seu primeiro Mundial, na Copa do Mundo de 1958, os brasileiros souberam que o rival é quem usaria o tradicional amarelo. Eram os suecos. Em um sorteio pela cor da vestimenta no embate, os anfitriões levaram a melhor. E, se os liderados por Vicente Feola vestissem branco outra vez, tinham certeza de que seriam derrotados.

Depois de cinco partidas usando o amarelo canarinho em uma trajetória sem derrotas até a decisão, era preciso uma outra cor: amarelo não podia pela regra. Branco fora de cogitação, para remediar. Veio, então, o azul. “Foi aí que começou a nossa vitória”, lembra Pepe, jogador da Seleção naquele ano. Era véspera da final. Paulo Machado de Carvalho, chefe da delegação, chegou na concentração dos brasileiros e os avisou que eles não poderiam usar o uniforme número um. Mas a nova escolha veio com otimismo e emocionou até os mais durões dos selecionados.“Vamos jogar com a cor azul, que é a cor do manto de Nossa Senhora Aparecida. Ela vai nos proteger, vocês podem ter certeza disso”, declarou, também comovido, o comandante. Cerca de 28 anos antes, a Igreja Católica havia proclamado a santinha de barro como Padroeira do País. Ela era muito mais do que um símbolo da fé nacional: era a própria fé dos brasileiros.

Foi aí que começou a nossa vitória

“Nossa Senhora Aparecida vai nos proteger e nós vamos levar essa Copa”, relembra Pepe sobre o momento em que o anúncio da mudança de cor foi feito. “Poxa vida. Isso foi importante. O time era bom e, com essa confiança que o Paulo Machado passou para nós, sabíamos que podíamos ganhar da Suécia. Tínhamos quase a certeza que seríamos campeões”, recorda o senhor, hoje, aos 83 anos, sentado no sofá de sua casa em Santos.

Muito usado antes de a Seleção ser intitulada de “canarinho”, esta seria a primeira vez que o azul seria vestido em uma Copa do Mundo. “Na cidade de Boras, centro têxtil da Suécia, que ficava a 20 km da concentração brasileira, foram encontradas camisas azuis, um pouco mais escuras que o azul-anil da bandeira”, conta Max Gehringer, autor do livro “Almanaque dos Mundiais”.

O problema é que as camisas compradas em Boras não tinham numeração. Era preciso descosturar os escudos da CBD e a numeração das camisetas amarelas para pregá-los nas azuis. O trabalho ficou para o roupeiro da Seleção, Francisco de Assis. “Treze camisas da marca Idrot e mais os números soltos, custou 35 dólares da época”, conta Gehringer.

Guarde e governe 

A fé era parte importante da preparação dos jogadores a cada partida. “Antes dos jogos, eu fazia muitas orações para eu não me machucar”, relembra Pelé, em entrevista exclusiva à Gazeta Esportiva. Ele não era o único a pedir intercessão divina pouco antes de entrar nas quatro linhas . “A gente ouvia a preleção e cada jogador fazia sua oração. Quando entrava no campo, a maioria se benzia, ou fazia ‘pelo sinal’, pelo menos”, conta Pepe, que emenda. “Todos rezavam pedindo para que tudo corresse bem e que ninguém se machucasse”. Às 15 horas (no horário local, 11h no Rio de Janeiro) do 29 de junho de 1958, começou a decisão, que tinha ingressos esgotados.

Antes dos jogos eu fazia muitas orações para eu não me machucar

Graças às orações, à sorte ou ao destino, o azul levou a melhor por 5 a 2, com gols de Pelé (dois), Vavá (dois) e Zagallo. A vitória naquele campo pesado e molhado da chuva da noite anterior, entretanto, não valia apenas o jogo. Era o auge dos brasileiros. O lugar mais alto do pódio diante das 52 mil pessoas que lotavam o estádio. Na voz de Arthur Drewy, presidente da Fifa, foi anunciado em inglês: “Neste momento, proclamo campeã mundial de futebol a representação do Brasil”. Foi, então, a primeira vez que um capitão, Bellini, tremendo, beijava a Taça Jules Rimet e a erguia – feito que se repetiria anos a fio.

Belini foi o primeiro a erguer e beijar a Taça (Foto: Acervo/Gazeta Press)

“O Brasil tinha aquele molejo que os outros não tinham. Os suecos eram fortes, marcavam bem, mas não tinham o talento, a categoria, a improvisação do futebol brasileiro”, avalia Pepe. Como nas demais partidas, por estar lesionado, ele acompanhou o triunfo das arquibancadas. “Sempre com uma pontinha de insegurança, mas com 99% de certeza que seríamos campeões e o Brasil estaria em festa”.

A grande lição foi provar que o futebol se ganha dentro do campo

“Era o nosso primeiro título de Copa e jogando com a seleção da casa. Foram muito difíceis os primeiros 20 minutos. Depois passou o nervosismo e a equipe jogou confiante”, destaca Pelé, dono de um gol emocionante no minuto final do embate. Ele ainda marcou outro, aos 10 minutos do segundo tempo, e contou com dois tentos de Vavá e um de Zagallo, para somar os 5 a 2 em cima dos liderados por George Raynor.

“Foi tudo muito emocionante. Foram momentos inesquecíveis que até hoje estão na minha memória. A grande lição foi provar que o futebol se ganha dentro do campo. Como a Seleção Brasileira era muito jovem e desconhecida, não acreditavam no Brasil”, conta Pelé, o mito que nascia, e mal sabia o que esperar quando voltasse para casa.

FICHA TÉCNICA
BRASIL 5 x 2 SUÉCIA

Local: Solna Fotbolistation, Estocolcomo (Suécia)
Data: 29 de junho de 1958
Horário: 15 horas, na Suécia (11 horas pelo fuso horário do Rio de Janeiro)
Árbitro: Maurice Guingue, da França
Assistentes: Albert Dusch (Alemanha) e Juan Gardeazabal (Espanha)
Gols: BRASIL: Vavá, aos 9 e 32 minutos. Pelé aos 55 e aos 90 e Zagallo, aos 68; SUÉCIA: Nils Liedholm aos 4 minutos e Agne Simonsson, aos 80.

BRASIL: Gilmar; Djalma Santos e Belini; Zito, Orlando e Nilton Santos; Garrincha, Didi, Vavá, Pelé e Zagalo
Técnico: Vicente Feola

SUÉCIA: Svensson; Begmark e Axbom; Borjesson, Gustavsson e Parling; Liedholm, Hamrin, Fren, Siminsson e Skoglung
Técnico: George Rayno



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