De olhos bem abertos - Gazeta Esportiva
Gabriel Ambrós*
São Paulo
03/08/2019 08:30:36
 

A saída precoce das promessas do futebol brasileiro rumo à Europa não passa apenas por investimento dos clubes do exterior na hora das grandes transferências. A observação de atletas passou por um processo de transformação, baseado na evolução tecnológica de todo o mundo.

Antes de qualquer dinheiro entrar para os cofres dos clubes brasileiros, as grandes equipes europeias já gastaram em estrutura. Em cada canto do país, profissionais de scouting (atividade que busca avaliar o desempenho qualitativo do atleta) monitoram atletas, dentro e fora de campo, em busca das próximas estrelas do país.

Olhar Europeu

Com passagens por clubes brasileiros, estrangeiros e CBF, Sandro Orlandelli é um dos mais de 70 profissionais que cuidam do departamento de scouting do Manchester Unites. Em entrevista à Gazeta Esportiva, o brasileiro contou com detalhes o que é o seu trabalho e como o gigante inglês monitora os atletas por todo o mundo.

“O scout é um departamento de recrutamento, que seleciona um perfil de jogador de acordo com a filosofia de jogo de um determinado clube. É uma forma de você encontrar jogadores para tomar as decisões e minimizar o erro. Na nossa compreensão, o futebol é uma atividade muito complexa”, explicou Sandro, desde 2016 no United.

“O vulgo olheiro, observava, mas não tinha um padrão definido, era mais pelo instinto dele, de encontrar um talento pela experiência. Era muito empírico. O scouting na Europa tem o padrão definido”, pontuou o brasileiro, diferenciando o trabalho realizado hoje com o realizado antigamente pela figura clássico do olheiro.

A forma de você ter um padrão de análises, de identificar esse talento, ajuda a minimizar o erro para você tomar uma decisão, explicou o scout.

Sandro Orlandelli, scout do Manchester United (Foto: Fernando Dantas/Gazeta Press)

“Quando a gente vai analisar um jogador na América do Sul, no Brasil, o que a gente vai identificar é o poder de criatividade que esse jogador tem. Cada vez mais está acontecendo um fenômeno de redução de talentos criativos no mundo, e o Brasil, como característica, é o país que tem melhor matéria prima nesse quesito criatividade”, contou Sandro.

Sandro deu detalhes da estrutura do United e afirmou que a condição financeira inferior dos clubes brasileiros não é desculpa para a ausência de um departamento de scouting. “Na estrutura do Manchester hoje, somos por volta de 70, 76 profissionais no mundo, divididos em todos os continentes. Temos profissionais na Ásia, na África, em todo o continente europeu, todo o continente americano, então temos uma visão global”, explicou.

“Um departamento de scouting, você pode fazer com um só profissional, como com dez, 20, 30, vai depender do seu orçamento. Acho que não existe a desculpa de falar ‘poxa, não posso ter um departamento porque eu não tenho receita para isso’. Dá para construir tranquilamente. O importante é captar profissionais. Mas antes desse processo todo, o clube tem que definir uma filosofia”, afirmou Sandro.

Confira a entrevista completa com o scout do Manchester United no próximo sábado, na terceira parte do especial.

Visão brasileira

O maior investimento no scouting por parte dos clubes europeus é sentido também pelos profissionais no Brasil. O técnico Osmar Loss, com longa passagem pelas categorias de base do Internacional e Corinthians, citou uma mudança de perfil na última década. “De dez anos para cá, a maioria dos grande clubes europeus começou a contar com um profissional trabalhando no Brasil para poder garimpar esses jogadores, observar, mandar relatório e acho que isso se tornou uma grande dificuldade”, contou o treinador.

“Há um tempo eu me lembrava apenas do Manchester United e do Arsenal. Hoje em dia qualquer clube da Europa tem esse profissional. Isso tem aumentado o sonho desses atletas de chegar na Europa muito cedo”, analisou o atual comandante do Guarani.

“Os caras vem para o Brasil, assistem jogos, treinamentos, conhecem a família do atleta, estão muito avançados nesta triagem. Sabem que o risco é maior contratando um jogador de 18, 19 anos, então se preocupam em observar mais”, disse Loss.

