“Tudo que é possível a Chapecoense fez” - Gazeta Esportiva
Tiago Salazar
São Paulo - SP
12/02/2017 08:30:49
 

Era 2h30 da madrugada do dia 29 de novembro de 2016 quando Ivan Tozzo foi despertado em sua casa por causa de uma ligação inesperada. Do outro lado da linha a secretária da Chapecoense informava o então vice-presidente do clube, cargo que ocupa até hoje, sobre a queda do avião que levava a delegação verde para a Colômbia. “Eu não consegui acreditar no momento. O choque é tão grande que você não sabe nem como agir. Levei um tempo para pensar no que fazer, ela chorando… Pensei até que eu estava sonhando”, conta o homem de 63 anos.

Entre reuniões junto a dirigentes da Chapecoense e tarefas referentes a uma empresa do ramo de alimentos que comanda, Ivan Tozzo atendeu a reportagem da Gazeta Esportiva. Espontâneo e direto em suas respostas, o responsável por liderar a reconstrução do clube catarinense imediatamente após a tragédia ainda sofre com a repercussão íntima do acidente, mas se orgulha de seus feitos e se posiciona firmemente sobre a delicada questão que remete ao relacionamento com os familiares das vítimas do voo Avro  RJ-85 da LaMia.

“Se passou um ano já, mas não tem como esquecer. A todo momento a gente lembra, toda vez que a gente vai no estádio, no vestiário, você fica olhando certas coisas, acaba lembrando. E não só dos jogadores, como também da diretoria. Toda vez que você entra na sala de reunião, olha para os lados e você vê que as pessoas não estão mais”, relata, antes de demonstrar toda sua gratidão por estar vivo. Afinal, a programação previa que Ivan Tozzo embarcaria junto aos colegas.

“Desisti de última hora. No último dia, não estava bem comigo mesmo, algo dizia que não era para eu viajar, não estava bem e não fui. Aí você percebe e pensa: eu podia estar lá. Uma coisa assim que eu agradeço a Deus por não ter ido nessa viagem. Imagino que a gente ficou para dar continuidade ao clube, uma missão que eu tenho”.

Missão essa que acabou no colo do dirigente em função do falecimento do presidente à época, Sandro Luiz Pallaoro, além de outros oito membros da ex-composição diretiva do clube.

“Eu me pergunto muitas vezes onde eu achei força para tudo isso, porque o que eu enfrentei eu jamais imaginei que poderia enfrentar. Aos 63 anos hoje, ter de enfrentar uma dificuldade daquela… Foi força de Deus, só pode. Meu filho chegou a perguntar: ‘Pai, como tu (sic) conseguiu?’. Foi força divina”, responde o marido, pai de dois filhos e vô de três netos.

Quando deixa a emoção de lado e pensa friamente sobre algumas questões que surgiram nos dias, meses posteriores à queda da aeronave que acabou por protagonizar o maior acidente aéreo esportivo da história, Ivan Tozzo não esconde certa decepção com o mundo do futebol.

“Três meses depois eles queriam ganhar de nós, passar por cima de nós. Aquela comoção acabou. Fomos até certos clubes pedir jogadores, ninguém queria vir para cá. Não estou generalizando, mas teve muitos clubes que fecharam portas para nós, prometeram e não cumpriram”, diz o entusiasta em refutar a ideia de deixar a Chapecoense imune ao rebaixamento por até três anos seguidos.

“Não aceito esse tipo de ajuda, porque nós queremos, sim, ganhar jogos dentro do campo, classificar e continuar na elite do futebol, mas queremos o resultado dentro do campo, não ser ajudado por outros clubes, porque iam pensar: ‘a Chapecoense é a coitadinha, está lá porque deixamos’. E qual seria o comprometimento dos jogadores sabendo que o clube já estaria garantido na Séria A?”, aponta.

O tom saudosista e orgulhoso se transforma levemente em uma fala mais pausada e reflexiva quando a relação com os familiares das vítimas entra em pauta. Ivan Tozzo não perde a segurança nas palavras, parece até interessado em expor o lado do clube diante de algumas polêmicas, mas não esconde que houve uma falha inicial no trato com as pessoas que estiveram em seu estado mais vulnerável diante dos acontecimentos.

“Olha, uma coisa eu vou falar. Tudo que é possível a Chapecoense fez para as famílias”, garante. “Muitas vezes as esposas tinham muita pressa, e nós, além de cuidarmos das partes das famílias, temos de cuidar do futebol. Temos um clube para cuidar”, explica, antes de fazer mea-culpa.

