Olhar europeu - Gazeta Esportiva
Gabriel Ambrós*
São Paulo
03/09/2019 08:30:41
 

Para que as jovens estrelas brasileiras cheguem ao futebol europeu, o desenvolvimento dos atletas é acompanhado de perto por profissionais dos clubes do outro lado do Atlântico. Para além das análises de desempenho e estatística, os scouts são responsáveis por traçar uma analise de qualidade e potencial desses jogadores.

Em entrevista à Gazeta Esportiva, Sandro Orlandelli, scout do Manchester United responsável por analisar o futebol brasileiro, contou como funciona a avaliação feita, a estrutura de um clube como United e o que o time da Inglaterra busca em atletas do país.

Com passagens por Arsenal e Saint-Étienne como scout, e Athletico-PR e Santos como diretor de futebol e técnico, respectivamente, Sandro foi chamado pela CBF após a Copa de 2014 para auxiliar na criação de um departamento de scouting voltado para a Seleção. O brasileiro passou dois anos desenvolvendo a ideia, até ser chamado para trabalhar no United, onde segue atualmente.

Confira a entrevista completa:

Gazeta Esportiva – Hoje no mundo do futebol fala-se muito sobre scout, mas para o grande público, o termo ainda não é tão claro. O que é o scout? E qual a diferença para a figura mais tradicional do olheiro de antigamente?

Sandro Orlandelli – O scout é um departamento de recrutamento, que seleciona um perfil de jogador de acordo com a filosofia de jogo de um determinado clube. É uma forma de você encontrar jogadores para tomar as decisões e minimizar o erro. Na nossa compreensão, o futebol é uma atividade muito complexa. A forma de você ter um padrão de análises, de identificar esse talento, ajuda a minimizar o erro para você tomar uma decisão.

O vulgo olheiro, observa, ele tinha essa característica de identificar um jogador, mas não tinha um padrão definido, era mais pelo instinto dele, de encontrar um talento pela experiência. Era muito empírico.

O scouting na Europa tem o padrão definido, então depende da faixa etária, por exemplo. Se você vai trabalhar com categorias de base, garotos abaixo de 17 anos, o profissional precisa ter conhecimento em crescimento e desenvolvimento, em biomecânica, aprendizagem motora, para entender a fase maturacional de um menino, para entender se as ações de velocidade dele são compatíveis para a sua idade e se elas podem progredir ou não. Já um scouting na área profissional tem que analisar o momento do jogador, que é uma outra situação.

Sandro Orlandelli, scout do Manchester United (Foto: Fernando Dantas/Gazeta Press)

Gazeta Esportiva – Qual a diferença entre o scouting e a analise de desempenho?

Sandro Orlandelli – Se fala muito no Brasil da análise de desempenho com relação a scouting. Também é distorcido, na minha compreensão. Essas duas áreas são importantíssimas, elas interagem, mas são distintas.

O scouting é uma forma de analise qualitativa. Eu não vou me preocupar com a quantidade de passes que o jogador vai dar, mas sim com a qualidade do passe dele

Já a análise de desempenho, que pode ser análise de adversário, análise do seu time, análise tática, vem predominantemente de aspectos quantitativos, que ajudam muito até você dar a referência para ter a escolha de um jogador, como também para a construção, o desenvolvimento do seu time.

Gazeta Esportiva – Qual é a estrutura e a importância do departamento de scouting para o Manchester United?

Sandro Orlandelli – Na estrutura do Manchester hoje, somos por volta de 70, 76 profissionais no mundo, divididos em todos os continentes. Temos profissionais na Ásia, na África, em todo o continente europeu, todo o continente americano, então temos uma visão global. Também temos dois departamentos já subdivididos, o departamento de base e o profissional.

Para nós na Europa, o departamento de scouting ter profissionais para analisar para o clube é investimento. De repente, para os clubes no Brasil, pode ser visto como gasto, um gasto a mais

Por quê investimento? A quantidade de jogadores que a gente observa é a forma de você minimizar o erro. Quando você traz um jogador para o clube ele sai muito mais barato do que entrar no processo de tentativa acerto e erro.

Gazeta Esportiva – Quais são as preocupação do Manchester United na observação de jogadores do Brasil?

Sandro Orlandelli – Quando a gente vai analisar um jogador na América do Sul, no Brasil, o que a gente vai identificar é o poder de criatividade que esse jogador tem. Cada vez mais está acontecendo um fenômeno de redução de talentos criativos no mundo, e o Brasil, como característica, é o país que tem melhor matéria prima nesse quesito criatividade.

Existem dois produtos de jogadores. Um nós chamamos de produto final e o outro nós chamamos de potencial. O produto final é quando você vê um jogador como Neymar, Messi. Você já tem os números, você já sabe aquilo que ele vai produzir. Um jogador jovem, de categoria de base, ainda não chegou nesse processo, é a nossa expectativa.

O que nós fazemos na Europa é estimular situações de pressão, para que ele tenha essa oportunidade de resolver o problema. Porque no jogo quem vai ter que resolver o problema é sempre o jogador, não é treinador, não é o sistema, é o atleta.

Gazeta Esportiva – Como é o trabalho do departamento de scouting em competições como o Sul-americano sub-20 por exemplo?

Sandro Orlandelli – Eu trabalho com futebol europeu desde 2002 e tenho participado de quase todos os campeonatos sul-americanos. Modificou muito a presença dos clubes europeus no cenário sul-americano, é muito maior agora a presença hoje.