Como treinador das categorias de base, Osmar Loss percebeu o aumento de scouts trabalhando no Brasil (Foto: Fernando Dantas/Gazeta Press)

Com passagem pelas categorias de base da Seleção Brasileira, Rogério Micale confirmou as impressões de Loss. “É uma forma que os clubes estão utilizando, com um custo baixo para eles, para ter um acompanhamento, em não só um jogo, mas em ter uma pessoa de confiança no Brasil para acompanhar passo a passo”, relatou o treinador.

“Quando existe o interesse, existe até uma proximidade com a família para ver como que funciona o entorno do atleta. Hoje os grandes clubes do mundo estão cada vez mais se aperfeiçoando, investindo mais, para errar menos”, explicou.

O treinador aproveitou para fazer uma crítica aos clubes brasileiros, que na visão dele, não investem o suficiente neste setor. “Não tinha nenhum observador de clube brasileiro no Sul-americano na minha época [2017]. Este ano fiquei sabendo que tinha um, do Palmeiras. E esse é só um exemplo de como o mundo trata o futebol e de como nós tratamos”, declarou.

Depois chega a hora de contratar e o diretor sai perguntando para todo mundo e alguém fala ‘tem alguém lá na Venezuela’, aí o dirigente pergunta quantos jogos assistiram do atleta e respondem ‘não vi, mas tem uma fita dele aqui’, brincou Micale.

Micale criticou a falta investimento das equipes brasileiras no monitoramento de atletas (Foto: Djalma Vassão/Gazeta Press)

O descontentamento do técnico está relacionado à oportunidade perdida dos clubes brasileiros de encontrar destaques, ainda jovens e de toda a América do Sul, em torneios como o Sul-Americano sub-20. “Como eu trabalhei na área, tive a oportunidade de conhecer o Soteldo [camisa 10 do Santos]. A gente tem abertura para um banco de dados muito grande, mas geralmente não tem muitos brasileiros que têm acesso à isso”, comentou.

Foco no empréstimo

Além do monitoramento e avaliação dos atletas desde cedo, outra estratégia muito explorada pelos clubes europeus em relação aos jovens destaques é o empréstimo. Como muitas joias chegam à Europa ainda sem condição de atuar em alto nível nos principais clubes, é comum que as equipes emprestem os atletas para que se adaptem ao futebol europeu enquanto ganham experiência em campo.

O empréstimo foi abordado por Loss como um grande diferencial entre os clubes europeus e do Brasil. “Funciona muito melhor lá na Europa do que aqui na minha opinião. Os clubes realmente têm equipes parceiras, solidárias, que servem até muitas vezes para ver qual a capacidade de ambientação desse atleta, principalmente falando sul-americanos”, relatou o treinador. “As parcerias são mais claras e mais seguras”, completou.

“Aqui no Brasil os interesses são diferentes sobre o time que está absorvendo o atleta e o desenvolvimento para as equipes que estão emprestando. Muitas vezes quem recebe emprestado usa esse atleta mais para completar o plantel, do que com o intuito de utilizar. O que empresta, empresta para dar rodagem, dar minutagem, e às vezes nenhuma das coisas acontecem”, exemplificou.

“As vezes você tem 25 jogadores, precisa fazer 30 e aí acaba pegando pegando esses jogadores. Não tem clareza daquilo que se propõe para quem empresta e para quem recebe, criticou Loss.

Testemunha de como o processo é feito na Europa, o meia Matheus Pereira, revelado no Corinthians e que hoje defende o time B da Juventus declarou: “aqui esse processo de empréstimo é bem mais organizado do que no Brasil. Na Europa os clubes não emprestam por emprestar, mas sim para jogador ganharem mais experiência e voltar mais maduro”.

Após chegar jovem à gigante do futebol italiano, o meio-campista foi emprestado três vezes até se estabelecer no time B da Vecchia Signora. “Acho que me serviu para ganhar uma bagagem a mais, experiência, está me ajudando bastante”, concluiu.

Em busca de afirmação



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