O segundo aniversário de Basílio - Gazeta Esportiva
Helder Júnior
São Paulo (SP) - *Entrevista originalmente publicada em 13 de outubro de 2009 (com adaptações)
10/13/2017 11:00:39
 

João Roberto Basílio comemora dois aniversários por ano. O seu telefone costuma tocar mais no segundo. “Obrigado, Pé! Só liguei para dar os parabéns!”, agradecem amigos e desconhecidos nos dias 13 de outubro. O próprio Pé de Anjo prefere dar mais valor à data em que marcou o gol da vitória por 1 a 0 sobre a Ponte Preta e fez do Corinthians novamente campeão paulista após 22 anos, oito meses e seis dias sem conquistas. “É o dia mais importante da minha história.”

Nesta terça-feira de 2009, como em todos os outros 13 de outubros depois daquela decisão estadual de 1977, Basílio pretende estender o feriado dedicado a Nossa Senhora Aparecida na companhia de seus familiares e amigos. Prometeu abrir latas de cerveja e preparar um churrasco no bairro paulistano onde nasceu, a Casa Verde, para voltar a festejar o título que mudou a sua vida. “Continuarei fazendo a mesma coisa até morrer. Sou o que sou por causa da bênção que recebi em 1977. Você acha que estaria me entrevistando hoje se não fosse por isso?”, sorriu, pouco mais de uma semana antes de outro aniversário do seu gol mais famoso.

O libertador do Corinthians no século passado guiou a reportagem da Gazeta Esportiva a bordo de seu automóvel (com o número 77 no final da placa) à casa onde guarda um pequeno museu da trajetória como jogador. Os itens mais preciosos da exposição que a família organizou na copa da residência são a camisa listrada em preto e branco e as chuteiras usadas por Basílio na partida decisiva contra a Ponte Preta. Havia também um pedaço da rede que balançou no Morumbi. “Mas isso sumiu. Perdi muitas coisas ao longo do tempo. Espere um pouco, que vou buscar mais lembranças minhas para compensar”, avisou.

Basílio retornou com seis faixas de campeão, que estendeu sobre a mesa (fez questão de deixar as comemorativas pelo título de 1977 em destaque). Tirou a camisa, mostrou a barriga saliente e vestiu uma réplica do uniforme utilizado na final daquele Campeonato Paulista. Estava pronto para contar com detalhes as suas histórias mais marcantes – de quando pulava o muro do Pacaembu para assistir a jogos do Corinthians até a época em que se consagrou no gramado do estádio municipal – por mais de uma hora.

Antigo carrasco corintiano, Pelé é um dos grandes ídolos do herói de 1977 (foto: Djalma Vassão/reprodução)

Gazeta Esportiva: O Pelé ocupa tanto espaço no seu acervo quanto o Corinthians, não? [Basílio pendurou na parede imagens do ídolo e duas camisas autografadas, uma do Cosmos e outra da Seleção Brasileira.]
Basílio: É verdade. Eu também tinha um uniforme do Santos assinado pelo Pelé, mas os cupins destruíram. Ganhei por acaso esse do Cosmos. O dono da malharia Athleta, que fabricava as camisas dos grandes clubes do Brasil, era muito amigo meu. Visitei a fábrica um dia, e ele já foi me avisando: “Sabe quem também está aí? O Pelé. Estamos fazendo os uniformes do Cosmos para ele levar. Pede uma camisa de presente”. Fui logo atrás do negão. Não desperdicei a oportunidade. Naquele tempo, eu gostava de ouvir os jogos de Santos e Botafogo porque só tinha show de bola.

Gazeta Esportiva: Quais eram os jogadores que você gostava de ver da arquibancada?
Basílio: Apesar de admirar o Pelé, o meu maior ídolo foi o Nei, centroavante do Corinthians, pai do Dinei. Ele tinha uma velocidade impressionante e ainda fazia muitos gols. A dupla que formava com o Silva era acima da média mesmo. Meus amigos e eu pulávamos o muro do Pacaembu para assistir ao Nei jogar. Depois, descobrimos que o responsável pela catraca do estádio morava no nosso bairro e começamos a entrar pela porta da frente.

