A herança de Ruy Rey - Gazeta Esportiva
Helder Júnior
São Paulo (SP)
10/12/2017 23:55:52
 

Um senhor estava mais animado do que os demais torcedores em um dia de jogo entre Mesquita e Volta Redonda, no Louzadão. Chamava a atenção não apenas por ostentar uma cabeleira semelhante àquelas que foram moda na década de 1970, embora com um prenúncio de calvície, mas principalmente por seu comportamento – gritava e tirava muitas fotografias, quase sempre apontando a câmera para o atacante do time da casa. Foi aquele jogador, o seu filho mais velho, quem marcou um dos gols do empate por 2 a 2 entre os clubes cariocas. Ronald Rey, o Z Rey, não teve dúvida ao ver a rede sacudir. Correu em direção ao público, escalou o alambrado e tascou um beijo no seu maior fã, o pai Ruy Rey.

Aquela cena foi única. Com a vida marcada pelo antagonismo na histórica derrota da Ponte Preta para o Corinthians na decisão do Campeonato Paulista de 1977, Ruy Rey acredita que o seu carma foi herdado pelo filho de curta trajetória como atleta profissional. “Z. Rey, jogador de futebol, iniciou no Campo Grande FC, jogou na categoria amador e ali se profissionalizou. Jogou três anos no EC Mesquita, participou do EC Arraial do Cabo em 2002, todos da segunda divisão. O fantasma da final de 1977 atrapalhou a sua carreira”, escreveu o pai famoso, em um livro raro e de produção independente, a autobiografia “Ruy Rey, o artilheiro polêmico – O drama após a final do Campeonato Paulista de 1977”.

A final de 1977 traçou os destinos de Ruy Rey, vilão da Ponte Preta, e Basílio, herói do Corinthians (foto: acervo/Gazeta Press)

Z Rey assegura que não se sente tão afetado pelo drama do pai. Ainda assim, estava ressabiado quando recebeu um telefonema no último 11 de outubro. Queria saber por que a Gazeta Esportiva estava lhe procurando dois dias antes de o Campeonato Paulista de 1977, que encerrou um jejum do Corinthians de mais de duas décadas sem conquistas expressivas, completar 40 anos e esta reportagem especial ser publicada. “É… Se o assunto é esse, não dá para não falar do meu pai, né?”, aceitou, sorrindo, o primogênito de um dos destaques do vistoso elenco da Ponte Preta naquela temporada.

De fato, é inevitável falar de Ruy Rey. Ele foi uma das grandes esperanças para a Ponte Preta erguer o seu primeiro troféu importante em 1977. Ainda mais depois de ter anotado o gol da vitória por 2 a 1 sobre o Corinthians no segundo jogo da final. No terceiro, também no Morumbi, no entanto, cometeu o erro pelo qual sempre será lembrado. Gesticulando bastante ao ser advertido com um cartão amarelo, o irritadiço atacante proferiu um “palavrão homérico” contra o enérgico árbitro Dulcídio Wanderley Boschilia, na lembrança do próprio, que o expulsou. “A minha vontade foi dar um murro no meio da orelha dele e fazê-lo continuar jogando. Como a lei não me permite esse tipo de coisa, falei para ir para fora e chamei a mãe dele de santa”, narrou o falecido juiz, em uma antiga entrevista à TV Cultura.

Ruy Rey, que considerava Dulcídio “um dos melhores árbitros do futebol brasileiro” e “um grande amigo”, certamente teria preferido as dores de um soco. Com a vice-campeã Ponte Preta derrotada por 1 a 0, gol de Basílio, ele acabou achincalhado e teve a sua índole colocada sob suspeita. Especulava-se que havia forçado a expulsão na final com a intenção de favorecer o Corinthians, para o qual se transferiu após um período de “penitência”, como definiu em sua autobiografia. “Um pequeno ato demolia a sua carreira. A diretoria da Ponte o abandonou, simplesmente o esqueceu. Jogou sem contrato, somente em respeito à torcida e aos companheiros. Permaneceu em Campinas duas semanas mais, até que, não suportando um peso que não era somente seu para ter que carregar sozinho, reuniu a família, sua companheira Vera Lúcia, seus filhos Ronald Z. Rey e a filha Deborah, de apenas oito meses, doou toda a sua mobília e voltou para o Rio de Janeiro”, relata em um trecho do livro, curiosamente escrito em terceira pessoa.

