A corrida pela primeira estrela - Gazeta Esportiva
Fernanda Silva
São Paulo
06/25/2018 08:00:28
 

É dentro de uma sacola de papelão, dessas de casas de alianças e joias, onde José Macia guarda suas três raridades. Com alguma dificuldade para andar, ele levanta do sofá de seu apartamento, na baixada santista, e se encaminha à estante onde as peças estão encostadas. Cuidadosamente, as mãos macias cercam os três cadernos e os retiram da embalagem.

Vendo-os gastos, rasgados e quase aos pedaços, Pepe, como é conhecido, pede atenção. “É que isso é muito precioso”, explica. Ele abre a primeira página e mostra: “Aqui tem todos os jogos que disputei na minha carreira”. Em uma folha quase parda pelo tempo, com as pontas inferiores rasgadas, ele tem registrado um dos grandes títulos de sua vida. Apesar de não ter entrado em campo na ocasião, em um pequeno texto escrito à caneta esferográfica azul, abaixo da escalação, ele anotou detalhes para que nunca fosse esquecido.

Corria o ano de 1958. Pepe era considerado um dos principais nomes do futebol brasileiro, num período em que os bons mais ficavam em terras tupiniquins do que iam à Europa. Ele era prova disso. Ao seu lado, jogando no Santos Futebol Clube, Pelé. A dupla, naquele ano, não poupava bom futebol dentro das quatro linhas. Pepe tinha apenas 23 anos, Pelé era o caçula, 17. Juntos, foram convocados para integrar, pela primeira vez, a Seleção Brasileira de futebol em uma disputa de Copa do Mundo.

Poucos jogadores eram famosos fora do Brasil. A questão era saber como eles se comportariam em uma Copa

Seria aquele o ano da consagração do futebol brasileiro, que já repercutia mundo afora, mas ainda não era o que é hoje. Todo mundo via a malemolência, era fato. Mas faltava o título. Não faltava, entretanto, vontade e técnica. Esses, talvez, foram os diferenciais na sexta Copa do Mundo disputada pelos nacionais. Os jogadores de verde e amarelo, em 58, não carregavam uma estrela. Era pior. Traziam consigo o fardo das derrotas dos dois últimos torneios. Na Copa de 1950 o Brasil foi batido pelo Uruguai, em casa, e na de 1954, pela Hungria. “Em 1950, a acusação foi de que os jogadores amarelaram na hora da decisão. Em 1954, o juiz inglês Arthur Ellis foi acusado de ter roubado o Brasil, mas isso foi só desculpa. Os filmes da partida mostraram que não houve roubo, e os jornalistas estrangeiros, neutros, atestaram que o Brasil foi derrotado pelo excessivo nervosismo de seus atletas”, explica Max Gehringer, autor do livro “Almanaque dos Mundiais”.

Com uma história cravada a ser superada, tinha chegado a vez de novos nomes medirem suas forças. Para se ter uma ideia das novidades, da Seleção que havia disputado a Copa de 1954, somente um jogador atuou como titular no primeiro jogo de 1958: o meia Didi, do Botafogo. “Com exceção dele, poucos jogadores eram famosos fora do Brasil. A questão era saber como eles se comportariam em uma Copa, um torneio de tiro curto e eliminações diretas, em que uma boa ou má atuação, já na primeira partida, pode definir o destino de uma seleção”, destaca Gehringer.

Fim antes do começo

A Seleção começou com desfalques na Copa de 1958 (Foto: Acervo/Gazeta Press)

Foi por meio de uma ligação da diretoria do Santos FC para o bar do “Velho Macia”, pai de Pepe, em São Vicente (SP), que o jogador soube da sua convocação. “O velho Macia, meu pai, liberou: ‘bebida para todo mundo aqui, hoje. Ninguém paga nada. Meu filho foi convocado para a Seleção Brasileira e vai à Suécia’”, lembra Pepe, sem medo de esboçar o sorriso.