Gazeta Esportiva: O que mais vocês faziam para se divertir?
Basílio: A minha infância foi muito sadia e gostosa. Empinei pipa, joguei bolinha de gude, soltei balão… Tudo isso nas ruas de terra da Casa Verde, sem asfalto nenhum para atrapalhar. Mas a maior paixão era o futebol. Sempre pedi bolas de presente para os meus pais no período de Natal. Com cinco anos, um vizinho meu, corintiano daqueles doentes, já me levava para ver algumas partidas do Timão. Eu só deixava de jogar futebol se fosse para assistir a futebol. Dizia para a minha mãe [Nair] que estava saindo para jogar bola, mas era mentira. Eu ia para o Pacaembu.

Gazeta Esportiva: Você chegou a trabalhar antes de ser jogador?
Basílio: Muito pouco, embora fosse uma geração difícil. As pessoas diziam que jogador de futebol era profissão de vagabundo. Quando criança, cheguei a ajudar a minha mãe com algum dinheirinho. Trabalhei na barraca de um japonês da nossa rua, vendendo bananas. Com 13 anos, o meu irmão me arrumou um emprego de verdade. Durou um mês. Eu era office boy de uma empresa que ficava na Rua 12 de Outubro, na Lapa. Se fosse 13 de Outubro, seria melhor, né [risos]? A minha função consistia em carregar algumas armas com defeito até Santo André. Como a vida era complicada, eu ficava com o dinheiro que me davam para pagar o táxi e levava aquele monte de coisas nas costas.

Gazeta Esportiva: Por que foi demitido?
Basílio: Eu já estava treinando na Portuguesa na época. Tinha avisado que precisava de um tempo para jogar bola, mas o dono da empresa não aceitou e me comunicou a demissão em uma sexta-feira. Dei a notícia para o meu irmão primeiro, pois fiquei muito preocupado com a reação dos meus pais. No dia seguinte, a minha mãe me acordou e perguntou: “Você não vai trabalhar hoje?”. Respondi meio assustado: “Estou cansado. Vou dormir até mais tarde”. Mas ela já sacou na hora: “Você não vai trabalhar ou foi demitido?”. Criei coragem e contei o que tinha acontecido. Foi aí que passei a me dedicar mais à Portuguesa [Basílio alisa a faixa de campeão da Taça São Paulo de 1972 enquanto fala].

Basílio guarda com carinho as faixas de suas conquistas como meia-atacante (foto: Djalma Vassão/Gazeta Press)

Gazeta Esportiva: Foi difícil se profissionalizar para ganhar essa faixa? E qual é a história daquele quadro ali com a sua imagem, vestindo a camisa da Portuguesa?
Basílio: O quadro foi presente de um presidiário. Ele mesmo pintou. A Portuguesa sempre era convidada para jogar algumas partidas de exibição nas cadeias de São Paulo. Em uma dessas visitas, ganhei o quadro de um detento. Mas o meu início de carreira foi bastante conturbado, sim. Na juventude, você tenta a sorte em todos os lugares possíveis. Acabei parando na Portuguesa porque o Agnaldo, que virou treinador de goleiros, arrumou um cartão do clube para eu fazer um teste. Gostaram de mim e fui aprovado. Só que eu não sabia que aquela peneira era para formar um time para o ano seguinte, porque o infantil e o juvenil já estavam em atividade. Fiquei uns seis meses treinando apenas às sextas-feiras.

Gazeta Esportiva: Pensou em mudar de clube?
Basílio: Quando não estava treinando na Portuguesa, eu ia jogar bola no Nacional. O problema é que pediram os meus documentos lá também. Um amigo meu me alertou: “É melhor não entregar, Basílio, porque a Portuguesa já deve ter te federado”. Consegui enrolar o Nacional durante algum tempo. Até o dia em que um dirigente falou para mim: “Você não volta mais aqui se não trouxer os documentos!”. Não voltei. Depois disso, eu e quatro amigos fomos fazer testes no São Paulo, que treinava onde hoje fica o Anhembi. Aconteceu a mesma coisa. Pediram os meus documentos logo no primeiro treino. Sempre me saía com uma desculpa: “Putz, esqueci, vim direto da escola para cá”. Não deu para enganar muito tempo. Mas, aí, finalmente a Portuguesa me chamou para começar a jogar de verdade.