O árbitro Dulcídio Boschilia, que queria esmurrar Ruy Rey, revoltou os jogadores da Ponte Preta (foto: acervo/Gazeta Press)

Z Rey tinha apenas 3 anos naqueles tempos difíceis, em que o pai voltou a lidar com dificuldades financeiras na cidade natal. “Não me lembro de nada, mas, com certeza, foi um exílio complicado. Você não imagina o que…”, comentou, hesitante quando o fatídico 13 de outubro de 1977 e as suas consequências estão em pauta. O ex-jogador do Campo Grande, do Mesquita e do Arraial do Cabo, entre outros, tem muito mais ânimo para abordar as experiências que acumulou na profissão do pai.

Enquanto reconstruía a sua carreira justamente no Corinthians, pelo qual disputou simbólicos 77 jogos e marcou 21 gols, Ruy Rey servia de inspiração para despertar o interesse de Z pelo futebol. O garoto foi batizado como Ronald, mas passou a ser chamado pelo pai pela última letra do alfabeto como homenagem a Zico, ídolo do Flamengo e de toda a família rubro-negra. “Quando nasci, o meu pai jogava no Flamengo. Todos somos Flamengo”, assegurou, antes de corrigir. “Quer dizer… O meu pai e eu somos Flamengo, Ponte Preta e Corinthians. Quando é Corinthians contra Ponte, nunca sei por qual time torcer. Quero 1.000.000 de gols para cada lado. Mas, na última final do Paulista, até que torci pela Ponte.”

Z Rey quase foi mais do quem dividido torcedor da Ponte Preta. Atacante canhoto como o pai, com o mesmo biótipo, ele passou por um período de testes no clube de Campinas quando tinha 17 anos. “Foi uma realização. Estava me sentindo um pouco no habitat do meu pai. Todos perguntavam dele, sempre me tratando bem, contando histórias… Era o maior barato do mundo”, recordou, antes de ponderar que aquela alegria não era suficiente para segurá-lo no time vice-campeão estadual de 1977. “Você sabe como é: para um jovem, o coração aperta. Senti falta da família e voltei para o Rio de Janeiro.”

Após se exilar no Rio de Janeiro, Ruy Rey tentou reconstruir a carreira justamente no Corinthians (fotos: acervo/Gazeta Press)

No Rio, Z não demorou muito a abandonar a carreira. Sobre a declaração do pai, para quem o drama de quatro décadas atrás foi determinante para o filho não vingar como jogador, ele ainda é reticente. “Às vezes, você pode pensar assim. Às vezes, não. Aquela situação foi marcante, mas cada um fantasia como quer. Mesmo com o meu pai explicando tudo o que aconteceu no seu livro, sempre aparece alguém com um pé atrás. Mas ele me vacinou contra isso. Nunca deixou com que eu me preocupasse. Sempre me deu argumentos para sair de boa de algum tipo de comentário maldoso”, relatou.

Seja como for, havia uma razão maior do que a derrota de 1977 para Z Rey abdicar do sonho de se tornar um jogador conhecido como Ruy e iniciar o curso de Educação Física. “Arrumei uma namorada. Ela engravidou, o bebê chegou, e eu tinha que me virar para ganhar dinheiro”, resumiu, sorrindo, o pai de Arthur, assim batizado em homenagem a Arthur Antunes Coimbra, o Zico. Hoje, aos 19 anos, o garoto é estudante de Turismo e tem um irmão de 9 anos, Matheus, que já dá os primeiros passos no futebol.