Então nessa competição, no campeonato sub-20, praticamente todos os principais clubes da Europa estavam presentes, com um profissional, ou com dois, mas estavam presentes acompanhando toda a competição. Pelo menos o que é importante para a gente é a primeira fase. A primeira fase proporciona uma quantidade maior de jogos em um curto espaço de tempo, e ao mesmo tempo ainda a fadiga, a resistência do jogador, não chegou no limite.

Gazeta Esportiva – É importante para os clubes europeus que os atletas cheguem jovens para aprender as características do futebol jogado lá?

Sandro Orlandelli – Quanto mais tardio o processo, quanto mais tarde você selecionar um jogador, você corre o risco desse jogador já ter a especialização de acordo com o perfil de jogo que existe aqui no Brasil, que é completamente diferente de lá. O risco é a adaptação do jogador para o futebol europeu demorar. Ainda mais na Inglaterra, o futebol inglês, a Premier League é o jogo que tem a maior intensidade de jogo no planeta e que é totalmente oposto aqui no Brasil.

Então se você seleciona um jogador, por exemplo, com 22, 23 anos, o risco é muito grande desse jogador não se adaptar para essa realidade que eu comentei para você e aí a chance de desastre no negócio é muito grande.

Sandro Orlandelli, scout do Manchester United (Foto: Fernando Dantas/Gazeta Press)

Gazeta Esportiva – Para você que trabalha observando o futebol brasileiro. Por que o Brasil não consegue padronizar um estilo de futebol na base, como a Alemanha e Bélgica fizeram recentemente, por exemplo?

Sandro Orlandelli – Primeiro a gente tem que entender que a nossa cultura não é própria somente do Brasil, a Argentina é assim, o Uruguai é assim. Cultura latina predomina a emoção. Então, quando você vem com uma forma mais estruturada de falar, projeto, na Europa é muito comum a gente falar em dez anos. Eu já tive algumas experiências em clubes brasileiros de apresentar projetos para desenvolvimento de jogador falando de dez anos, e é praticamente uma utopia. O brasileiro, na minha opinião, não enxerga isso. Um ano já é muito tempo.

Agora por quê? Porque a cobrança é muito maior do que lá fora. Desde o treinador, preparador físico, presidente, ou seja, todos os envolvidos. A nossa imprensa também, o modo de cobrar é diferente de lá fora. Nós somos muito imediatistas e a forma com que temos orgulho desses cinco títulos mundiais, conquistados com muito mérito, faz com que nós tenhamos menos paciência do que uma Bélgica.

O que é fato é o seguinte: o futebol de 1980, de 1990, ele não existe mais. Essas seleções que jogaram com o Brasil nessa época mudaram, elas mudaram e o jogo mudou também

Então, por exemplo, hoje, para ter uma ideia, nessa época, existiam 600 a 700 ações em um jogo. Hoje são 1000 ações. (Ações são todo o momento que você tem contato com a bola). O detalhe maior é que hoje, dessas 1000 ações, 60% delas são apenas um toque na bola ou dois no máximo. Para o brasileiro, que gosta do contato com a bola, que gosta de ver um jogador pegar a bola e pedalar, é difícil. Eu acho que tem que continuar, mas a velocidade dessa ação precisa ser mais rápida, porque não dá mais tempo, o jogador recebe pressão muito rápido, a velocidade do jogo é outra.

Acho que se nós conseguirmos nos adaptar a isso, acho que o Brasil é o único país do planeta que em dois anos consegue de novo a supremacia do futebol.

Gazeta Esportiva – O que você observa que melhorou no futebol brasileiro?

Sandro Orlandelli – Para o jogo melhorar, o campo tem que ser de alto nível. Então depois da Copa de 2014, a qualidade do gramado melhorou muito. É impossível você exigir e esperar um grande jogo, se o gramado é alto, é irregular, se a grama é uma grama que está muito unida uma com a outra. Ela não possibilita a velocidade da bola e isso é um assunto muito sério.

Eu percebi que o número de ações aumentaram bastante. Analisando nesses últimos dois anos, alguns grandes clubes estão conseguindo ter uma produtividade interessante. Até mesmo alguns clássicos, tem chegado em um caminho de jogos importantes da Europa.

Gazeta Esportiva – Os clubes brasileiros não tem a condição financeira do Manchester United, mas como o scouting pode ser útil no país?

Sandro Orlandelli – Um departamento de scouting, você pode fazer com um só profissional, como com dez, 20, 30, vai depender do seu orçamento. Acho que não existe a desculpa de falar ‘poxa, não posso ter um departamento porque eu não tenho receita para isso’. Dá para construir tranquilamente. O importante é captar profissionais.

Mas antes desse processo todo, o clube tem que definir uma filosofia.Têm clubes que a história é de propor o jogo, então como você vai pegar jogadores que não tenham uma naturalidade com o gesto com a bola, que não tenham facilidade de resolver problemas sob pressão.

Ou você tem clubes que são pequenos, o clube geralmente vai jogar 90% do jogos no ano fechadinho para buscar contra-ataque, como você vai ter jogadores, por exemplo, no ataque, no mínimo eles precisam ser rápidos. Se eles vão jogar do meio-campo para trás, eles tem mais 40 metros quando pegarem a bola, se não forem rápidos, o time não vai conseguir chegar nem no gol.

*especial para a Gazeta Esportiva



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