Gazeta Esportiva: A espera valeu a pena?
Basílio: Esse começo de carreira era muito gostoso. Participei de uma série de amistosos e de torneios, todos disputadíssimos. O Edu Bala foi descoberto em um jogo desses, defendendo o Açucena. Ficamos muito amigos. No segundo ano de infantil, joguei uma partida contra o Corinthians, no Parque São Jorge. O treinador dos profissionais da Portuguesa foi observar os juvenis, mas acabou gostando de mim. “Quero esse moleque mais novo. Vou levá-lo para a concentração com os profissionais.” Dito e feito.

Gazeta Esportiva: Então, o Corinthians já foi importante para a sua carreira desde então?
Basílio: Foi! Ganhamos por 2 a 1 ou 1 a 0 do Corinthians, não me lembro bem, com gol meu. O Nunes, inclusive, foi meu adversário nesse jogo. Peguei a minha malinha, voltei para casa todo feliz e dei a boa notícia para a família: “Mãe, agora eu sou profissional da Portuguesa! Chegou a grande chance da minha vida!”. Como no início de carreira ninguém é muito aproveitado, eu só disputava as preliminares das partidas, pelos aspirantes. Tinha medo de ser rebaixado para o infantil e precisar cumprir aquele ritual de passar pelo juvenil, mas acabei me sobressaindo contra o Palmeiras e entrei no time principal.

Gazeta Esportiva: Como era o seu desempenho quando enfrentava o Corinthians?
Basílio: Sempre excelente. Foi justamente isso que chamou a atenção dos dirigentes corintianos. O Rivellino foi o cabeça de tudo nessa história. Ele sempre tentou me levar para o Corinthians. Até o dia em que, por influência dele, acabaram me chamando para ir ao Parque São Jorge em uma noite de Carnaval. Enfiei um boné na cabeça e cheguei no meio da multidão, tudo numa boa. Desviei de caminho e entrei na salinha do Almir de Almeida, que era o supervisor do clube na época. Ele me recebeu muito bem: “Que bom que você veio, garoto. O Riva fala bastante de você. Como a gente faz para te trazer para cá?”. Fiquei animado: “Não há problema nenhum da minha parte. Venho com o maior prazer”. Embora geralmente fosse o meu pai quem tratasse dessas coisas, a proposta era irrecusável.

Basílio desafiou a Portuguesa para conseguir se transferir para o clube do seu coração (foto: acervo/Gazeta Press)

Gazeta Esportiva: Mas a transferência não deu certo desta vez.
Basílio: Não. Quando me apresentei na Portuguesa, em uma Quarta-feira de Cinzas, o roupeiro do clube me pegou de surpresa: “O que você aprontou? Mandaram recolher o seu material. É bom passar na secretaria para resolver isso!”. Cheguei à secretaria e encontrei todo o mundo de cara feia. “Quem te autorizou a aparecer no Corinthians?”, o presidente perguntou. Eu me fiz de desentendido: “Eeeu? No Corinthians?”. Mas não houve jeito: “O senhor, sim. Estava vestido de boné, assim e assim”. Os caras tinham descoberto. “Só fui passar o Carnaval. Qual é o problema?”. Não adiantou. Falaram para eu tirar o cavalinho da chuva, pois não seria vendido para o Corinthians jamais, e ainda me aplicaram uma multa.

Gazeta Esportiva: Você pagou a multa?
Basílio: Que nada. Depois do treino, fui chorar para um diretor da Portuguesa: “O senhor não vai me multar, né? Já não ganho quase nada. Esse é o dinheirinho que eu levo para casa. A minha mãe nem pode saber disso”. Escapei, mas a história se repetiu no ano seguinte.

Gazeta Esportiva: Pulou Carnaval no Corinthians de novo?
Basílio: Exatamente. Mas levei um amigo nessa segunda vez e pedi para ele vigiar quem estivesse por perto. Passei longe do ginásio e entrei na salinha da diretoria no Parque São Jorge. E não é que me chamaram na secretaria da Portuguesa novamente? Fui até lá e dei cara à tapa: “De fato, conversei mesmo com o pessoal do Corinthians. Um diretor da Portuguesa me disse há alguns dias que poderia dar negócio”. Não deu. Ao menos, consegui reverter a multa mais uma vez.