Começou então, a história. Foram incansáveis treinos até a convocação final, que incluíram atividades em Poços de Caldas (MG), em Araxá (MG), no Pacaembu, na Capital paulista, além de amistosos com Paraguai, Bulgária e Corinthians. “Essa Seleção de 1958 foi a primeira que teve uma preparação física. Naquela época, ninguém se preocupava com isso mas, Paulo Machado de Carvalho, no comando da equipe, criou isso. Ele até colocou médico e dentista na delegação”, conta Carlos Augusto Marconi, engenheiro mecânico e aficionado na Copa.

Após os jogos e treinos, 22 jogadores foram selecionados para seguir à Europa. O embarque aconteceu no 24 de maio de 1958. No Continente Velho, dois desafios à frente. O primeiro deles, contra a Fiorentina, disputado na Itália, terminou com o placar favorável aos brasileiros: 4 a 0. Dois gols de Mazzola, um de Garrincha e outro de Pepe, que mostrava sua importância para equipe. Ele, ainda, não escondia a dedicação em campo e corrida — o máximo que podia — para tirar a bola dos rivais e fazer bonitos gols.

Por aí, você vê que foi maldade

O último embate antes da estreia na Copa, dessa vez contra a Inter de Milão, apesar de terminar com a vitória, teve fim dolorido para o Canhão da Vila. Foi outro 4 a 0, com tentos de Dino, Dida, Mazzola e Zagallo, contando também com bonitas defesas de Gilmar, mas que tirou Pepe da Copa.

“Pepe foi atingido deslealmente pelo ponta Bicieli no tornozelo direito por trás, quando, em velocidade, conduzia a bola com o pé esquerdo: torção gravíssima que o tirou do jogo e da Copa”, escreveu o próprio jogador no segundo de seus diários futebolísticos, sobre o episódio que até hoje lamenta. “Canhoto, eu só conduzia com o pé esquerdo. Por aí, você vê que foi maldade”, comenta hoje, aos 83 anos. Dias mais tarde do episódio, na mesma folha, José continuou: “Após o jogo, a Seleção viajou para a Suécia. Pepe viajou com chinelo”.

Começava então a Copa do Mundo de 1958.

A corrida pela primeira 

Ao todo, 16 países disputavam o Campeonato Mundial. Eles eram divididos em quatro grupos e o líder de cada um avançava para um turno final da Copa do Mundo. O Brasil entrou no grupo quatro, com Inglaterra, URSS e Áustria, considerado, na ocasião, o grupo da morte. Todos os ingressos para os três primeiros jogos dos comandados por Vicente Feola estavam esgotados. “Tentaremos pela sexta vez a glória de uma batalha que nos tem sido inglória. Uma chave difícil, nos espera”, escreveu o jornal A Gazeta Esportiva, no dia 9 de junho, data da estreia da equipe canarinho, que temia o frio como adversário para o bom desempenho dos brasileiros. “O Brasil se apresentará na condição de grande candidato e como único da América do Sul que participou e se sagrou finalista em toda a história do magno certame internacional”, destacava o impresso.

Tentaremos pela sexta vez a glória de uma batalha que nos tem sido inglória. Uma chave difícil, nos espera

Naquele dia, nem todas previsões erraram. Se a do tempo indicava um “belo sol, com ardos dos raios solares”, mas uma forte chuva atingiu o local, do outro, os palpites para dentro de campo foram corretos. A Áustria cultiva futebol de excelente estilo, fino e, por isso, era perigosa. O Brasil, do outro lado, não contava com, além de Pepe, a promessa Pelé e Oreco, ambos ausentes por contusão. A seu favor, era considerada a Seleção mais feliz dentre as competidores – e isso, eventualmente, seria um diferencial.