“A Chapecoense sempre foi muito boa com as famílias, sempre recebemos bem, mas tínhamos um departamento jurídico que muitas vezes não estava sendo educado, não recebia bem, houve um pouco de atropelo nisso, e muitas pessoas chegavam até o clube nervosas e muitas vezes o pessoal não sabia absorver. Trocamos o jurídico todo, temos outras pessoas hoje”.

Talvez depois de tantas adversidades superadas e afazeres que fogem ao âmbito do futebol, a aproximação e o desgaste com os assuntos pendentes que remetem às famílias e ao minucioso direcionamento jurídico parecem ser as abordagens que ainda conservam uma certa polêmica e, principalmente, contraversões.

“Eu sempre falo, gostaria que uma pessoa, parente ou jogador, viesse falar na diretoria o que é que a Chapecoense deixou de fazer. A Chapecoense não deixou de fazer virgula nenhuma”, ratifica Ivan Tozzo, claramente incomodado.

“Hoje quem está pagando advogados, viagens, uma enorme despesa? A Chapecoense paga tudo isso para quem? Para um dia conseguir esse dinheiro para pagar as famílias. Também perdemos ativos, ficamos no zero. É difícil. Pode ser que estejam olhando só o lado delas, mas jamais a Chapecoense se cresceu mais ou se promoveu em uma tragédia”, garante, para concluir com a revelação de um documento que está sendo produzido e será utilizado com uma espécie de prestação de contas.

“Nós estamos fazendo um relatório de tudo que a Chapecoense fez desde o dia da tragédia até o fim do Campeonato Brasileiro. Vamos passar para todo mundo: o que nós fizemos, o que nós pagamos, vamos contar a história da Chapecoense, inclusive números, indenizações e vamos fazer com que o Brasil inteiro saiba o que fizemos, porque muitas pessoas não sabem”.


Aqui você confere, na íntegra, a entrevista exclusiva que Ivan Tozzo concedeu à Gazeta Esportiva para o especial de um ano da tragédia com o avião da Chapecoense:

Um ano

Na verdade, se passou um ano já, mas não tem como esquecer. A todo momento a gente lembra, toda vez que a gente vai no estádio, no vestiário, você fica olhando certas coisas, acaba lembrando. E não só dos jogadores, como também da diretoria. Toda vez que você entra na sala de reunião, olha para os lados e você vê que as pessoas não estão mais. É uma coisa triste, mas é vida que segue. Difícil de esquecer, um ano se passou, parece que passou rápido, mas a lembrança continua, porque a todo momento a gente está falando, e é whatsapp, é vídeo, quando você vai no campinho, quando vai no shopping, vai no boteco… lembra deles. Mas a gente tem que superar isso.

A notícia do acidente

Foi um choque. Eu estava dormindo, recebi a notícia às 2h30, muita chuva aquele dia, muita chuva mesmo. Eu recebi um telefonema da nossa secretária do clube, ela ligou desesperada, dizendo que o avião tinha caído. Eu não consegui acreditar no momento. O choque é tão grande que você não sabe nem como agir. Levei um tempo para pensar no que fazer, ela chorando… Pensei até que eu estava sonhando. Dei um tempo e liguei para ela novamente e combinamos de nos encontrarmos no clube. Abrimos a porta às 3h, totalmente perdidos, não sabíamos o que fazer. Chamamos o rapaz para abrir o vestiário, ficamos lá naquele desespero, começou a chegar gente, esposas, conhecidos e foi uma choradeira total.

Desistência em cima da hora

Era para eu estar junto, desisti de última hora. Eu iria para São Paulo, onde teríamos o jogo contra o Palmeiras, e de lá embarcar (para a Colômbia). E eu, no último dia, não estava bem comigo mesmo, algo dizia que não era para eu viajar, não estava bem e não fui. Aí você percebe e pensa: eu podia estar lá. Uma coisa assim que eu agradeço a Deus por não ter ido nessa viagem. Imagino que a gente ficou para dar continuidade ao clube, uma missão que eu tenho, por isso que até hoje eu divido minhas funções com o clube e minha empresa. Temos essa missão para cumprir até o fim do mandato.

Os números da tragédia

71
Mortos
20
Membros da imprensa
19
Jogadores
14
Membros da comissão técnica
9
Dirigentes
7
Membros da tripulação
2
Convidados
+300
Trabalharam no resgate
45
Peritos na identificação das vítimas

Ação no momento de comoção

Vou te dizer uma coisa. Eu me pergunto muitas vezes onde eu achei força para tudo isso, porque o que eu enfrentei eu jamais imaginei que poderia enfrentar. Aos 63 anos hoje, ter de enfrentar uma dificuldade daquela… Foi força de Deus, só pode. Meu filho chegou a perguntar: ‘Pai, como tu (sic) conseguiu?’. Foi força divina. Graças a Deus, deu tudo certo, conseguimos organizar velório, mandar médicos para a Colômbia, atender a imprensa, dar coletiva com 100 repórteres, coisa que nunca fui acostumado, receber os 51 caixões chegando, ter de fazer discurso, confortar as famílias… Fiz muitas coisas que não sei de onde tirei forças. Foi difícil, mas eu superei. Depois que tudo acabou eu não conseguia caminhar, o corpo começou a reagir. Fiquei na base da massagem, do remédio.