Gazeta Esportiva: A Portuguesa sempre foi um clube difícil em negociações, não é?
Basílio: Alguns até conseguem sair facilmente. Não foi o meu caso. Mas veja só como são as coisas. Em 1975, o meu contrato com a Portuguesa estava vencido. Falei para o meu pai: “Chegou a hora! Vou aproveitar o interesse do Santos por mim e pelo Xaxá para sair”. Fui até o banco do qual um diretor do Santos era gerente. Resolvemos tudo na hora. À noite, na Casa Verde, meu pai saiu doido pelas ruas atrás de mim: “Filho, estou acertando com um pessoal do Corinthians”. Fiquei incrédulo: “Como assim? A diretoria me liberou para conversar com o Santos. Já até ganhei um chequinho…”. Mas a Portuguesa não queria vender ninguém para o Santos, que havia comprado o Marinho às escondidas. Entrei em um carro com o meu pai e fomos conversar com o Matheus [Vicente Matheus, presidente do Corinthians na época]. No dia seguinte, cheguei ao banco do diretor do Santos no instante em que abriu, agradeci pela confiança e devolvi o cheque. Já me apresentei à tarde no Corinthians.

Gazeta Esportiva: Você chegou a ficar dividido entre jogar no time do Pelé, seu ídolo, e o Corinthians em um jejum de títulos?
Basílio: O que eu não queria era ficar na Portuguesa. Estava há mais de dez anos no clube. Além disso, só se ganhava dinheiro naquele tempo com os 15% das transações. Independentemente de o Santos ter um timaço, uni o útil ao agradável jogando no Corinthians. Parei no clube que sempre amei. É claro que ouvi alguns alertas. Um diretor da Portuguesa chegou a me dizer: “Ih, você vai para uma equipe que mais parece um cemitério. Não passará de mais um lá”. Respondi que eu gostava de desafios. Sempre tive personalidade.

Gazeta Esportiva: Para piorar, o seu amigo Rivellino não estava mais no Corinthians quando você chegou. A sua estreia não foi contra ele?
Basílio: Fui escalado para jogar esse amistoso com o Fluminense sem condições físicas. O Riva veio até mim e disse: “Que sacanagem, hein? Os caras esperaram eu sair para te trazer”. Perdemos por 2 a 1, com um gol marcado por ele.

Basílio estreou justamente contra Rivellino, que não resistiu ao jejum e foi para o Fluminense (foto: acervo/Gazeta Press)

Gazeta Esportiva: Já deu para sentir como é jogar pelo Corinthians naquele dia?
Basílio: O Corinthians é um time completamente atípico. Só estando lá para saber. Se o cara tem personalidade, veste a camisa e vai embora. É só fazer o que a torcida gosta: demonstrar garra dentro de campo. Comecei a me acostumar com esse ambiente. A pressão por uma conquista era muito grande, mas a gente vai se adaptando ao jeito do clube. Quando começou o Campeonato Paulista, fizemos um jogo no interior, e eu comentei com alguém quando vi a imensidão de torcedores: “Esses caras são loucos!”. E sempre era assim. Eles chegavam bem cedo às cidades onde a gente estava e ficavam fazendo festa até o horário do jogo.

Gazeta Esportiva: As cobranças não te intimidavam?
Basílio: Isso é normal no Corinthians. Quando você perde, é melhor se esconder em casa. Quando ganha, é uma alegria só. O que me assustou realmente foi o enorme número de jogadores que encontrei no elenco. Enquanto a gente disputava um treinamento coletivo, ficavam até três times esperando. Não havia planejamento nenhum. Qualquer um era contratado. E o pior é que quebrei a perna logo no primeiro ano de clube.

