“Deus usou o Follmann para salvar minha vida” - Gazeta Esportiva
Tiago Salazar
São Paulo - SP
11/28/2017 08:30:47
 

Sobreviver ao maior acidente aéreo já registrado dentro do mundo esportivo pode ser considerado uma dádiva. Como definir, então, o fato de um jogador de futebol, um dos seis escolhidos em meio ao desastre que acabou com a vida de 71 pessoas, apenas oito meses e uma semana depois de ser resgatado nas montanhas frias de La Unión, na Colômbia, entrar em campo para defender sua equipe em uma partida oficial? Alan Ruschel não só pode, como deve ser considerado um privilegiado. Antes de tudo isso, no entanto, um gesto inocente dentro da aeronave Avro RJ-85 da LaMia acabou por tornar o milagre de Alan Ruschel possível.

“É difícil você entender. Eu acredito que Deus usou o (Jakson) Follmann ali para salvar a minha vida. Para tudo tem um propósito, para tudo tem um por que, um para quê. Naquele momento acho que era Deus usando o Follmann, a gente nunca sabe o que poderia ter acontecido. Aconteceu o que aconteceu. O Follmann me chamou, eu fui sentar ao lado dele e hoje estou aí, estou vivo. São coisas inexplicáveis, é difícil eu falar. Posso falar que foi o Follmann salvou a minha vida. Acho que foi Deus usando o Follmann ali”, tenta explicar o próprio Alan Ruschel.

Entre as viagens da Chapecoense durante a campanha no Campeonato Brasileiro da atual temporada, o atleta de 28 anos fez uma pequena pausa para conversar com a Gazeta Esportiva sobre o que passou e o que ficou desses últimos 12 meses de aprendizado e muita reflexão. Ainda ofegante, após um puxado treino debaixo do sol paulistano, Ruschel abriu o sorriso quando soube que seu amigo de mais de uma década havia contado com detalhes à reportagem como acabou interferindo diretamente no seu ‘milagre’.

“A gente estava sentado no meio do avião, rente a asa. Estava sentado eu, sozinho, porque como era um voo longo, todo mundo sentava sozinho para poder deitar, se acomodar melhor. O Neto com o Rangel na minha frente, o Alan mais atrás e o Rafael (Henzel) mais atrás do que o Alan (Ruschel). E aí, no meio do voo, o Cadu (Gaúcho), que era o nosso diretor, veio pedir para nós, atletas, sentarmos mais para frente e deixarmos a imprensa atrás, porque tinha muita gente, muitos convidados. E eu lembro que o Alan não queria, porque o Alan chega no voo e apaga. Eu falei para ele: ‘vem sentar ao meu lado, vamos escutar música. Eu insisti umas duas ou três vezes até a hora que ele veio sentar’”, lembrou Follmann.

Desde então, a luta de Alan Ruschel foi ganhando um novo norte mais rápido do que se imaginava. Primeiro o único objetivo traçado era sobreviver. Em seguida, a evolução de sua recuperação virou foco, até o momento que tanto o lateral quanto quem o acompanhava percebeu que não seria loucura sonhar com um retorno às atividades futebolísticas.

“Na verdade, eu sempre fui muito realista comigo mesmo. Eu queria voltar a jogar, mas voltar a jogar em alto nível. Se eu visse que eu conseguiria jogar, mas não ficasse em alta intensidade em termos de competição, não conseguia competir, eu ia parar de jogar. Eu estava vivo, podia escolher outra coisa para fazer. Estudar, fazer alguma coisa. Mas, Deus me abençoou, eu consegui voltar a jogar. Foi uma coisa fantástica para mim, acho que para muita gente também”.

Camp Nou, famoso estádio do Barcelona. A derrota por 5 a 0 no torneio amistoso Joan Gamper ficou em segundo plano. Naquele 7 de agosto, Alan Ruschel defendeu a Chapecoense pela primeira vez após a queda do avião que levava a equipe para enfrentar o Nacional de Medellín, pela final da Copa Sul-Americana.

“Eu fui vivendo um dia de cada vez. Primeiro eu quis voltar a andar, voltar a correr, aos poucos eu fui fazendo mini-jogos e aos poucos eu fui vendo que eu, de repente, poderia voltar a jogar. E no jogo contra o Barcelona, claro que foi um jogo único, histórico para mim e acho que para todo mundo. Apesar de ser um jogo muito difícil, eu me senti bem naquele estádio. Depois, no jogo contra a Roma (na Itália), onde eu acabei fazendo um gol na partida, eu acreditei ali que eu pudesse voltar a jogar em alto nível”.

Engana-se, entretanto, quem pensa que Alan Ruschel está em condições plenas, sem sequelas ou limitações em função das lesões que sofrera após o choque da aeronave com o solo. Diante da felicidade por ter não ter perdido a vida, o jogador procura não reclamar, minimizar suas questões particulares e ignorar as inúmeras marcas pelo corpo, mas, para se ter uma ideia, Ruschel teve de superar a mesma lesão na coluna que tirou Neymar da Copa do Mundo de 2014. A diferença é que o atleta da Chape teve o problema dobrado.