Ações efetivas de ajuda

Houve clubes que nos ajudaram. O São Paulo ajudou, o Palmeiras ajudou, emprestando jogadores e nós pagando metade do salário, o Flamengo também. Mas nós pagamos o salário, a maioria 50%. A grande ajuda foi da CBF, nos ajudou muito financeiramente. Foram R$ 5 milhões que para nós foi muito bom naquele momento, tivemos muitos gastos e foi através da CBF que conseguimos os aviões para aquele trabalho de trazer os corpos, otimizou bastante. Esse foi o reconhecimento que a gente teve. Teve renda do jogo do Brasil, todo esse dinheiro a gente reverteu para as famílias. Claro que tivemos muitos telefonemas, correspondências, pessoas querendo ajudar, com incentivos, palavras, e a gente se uniu muito forte.

Decepção com alguns clubes

A decepção muitas vezes é porque no início todo mundo queria ajudar. Três meses depois eles queriam ganhar de nós, passar por cima de nós. Aquela comoção acabou. Fomos até certos clubes pedir jogadores, mas ninguém queria vir para cá. Não estou generalizando, mas teve muitos clubes que fecharam portas para nós, prometeram e não cumpriram, mas outros nos ajudaram.

Veto a imunidade no Brasileirão

Na época da tragédia, os clubes se reuniram com a CBF para nos deixar por três anos na Séria A, sem risco de rebaixamento. Eu, na época, falei não. Não aceito esse tipo de ajuda, porque nós queremos, sim, ganhar jogos dentro do campo, classificar e continuar na elite do futebol, mas queremos o resultado dentro do campo, não ser ajudado por outros clubes, porque iam pensar: ‘a Chapecoense é a coitadinha, está lá porque deixamos’. E qual seria o comprometimento dos jogadores sabendo que o clube já estaria garantido na Séria A? Isso tudo pensei na hora e fui mal interpretado por certas pessoas, dizendo que sou orgulhoso, prepotente, por não ter aceito. Hoje estou dando entrevista dizendo que nós ganhamos dentro do campo, a Chapecoense está na Série A do ano que vem porque nós trabalhamos para isso, e não seria vergonhoso se tivesse que voltar para a Série B. Nós, graças a Deus, ganhamos o estadual, nos classificamos para Libertadores, que depois acabamos eliminados por uma fatalidade que não gosto nem de lembrar, e estamos na Séria A. Tudo isso foi trabalho.

As 71 vítimas fatais

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Responsabilidade pela tragédia

Não acho (que faltou cuidado do clube). Se pensou muito nisso. A Chapecoense já tinha feito uma viagem com aquela aeronave, em Santa Cruz de la Sierra, a Argentina também viajou, todo mundo tinha a maior segurança, todo mundo falava que era ótimo, mas como você faz uma pergunta para o piloto antes de entrar no avião? ‘Você abasteceu o avião?’. Foi uma irresponsabilidade total e isso não tem explicação, mas eu isento a culpa da Chapecoense. Não tem nada de economizar com viagem, foi aquela coisa que um maluco de um piloto achou que ia chegar tranquilo e não tinha margem de segurança (de combustível) nenhuma. E foi o que aconteceu.

Os cuidados nos voos

Preocupações a gente sempre têm, a gente quer saber sobre a apólice, e a gente procura saber qual é a companhia e o estado do avião, mas aquilo foi uma viagem para o exterior, era uma aeronave credenciada para a Conmebol para transportar clubes de futebol. Hoje a gente sempre comenta, até mais com preocupação, porque pelo o amor de Deus isso acontecer de novo, mas é fretamento.

Relação conturbada com as famílias

Olha, uma coisa eu vou falar. Tudo que é possível a Chapecoense fez para as famílias. Indenizações, jogos no exterior, seguros pagos, rescisões pagas, pagamos mensalidade para a ABRAVIC (Associação Brasileira das Vítimas do Acidente com a Chapecoense) para dar assistência para as crianças, fizemos tudo que era possível. Temos uma briga com advogados contra a LaMia, queremos trazer as indenizações para as famílias, mas muitas vezes as esposas tinham muita pressa, e nós, além de cuidarmos das partes das famílias, temos de cuidar do futebol. Temos um clube para cuidar.