Os nacionais entraram em campo, às 19h no horário da Suécia, 15h do Rio de Janeiro, no estádio em Udevalla, vestindo as tradicionais camisas amarelas com golas e punhos verdes, calções azuis e meias brancas e como único adversário que nunca havia perdido para a Áustria – e saiu de campo assim, da mesma forma. A numeração dos nacionais tinha sido considerada “esdrúxula”. Isso porque a CBD deixou de dar o número aos jogadores no prazo previsto, fato que podia desclassificar a equipe. Sobrou então para o representante do Uruguai, sr. Vilizio, ordenar os jogadores. Do outro lado, os homens do “país das valsas” entraram no campo envergando camisetas brancas e calções escuros.

Pepe acompanhou as partidas da arquibancada (Foto: Sergio Barzaghi/Gazeta Press)

O estádio local, com capacidade de 25 mil pessoas, estava lotado. Do lado de fora, ainda, cerca de cinco mil pessoas assistiram a partida em um morro próximo ao local da estreia brasileira. O detalhe: 25 mil era o número de habitantes de Udevalla. No Rio de Janeiro, a mais de dez mil quilômetros dali, não era diferente. Em toda então Capital do Brasil vários alto-falantes foram espalhados em praças. Lá, entretanto, tinha a festa da vitória. “Quando foi anunciado o fim da partida, estouraram foguetes por toda parte, mostrando-se os cariocas felizes e imensos sorrisos nos lábios”, escreveu A Gazeta Esportiva. “Lutou muito a Áustria, mas caiu diante da maior eficiência dos brasileiros – ótimo o desempenho dos nossos craques no primeiro compromisso”, celebrava o jornal do dia seguinte.

Quando foi anunciado o fim da partida, estouraram foguetes por toda parte, mostrando-se os cariocas felizes e imensos sorrisos nos lábios.

No embate, aos 38 minutos do primeiro tempo, Mazzola foi o primeiro a balançar a rede. No início da segunda parcial, Nilton Santos fez seu tento para ver Mazzola voltar a marcar, aos 44. Para A Gazeta Esportiva, se a diferença de três gols favoráveis ao selecionado nacional pôde fazer pensar que o jogo foi calmo e sereno para as nossas cores, isso não ocorreu. “A peleja foi das mais difíceis”.

Essa foi considerada por Thomaz Mazzoni, enviado da Gazeta Esportiva para acompanhar o campeonato, a melhor entrada da Seleção em um Mundial até então. Isso porque o retrospecto, não era positivo. Duas vezes, apanharam na estreia. Duas, venceram o México, “adversário modesto”, uma foi uma vitória na prorrogação contra a Polônia.

A partida inicial, assim como as outras, Pepe acompanhou de longe. “Só jogávamos 11. Os outros ficavam na arquibancada. Ou íamos de agasalho ou de paletó e gravata, porque não havia troca”, recorda. Afastado e sem entrar no campo durante todo campeonato, sua próxima escrita no caderno de memórias futebolísticas desvenda os próximos episódios da série especial sobre a Copa do Mundo: “Brasil Campeão Mundial de 1958”, em letras garrafais.

QUARTA COPA DO MUNDO EM NÚMEROS
16 seleções
35 jogos
12 estádios em 12 cidades
126 gols
Média de 3.6 gols por partida e 26 mil torcedores
13 gols de Just Fontaine (França), artilheiro do mundial
Maior público: 50.928 (Brasil x URSS)
Menor público: 2.823 (Hungria x País de Gales)

DELEGAÇÃO BRASILEIRA

Chefe da delegação: Paulo Machado Carvalho
Secretário: Abílio de Almeida
Tesoureiro: Adolfo Marques Junior
Supervisor: Carlos Nascimento
Assessor técnico: José de Almeida
Técnico: Vicente Feola
Médico: Hilton Gosling
Preparador físico: Paulo Amaral
Massagista: Mário Américo
Roupeiro: Francisco Assis
Dentista: Mário Trigo de Loureiro



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