Gazeta Esportiva: Mas você ajudou o Corinthians a ser vice-campeão brasileiro em 1976, o ano da Invasão ao Maracanã.
Basílio: Batemos na trave em 1976. O Corinthians já estava estruturado naquele campeonato. A diretoria passou a investir em qualidade, e não apenas em apresentação. O grande diferencial de 1976 para 1977, para ser sincero, foi a contratação do Palhinha. Ele era o nosso carro-chefe, o craque do time. Assumiu a responsabilidade, deu tranquilidade para o grupo trabalhar e já foi campeão paulista assim que chegou. E pensar que que eu quase saí do Corinthians antes daquele titulo…

Gazeta Esportiva: Como assim, “quase saí”?
Basílio: O Corinthians estava disputando a Libertadores na época. O Vicente Matheus foi procurado pelo empresário Juan Figer, que tinha uma proposta do Porto para mim. Mas a minha mãe se desesperou quando soube: “Você não vai sair do Brasil! Eu não viajo de avião! Como vou ficar aqui sem você?” O nosso técnico, Seu Oswaldo Brandão, também foi contra. “Que história é essa de você ser vendido? Vá se trocar, treinar e só então você pode conversar com o Vicente!”, ele gritou. Depois, saiu pela porta dos fundos e convenceu o Vicente a me manter no elenco enquanto eu corria no campo. Acabei aceitando continuar no clube.

Gazeta Esportiva: Mesmo permanecendo no Corinthians, você não ficou fora daquela final contra a Ponte Preta por pouco.
Basílio: Isso mesmo. O Zé Maria e eu estávamos vindo de lesões. Na concentração, dois dias antes do jogo decisivo, eu ficava me lamentando com ele: “Pô, Zé, não vamos sair nem na foto na hora do filé. Os caras vão nos testar na manhã do dia da final, exigir isso e aquilo… É duro!”. Fui dormir com a cabeça quente, muitíssimo preocupado, mas não tive sonho nenhum.

Lesionado, Basílio só foi confirmado na final contra a Ponte Preta após um sonho de Oswaldo Brandão (foto: acervo/Gazeta Press)

Gazeta Esportiva: Quem teve um sonho foi o Oswaldo Brandão.
Basílio: E que sonho! Fomos acordados pelo Brandão no dia 13 de outubro, de surpresa. Ele nos comunicou: “Os dois vão jogar, sem fazer teste nenhum, e o Corinthians ganhará por 1 a 0, com gol do Basílio!”. Foi a previsão que ele sonhou. Nosso técnico era kardecista e achava que havia recebido um aviso sobrenatural. E, se a gente for observar, pode ter sido mesmo. Porque eu joguei, fiz o gol e já voltei a sentir dor na perna logo no nosso primeiro jogo do Campeonato Brasileiro.

Gazeta Esportiva: Você também é religioso? Qual foi o seu ritual para aquela final?
Basílio: A minha tradição era acender uma vela dentro do vestiário e orar. Sempre fiz isso.

Gazeta Esportiva: Como foi o trajeto até o Morumbi no dia 13 de outubro de 1977?
Basílio: Eu estava bem tranquilo. Sentei mais ou menos no meio do ônibus. Enquanto a turma do pagode ficava contando piada lá atrás, entre eles o Romeu e o Ruço, rindo para caramba e fazendo batucada, eu me mostrava quieto e pensativo. Fui observando o grande número de torcedores carregando as suas bandeiras, gritando, pulando… A gente se concentrava no Rancho Silvestre. Quando saímos da estrada que vai para Embu, já fomos cercados por toda aquela aglomeração.

Gazeta Esportiva: Entrar no estádio e ver a multidão nas arquibancadas foi ainda mais motivante?
Basílio: A gente já estava acostumado com isso, né? O segundo jogo da final contra a Ponte Preta tinha sido uma loucura maior ainda. E 99,99% da torcida estava do nosso lado. Até a minha comemoração na hora do gol foi bem espontânea. Como mostra no final do filme “1977: 23 anos em 7 segundos”, só ergui o braço, como sempre, e fui em direção à galera. A minha expressão foi tranquila. Tive a emoção de marcar o gol, nada mais.

Gazeta Esportiva: Então, você não tinha noção do seu feito naquele instante?
Basílio: As pessoas até falam para mim: “Você comenta isso com uma frieza de dar dó”. Mas não é por mal. Na hora, estou trabalhando. Ainda não tínhamos conquistado nada. Para falar a verdade, nem no vestiário eu tinha noção da importância do meu gol. O repórter Lucas Neto me disse: “Você vai entrar para a história”. Eu ironizei: “Só se for para a história do Tio Patinhas, do Fantasma…”.