“Com o nascimento do meu primeiro neto, Arthur, filho de Z. Rey e Andréia, a minha preocupação aumentou, afinal ninguém, nenhum homem desejaria que sua herança profissional fosse discutida e duvidada, sem provas. Quero para a minha decência o nome Ruy Rey, apenas”, desabafou o ex-atacante no prefácio de “Ruy Rey, o artilheiro polêmico”.

Contando com o incentivo do pai, Z Rey se formou em Educação Física e virou professor de escolinhas de futebol (foto: acervo pessoal)

Para a família de Ruy Rey, que teve outros três filhos (Deborah, Moama e Saulo), não havia necessidade de nenhuma defesa. O vilão da Ponte Preta em 1977 é visto pelo primogênito como um herói digno de outros tantos beijos como aquele que recebeu ao torcer pelo Mesquita no Louzadão. “Na última vez em que estive em São Paulo, falei para ele para irmos ao Corinthians. No caminho, andando, um cara de 40, 55 anos ficou nos encarando. Ele passou, mas não resistiu e voltou para perguntar se era mesmo o Ruy Rey. Deu um abraço, um beijo e ficou trocando a maior ideia! Aí, na porta do Corinthians, apareceram dois meninos de 20 anos. Eles olhavam para nós e tremiam de uma tal maneira… E nem sequer tinham visto o meu pai jogar!”, orgulhou-se Ronald Z Rey, antes de desligar o telefone na antevéspera da sexta-feira 13. Hoje, ele é personal trainer, técnico formado pela Associação Brasileira de Treinadores de Futebol (ABTF) e professor em escolinhas, onde caça talentos capazes de construir um novo reinado no esporte, livre de fantasmas.

Mãe de Ruy Rey temeu até a marginalidade
O árbitro Dulcídio Wanderley Boschilia não expulsou Ruy Rey apenas do gramado do Morumbi. O cartão vermelho recebido na decisão do Campeonato Paulista de 1977 impôs também a saída de Campinas, onde a Ponte Preta não fazia questão de sua presença.

De volta ao Rio de Janeiro, cidade onde nasceu, Ruy Rey se tornou “um errante, um cigano”, conforme descreveu em sua autobiografia. O jogador lamenta a não convocação para a Copa do Mundo de 1978, reclama de ter ficado “entregue aos lobos da imprensa” e afirma que suportou uma “guerra psicológica” com a sociedade, problemas financeiros e até “conflitos familiares”.

“O artilheiro polêmico”, que caiu em desgraça em 1977, escreveu sobre o seu drama em 2006 (foto: acervo/Gazeta Press)

Em um trecho tocante, Ruy Rey recorda um diálogo com a sua mãe, Deusedina, que o colocou no colo e lamuriou: “Meu Deus, ajude meu filho! Dê coragem e fortaleça seu espírito. Eu sofro tanto. Por que meu filho tem que passar por isso? Mas, se for Sua vontade, dê-lhe força espiritual para suportar toda essa carga negativa que virá e que ele só pense em Deus, que não tome outro rumo na vida, como a marginalidade. Meu Deus, prefiro meu filho trabalho honestamente, ganhando salário mínimo, mas que possa criar meus netos. Meu Deus, cuide de meu filho, cuide de meu filho!”.

Ruy Rey conta que passou a chorar a portas fechadas a partir de então, para transparecer tranquilidade em seu “cativeiro domiciliar”. Evitava sair de casa “com medo de represálias públicas” e só começou a reencontrar a felicidade nos ensaios da escola de samba Alegria da Zona Sul – até que sofreu outro baque, um dia após o seu aniversário, em janeiro, com a morte do irmão Rubens.

Decidido a se reerguer, Ruy Rey negociou com a Universidad de Guadalajara, do México, o Fluminense e o Sport Recife antes de acertar contrato com o Corinthians por intermédio de um agente identificado apenas como “Carlos cabeleireiro”. No final da carreira, encerrada com uma passagem frustrante pelo modesto Sestao, da Espanha, ele ainda defendeu o colombiano Tolima, famoso algoz corintiano na pré-Libertadores de 2011.

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