A Chapecoense sempre foi muito boa com as famílias, sempre recebemos bem, mas tínhamos um departamento jurídico que muitas vezes não estava sendo educado, não recebia bem, houve um pouco de atropelo nisso, e muitas pessoas chegavam até o clube nervosas e muitas vezes o pessoal não sabia absorver. Trocamos o jurídico todo, temos outras pessoas hoje, estamos muito bem, tudo foi pago, temos muitas coisas para fazer em conjunto com as famílias.

Houve um acidente de trabalho, porque as pessoas foram trabalhar, e nós vamos indenizar todo mundo. O juiz que vai determinar quanto vamos pagar, queremos um prazo, parcelas, e vamos pagar, estamos pagando, fazemos tudo que é possível. É que muitas vezes as famílias têm pressa. Nós queremos acertar com todo mudo, estamos brigando com a LaMia e a parte referente ao Ministério do Trabalho vamos acertar também.

Lições para a vida

Eu principalmente tenho de pensar mais na vida. Pensar mais no dia a dia, pensar um pouco diferente, pensar que tem que conviver mais, ser mais amigo de todo mundo, não ter vergonha de abraçar as pessoas, dar atenção a todos, seja pobre ou rico. Nesses momentos você vê que dinheiro, tudo que a gente consegue não tem sentido nenhum. A gente aprende a ter mais afetividade, mais amor com as pessoas. A gente aprende a viver o dia a dia, momento a momento. A vida é muito boa e saber que perdemos tantos colegas… A gente tem que pensar em aproveitar bem a vida.

Chape mais forte

Eu acredito que a Chapecoense ficou mais admirada em questão de gestão. Como reconstruímos tudo novamente, começamos do zero, a maioria imaginava que íamos fechar, perdemos todos nossos ativos, tudo, mas ficamos mais admirados pela diretoria que montamos. O povo aqui gosta muito de futebol, a sociedade nos ajudou, todo mundo pegando junto e ‘vamos lá e vamos lá’, essas coisas que aconteceram. Muitos jogadores vieram jogar com muita vontade, para ajudar. E parece que essa ajuda foi muito forte, eles se doaram. A Chapecoense é uma família muito grande.

A ‘posse’ do drama

Acho que foi uma situação mal interpretada. Eu sempre falo, gostaria que uma pessoa, parente ou jogador viesse falar na diretoria o que é que a Chapecoense deixou de fazer. A Chapecoense não deixou de fazer virgula nenhuma. Tudo que é possível, na semana seguinte nós pagamos o prêmio, o seguro. Nosso clube estava muito bem organizado e pagou. Na semana seguinte depositamos em juízo a rescisão, tivemos os jogos internacionais, dividimos 50% da renda, jogos aqui no Brasil, jogos beneficentes, como do D’Alessandro, do Zico, muitos. Passamos todo o dinheiro para 68 famílias. Pagamos para imprensa, jogadores, diretoria, tudo nós fizemos, não deixamos uma virgula para trás.

A gente fez tudo que era possível. Nós temos que mexer no futebol também, não podemos chorar o dia inteiro, temos de tocar o futebol. Mas as famílias em primeiro lugar. Jamais deixamos de dar atenção. Hoje quem está pagando advogados, viagens, uma enorme despesa? A Chapecoense paga tudo isso para quem? Para um dia conseguir esse dinheiro para pagar as famílias. Também perdemos ativos, ficamos no zero. É difícil. Pode ser que estejam olhando só o lado delas, mas jamais a Chapecoense se cresceu mais ou se promoveu em uma tragédia. Sempre em primeiro lugar foi o ser humano. Fomos jogar na Espanha, fomos buscar dinheiro para as famílias, fomos convidados, o Papa pediu para irmos ao Vaticano para dar uma benção e trouxemos dinheiro. Muitas vezes ficamos revoltados com esses comentários. Foi legal que tu (sic) me fez essa pergunta. É bom esclarecer. Nós estamos fazendo um relatório de tudo que a Chapecoense fez desde o dia da tragédia até o fim do Campeonato Brasileiro. Vamos passar para todo mundo: o que nós fizemos, o que nós pagamos, vamos contar a história da Chapecoense, inclusive números, indenizações e vamos fazer com que o Brasil inteiro saiba o que fizemos, porque muitas pessoas não sabem.

Os seis sobreviventes

Alan Luciano Ruschel
Lateral da Chapecoense
Jakson Ragnar Follmann
Goleiro da Chapecoense
Hélio Hermito Zampier Neto
Zagueiro da Chapecoense
Rafael Henzel
Jornalista
Erwin Tumiri
Técnico da aeronave
Ximena Suarez
Comissária de bordo


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