Gazeta Esportiva: Demorou para se convencer de que havia se tornado um ídolo?
Basílio: Ninguém do nosso time sabia a exata dimensão daquele título. Quem nos alçou à condição de ídolos, de pessoas dignas de vestir o manto do clube, foram os torcedores. Tanto é que somos requisitados a participar dos eventos corintianos até hoje. Quando terminou o jogo, fiz questão de oferecer a conquista a todos os jogadores que passaram pelo clube de 1954 até 1977. Foi uma menção honrosa a tantos que tentaram acabar com o jejum. Calhou de sermos nós os vencedores. Fiquei até emocionado quando vi uma entrevista do Rivellino para a TV Gazeta, em que ele diz que trocaria o título da Copa do Mundo por ter sido campeão paulista pelo Corinthians. Essas coisas são muito gratificantes para nós.

Basílio teve reação espontânea para comemorar o gol mais marcante da história corintiana (foto: acervo/Gazeta Press)

Gazeta Esportiva: Saindo do Morumbi depois da final, você já deve ter percebido que a sua relação com a torcida mudaria.
Basílio: E como [risos]! Coloquei a minha malinha atravessada no corpo, o chapéu bem atolado no rosto e saí no meio da galera, com medo de ser reconhecido. Caminhei assim até o carro do meu amigo Teco, que me deu uma carona. “Vam’bora, Teco. Se me descobrirem aqui, estou morto. Todo o mundo vai querer levar um pedaço meu”, avisei. As pessoas estavam subindo em cima dos veículos, vibrando de tudo quanto é jeito. Era uma loucura. Na hora em que chegamos ao farol da Avenida Cidade Jardim, um cara parou ao lado do carro do Teco, ficou me olhando e berrou: “Olhe o Basílio, aí! Você me deu a maior alegria do mundo!” Assim que ele falou, saí e deixei a porta do carro aberta. Fiquei me escondendo no abraço que ele me deu. O farol passou para o verde, voltei para o carro, e partimos com tudo.

Gazeta Esportiva: A sua festa particular foi nesta casa onde estamos conversando?
Basílio: Foi. Eu morava aqui desde 1973. Quem me vendeu a casa foi um diretor da Portuguesa. Decidi comprar porque a minha mãe não gostava de morar em apartamento. Quando abri a porta naquele 13 de outubro, todos os cômodos já estavam tomados pelos meus amigos da Casa Verde. Haviam começado a beber cerveja, fazer churrasco e mandar ver na folia. Fiquei um tempo aqui e fui até a casa do Zé Maria, algumas ruas acima, para me encontrar com os meus companheiros depois. Era uma tradição nossa comemorar na casa do Zé. Sempre fazíamos farra lá.

Gazeta Esportiva: Passou a madrugada em claro?
Basílio: Cheguei à casa do Zé às 3 horas mais ou menos. Voltei às 6 horas. Só consegui dormir uns 15 minutos, pois às 7 horas o pessoal da TV Globo estava aqui para gravar comigo. Recebi o repórter na porta, onde um monte de crianças que estava indo para a escola parou para me assediar. Concedi essa entrevista e não parei mais. À tarde, fui à Gazeta para receber um prêmio no programa da Clarice Amaral. À noite, ganhei uma homenagem em um baile do Palmeiras. Entrei no salão do clube e saí rapidinho, já que o Tim Maia faria um show ali em seguida.

Gazeta Esportiva: Conseguiu descansar depois?
Basílio: Finalmente. Mas acordei cedo no dia seguinte de novo, para viajar com o Corinthians. Naquele sábado, treinamos pela manhã e fomos para o Maranhão enfrentar um time de camisa amarela [Sampaio Corrêa]. O Corinthians chegou, e a cidade parou.

Hoje comentarista, Basílio sofreu com ação de empresários e fracassou quando se aventurou como técnico (foto: acervo/Gazeta Press)

Gazeta Esportiva: E você, quando decidiu parar de jogar?
Basílio: O Corinthians estava fazendo uma reformulação no início da década de 1980, e o Brandão não me queria mais no grupo. Recebi até uma proposta dos Estados Unidos [do Fort Lauderdale Strikers, que viria a ter o ex-atacante Ronaldo como acionista], que não vingou. Acabaram me vendendo para o Taubaté [passou ainda por Juventus e Nacional]. Tive um problema com a diretoria desse clube, fiz uma cirurgia no joelho, e eles me liberaram para voltar para o Corinthians. Aí, começou o impasse. Eu queria ter o meu passe livre, mas o Corinthians não me dava. Até que chegou o Leonel Marconi, diretor do time na época, para me conduzir a treinador das categorias de base. Realizei um sonho.