“A mais complicada foi a lesão da coluna. Eu fraturei a 12ª vértebra da coluna e eu tive uma lesão também na medula, onde hoje ainda me impossibilita de fazer algumas coisas. Eu tenho dificuldade de fazer algumas coisas no dia a dia, algumas sequelas, mas que ninguém sabe. São coisas que eu não posso reclamar, eu estou jogando. Mas tenho dificuldade em dormir por causa de dor nas minhas costas, mas são coisas mínimas, eu não posso reclamar. O Follmann está vivendo bem sem uma perna, quem sou eu para reclamar de alguma dor ou algo do tipo”, diz, tentando demonstrar gratidão.


“Eu tive fraturas na costela, acho que oito mini-fraturas na costela. O doutor fala que eu tive duas lesões iguais à contusão que o Neymar teve. Eu tive duas dessa. São coisas que os médicos acabaram não passando, mas são coisas que aconteceram. Mas, graças a Deus, deu tudo certo e hoje eu estou aí, jogando”, completa.

E não é apenas o incômodo no pescoço que atrapalha os sonos de Alan Ruschel. Gaúcho de Taquara, muito apegado à religião, o jogador não esconde que ainda procura respostas para tudo, principalmente para compreender o motivo de não ter feito parte da estatística de vítimas fatais daquela tragédia.

“Durante a noite, quando a gente coloca a cabeça para dormir, a gente pensa muito. Eu principalmente, pelo o que aconteceu, pelo o que poderia ter acontecido. Eu peço a Deus que me dê discernimento para entender realmente o para que aconteceu, o para que eu fiquei aqui, e não questiono a Deus o por quê. Porque se a gente for questionar a Deus o por que a gente fica meio louco”, explica. “Não sei para que Deus me deixou aqui, Deus vai me mostrar ainda, mas se Deus me deixou aqui foi por algum motivo”, diz, antes de novamente mostrar sua prédisposição para enxergar o lado positivo de uma das páginas mais tristes da história do esporte mundial.

“Hoje, quase um ano depois, eu posso dizer que a saudade tem que ser diferenciada. Saudade e tristeza são sentimentos um pouco diferentes. E hoje a tristeza não cabe ao meu lado. Estou vivendo um momento muito feliz, onde eu consegui voltar a jogar em alto nível, consegui voltar a fazer o que eu amo. Só que a saudade vive no peito e vai permanecer para o resto da vida”.

Assim como o amigo e também sobrevivente Jakson Follmann, Alan Ruschel estava de casamento marcado. A cerimônia ao lado de Marina Storchi, que aconteceria em janeiro desse ano, teve de ser postergada para dezembro, daqui poucos dias. E quando questionado sobre seus objetivos pessoais a partir de agora, o jogador resolve encerrar a entrevista com um dos ensinamentos que absorveu um ano após testemunhar o próprio milagre.

“Eu procuro viver um dia de cada vez. Tenho um casamento agora em dezembro, onde a gente vai oficializar de vez minha união com a Marina, uma mulher que eu tenho uma paixão… Amo a Marina, escolhi ela para viver ao meu lado. São coisas que a gente vai vivendo por etapas. Estou muito feliz por esse momento que estou vivendo hoje”.

As 71 vítimas fatais

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Aqui você confere, na íntegra, a entrevista exclusiva que Alan Ruschel concedeu à Gazeta Esportiva para o especial de um ano da tragédia com o avião da Chapecoense:

Uma ano

Foram momentos delicados, difíceis, e também felizes. Foram etapas. Vivendo cada momento de uma vez. E hoje, quase um ano depois, eu posso dizer que a saudade tem que ser diferenciada. Saudade e tristeza são sentimentos um pouco diferentes. E hoje a tristeza não cabe ao meu lado, estou vivendo um momento muito feliz, onde eu consegui voltar a jogar em alto nível, consegui voltar a fazer o que eu amo. Só que a saudade vive no peito e vai permanecer para o resto da vida, né? O momento que eu estou vivendo é mágico, consegui voltar a jogar depois de tudo que eu passei. É um momento que eu estou procurando aproveitar da melhor maneira possível

Repercussão íntima

Durante a noite, quando a gente coloca a cabeça para dormir a gente pensa muito, eu principalmente, pelo o que aconteceu, pelo o que poderia ter acontecido. Eu peço a Deus que me dê discernimento para entender realmente o para que aconteceu, o para que eu fiquei aqui, e não questiono a Deus o por quê. Porque se a gente for questionar a Deus o por que a gente fica meio louco. Eu tento aproveitar a minha vida da melhor maneira possível, viver um dia de cada vez, porque Deus me deixou aqui para ser um exemplo de superação, um exemplo bom para as pessoas e é isso que eu tento ser.