Gazeta Esportiva: É uma frustração sua não ter feito sucesso como técnico?
Basílio: Foi uma experiência boa, mesmo nas duas passagens como treinador dos profissionais do Corinthians. Mas, analisando friamente hoje, acho que fui muito paizão. Deveria ter cobrado um pouco mais os jogadores. Também tive entreveros com os colegas da comissão técnica e com os próprios dirigentes, que estavam mais preocupados em aparecer do que em resolver as pendências do plantel. Decidi pegar as minhas coisas e sair do Corinthians. Dali em diante, trabalhei pra caramba. Até chegar a Ribeirão Preto e desistir. Não aceito ser submisso a empresários. Os diretores de clube não têm dinheiro e colocam os clientes dos agentes para jogar na cara dura. Não tenho paciência para escalar quem não possui capacidade só porque o empresário e o dirigente querem.

Gazeta Esportiva: Você não aceitaria trabalhar no meio do futebol novamente?
Basílio: Quero ser dirigente. O Andrés Sanchez [ex-presidente do Corinthians] já sabe desse meu interesse. Toquei no assunto em uma palestra em que ele esteve presente, além do Geraldão, do Wladimir e do Zé Maria. Disse que pretendo observar as categorias de base e melhorar a cabeça dos profissionais, que estão muito iludidos pelos empresários. O clube precisa ser mais valorizado.

Gazeta Esportiva: Como é o seu dia a dia atualmente? Continua sendo bastante assediado?
Basílio: Sou presidente de uma associação de ex-jogadores, que faz trabalho social com crianças, e comentarista de um programa de TV fechada e de uma rádio de Osasco [atualmente, é comentarista da Rádio Capital]. Espere um minuto. [Basílio para de falar e atende o seu rádio comunicador. Do outro lado da linha, alguém diz: “Como vai o maior ídolo da história do meu time?”.] Como eu ia comentar antes dessa interrupção, o assédio é o mesmo de sempre. Na fila de autógrafos de lançamento do DVD “1977: 23 anos em 7 segundos”, por exemplo, uma garotinha de 12 anos me abraçou chorando. “Estou emocionada de ficar na sua frente, porque também sou muito apegada à minha mãe”, ela comentou. No banquete de aniversário do Corinthians, eu estava sentado em um canto escuro, no fundo, e muitas pessoas se deslocaram para me cumprimentar. Isso sem falar no monte de gente que batizou os filhos com o nome Basílio. O Vitão Guedes, jornalista do Agora, foi um dos que me honraram dessa maneira.

Com um legado eterno, Basílio não foi ofuscado por Emerson Sheik, autor dos gols do título da Libertadores (foto: Djalma Vassão/Gazeta Press)

Gazeta Esportiva: Esse legado é eterno? Ou o jogador que marcar um gol que dê o título da Copa Libertadores da América ao Corinthians poderá ocupar o seu espaço?
Basílio: Torço muito por isso! O Corinthians precisa se libertar de novo. No meu caso, tudo se transformou depois de 13 de outubro de 1977. Cansei de ouvir “parabéns” provocativos nos estádios antes do título paulista. O nosso carma agora é a Libertadores. O cara que fizer o gol na decisão, ainda mais se for por 1 a 0, vai me dar gosto em apagar um pouco o Basílio na história. Quem sabe até não repitam a Gazeta Esportiva e visitem a casa desse felizardoanos depois da conquista? [O “felizardo” foi o atacante Emerson Sheik, que, embora tenha alcançado o status de ídolo com os seus gols sobre o argentino Boca Juniors em 2012, ainda não conseguiu substituir Basílio no coração de muitos torcedores do Corinthians.]

Leia os capítulos já publicados sobre os 40 anos do título estadual de 1977:

Quatro décadas de alívio
A herança de Ruy Rey

Leia neste sábado: A astrologia contra Ruy Rey