Forma de ser

Me fez ver a vida um pouco diferente. A minha personalidade continua a mesma, continuo o mesmo cara de sempre, o mesmo ser humano, mas com responsabilidades maiores. Não sei para que Deus me deixou aqui, Deus vai me mostrar ainda, mas se Deus me deixou aqui foi por algum motivo. Um deles era mostrar que ele realmente existe, mostrar que Deus vive entre a gente. São coisas boas que eu tento passar.

O chamado de Follmann

É difícil você entender. Eu acredito que Deus usou o Follmann ali para salvar a minha vida, para tudo tem um propósito, para tudo tem um por que, um para quê. Naquele momento acho que era Deus usando o Follmann, a gente nunca sabe o que poderia ter acontecido. Aconteceu o que aconteceu. O Follmann me chamou, eu fui sentar ao lado dele e hoje estou aí, estou vivo. São coisas inexplicáveis, é difícil eu falar. Posso falar que foi o Follmann salvou a minha vida. Acho que foi Deus usando o Follmann ali.

Voar hoje em dia

Aquela sensação do medo apagou da minha memória. Eu não tenho aquela sensação lá em cima, um pouco antes (do acidente), de desligar os motores, de ligar as luzes de alerta. Essa sensação eu não lembro, eu não me recordo. Isso me facilita um pouco mais para andar de avião do que o Neto e Follmann. Mas a gente tem o medo normal, a gente fica assustado às vezes. Eu procuro manter a calma. Se não é a hora não é a hora.

Retorno aos gramados

Na verdade, eu sempre fui muito realista comigo mesmo. Eu queria voltar a jogar, mas voltar a jogar em alto nível. Se eu visse que eu conseguiria jogar, mas não ficasse em alta intensidade em termos de competição, não consegui competir, eu ia parar de jogar. Eu estava vivo, podia escolher outra coisa para fazer, estudar, fazer alguma coisa. Mas, Deus me abençoou, eu consegui voltar a jogar, foi uma coisa fantástica para mim, acho que para muita gente também, que ficaram felizes com essa minha volta.

Mas eu fui vivendo um dia de cada vez. Primeiro eu quis voltar a andar, voltar a correr, aos poucos eu fui fazendo mini-jogos e aos poucos eu fui vendo que eu, de repente, poderia voltar a jogar. E no jogo contra o Barcelona, claro que foi um jogo único, histórico para mim e acho que para todo mundo, apesar de ser um jogo muito difícil, eu me senti bem naquele estádio. Depois, no jogo contra a Roma, onde eu acabei fazendo um gol na partida, eu acreditei ali que eu pudesse voltar a jogar em alto nível. E aí voltei contra o Flamengo, na Sul-Americana, e voltei bem, tanto que fiquei algumas partidas de titular da equipe, fiz mais jogos do que no ano passado, inclusive, quando tive muitas lesões. Então, fiquei muito feliz com esse momento.

Os números da tragédia

71
Mortos
20
Membros da imprensa
19
Jogadores
14
Membros da comissão técnica
9
Dirigentes
7
Membros da tripulação
2
Convidados
+300
Trabalharam no resgate
45
Peritos na identificação das vítimas

Lesões que não aparecem

A mais complicada foi a lesão da coluna. Eu fraturei a 12ª vértebra da coluna e eu tive uma lesão também na medula, onde hoje ainda me impossibilita de fazer algumas coisas, eu tenho dificuldade de fazer algumas coisas no dia a dia, algumas sequelas, mas que ninguém sabe. Mas são coisas que eu não posso reclamar, eu estou jogando. Mas tenho dificuldade em dormir por causa de dor nas minhas costas, mas são coisas mínimas, eu não posso reclamar. O Follmann está vivendo bem sem uma perna, quem sou eu para reclamar de alguma dor ou algo do tipo.

O dobro do drama de Neymar

Eu tive fraturas na costela, acho que oito mini-fraturas na costela, o Doutor fala que eu tive duas lesões iguais a que o Neymar teve. Eu tive duas dessa. São coisas que os médicos acabaram não passando, mas são coisas que aconteceram, mas graças a Deus deu tudo certo e hoje eu estou aí jogando.

Segue a vida

Eu procuro viver um dia de cada vez, tenho um casamento agora em dezembro, onde a gente vai oficializar de vez minha união com a Marina, uma mulher que eu tenho uma paixão, amo a Marina, escolhi ela para viver ao meu lado. São coisas que a gente vai vivendo por etapas, estou muito feliz por esse momento que estou vivendo hoje.

Os seis sobreviventes

Alan Luciano Ruschel
Lateral da Chapecoense
Jakson Ragnar Follmann
Goleiro da Chapecoense
Hélio Hermito Zampier Neto
Zagueiro da Chapecoense
Rafael Henzel
Jornalista
Erwin Tumiri
Técnico da aeronave
Ximena Suarez
Comissária de bordo


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