Santos marca na história trégua em conflito - Gazeta Esportiva
Fernanda Silva
Santos, SP
02/04/2022 11:05:06
 

“Olha que loucura que o Santos fazia: o campo era tipo de várzea, só que cercado com arame farpado. E nós jogávamos ali, tranquilos”, lembra Walter Ferraz de Negreiros, ex-meia do Santos, de um dos episódios que marcou a história do Alvinegro da Vila Belmiro. Em 1969, assim como outros países da África, os Congos também enfrentavam grande conflito local. O Peixe, entretanto, aventurou-se para jogar em Brazzaville, na República do Congo, e em Kinshasa, na República Democrática do Congo. Os dois países, separados por um rio, contavam com um distanciamento não só geográfico, mas também ideológico. Há quem defenda que a mediação desse conflito foi a primeira guerra paralisada pelo clube, mas não há consenso neste caso, ao contrário da situação da Nigéria, que aconteceu poucas semanas depois.

“Por questões contratuais, se o Santos jogasse em Brazzaville, tinha que jogar em Kinshasa e as cidades não tinham relações diplomáticas”, explica Guilherme Nascimento, autor do livro Almanaque do Santos FC. “Cada região pertencia a um bloco político: República do Congo, alinhada ao bloco soviético, e a República Democrática do Congo alinhada ao bloco norte-americano. Por isso, não havia como atravessar o rio e nem tinham voos entre as duas capitais. Qualquer embarcação que tentasse cruzar essas águas era recebida a bala”, destaca o escritor.

Segundo Nascimento, não existia uma declaração de guerra formal entres os Congos, mas havia um clima de conflito armado. “Quando chegamos lá, recebemos a notícia de que estava havendo um problema com uma outra cidade”, lembra Lima, eterno curinga do Santos, em baixo do forte sol que atingia no Centro de Treinamento Meninos da Vila, em Santos (SP), onde o ex-jogador hoje trabalha com a base santista e atendeu à reportagem da Gazeta Esportiva. “Mas não tínhamos nenhum medo. Mesmo porque o próprio ambiente criado por eles [os locais] fazia com que não tivéssemos receios”, destaca, ainda vestindo o uniforme da equipe.

Os dois países entraram em um acordo especialmente pelo Santos, e uma embarcação militar partiu da República Democrática do Congo e foi até a República do Congo.

Na década de 1960, o Santos viajava mundo afora para exibir seu bom futebol e arrecadar dólares. A África, mesmo em constante tensão política e social, mostrava-se empolgada para ver Pelé, que já se sagrava rei do futebol e estava a poucos tentos de marcar seu milésimo gol. Dando continuidade à sua série de jogos no continente africano, o então campeão do Brasil, em 19 de janeiro, entrou em campo em Brazzaville, para enfrentar a seleção local. O jogo, na cidade com cerca de 165 mil habitantes, teve plateia de 96 mil pessoas, segundo o jornal A Gazeta Esportiva. Na ocasião, o brasileiros venceram de virada por 3 a 2 – sendo todos os tentos santistas marcados por Pelé, em tarde inspirada.

Após o jogo, para fazer a travessia, de acordo com periódico, a polícia local montou um dispositivo especial de segurança aos visitante. “Os dois países entraram em um acordo especialmente pelo Santos e uma embarcação militar partiu da República Democrática do Congo e foi até República do Congo. Lá, atracou no outro país e pegou a delegação para o segundo jogo”, explica Nascimento.

Contra a Maré

A travessia, que já era difícil por questões sociais, também foi complicada por problemas naturais, conforme lembra Jonas Eduardo Américo, o Edu, ex-ponta esquerda da Vila, sempre em meio a risos. “Tivemos que ser socorridos porque a correnteza estava nos levando e uma balsa teve que nos resgatar para chegarmos ao outro lado”, destaca o jogador que defendeu a Seleção Brasileira em três Copas do Mundo – 1966 (na Inglaterra), 1970 (no México) e 1974 (na Alemanha). “Não ficávamos sabendo dos conflitos. Mas eu me lembro do episódio do barco. Estávamos descendo e veio uma outra embarcação nos ajudar”.

Para Guilherme Guarche, coordenador do Centro de Memória e Estatística do Santos, entretanto, apesar de a equipe ter conseguido dialogar com os dois lados do rio Congo, não se pode dizer que essa foi outra guerra parada pelo time, de maneira literal. “Nós consideramos isso mais um problema diplomático, do que uma guerra”, defende.

“Como sempre, ganhamos”

O primeiro embate, no dia 19 de janeiro, na cidade de Brazzaville, plantada à beira do Rio Congo, começou com o Santos tomando dois gols. Logo, conforme escreveu A Gazeta Esportiva, “Pelé endoideceu o rival e a plateia. Conclusão: marcou três e o Santos venceu o jogo”.

Dois dias depois, já do outro lado do rio, em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, ex-Congo Belga, a equipe do litoral paulista era esperada por mais de 10 mil pessoas no Estádio Tata Raphael . Debaixo da forte chuva que caiu durante o decorrer de todo o jogo contra a seleção do Congo-Kinshasa, o Santos conquistou sua terceira vitória em solo africano. Mesmo com o estado escorregadio e pesado do gramado naquela noite de terça-feira, o time de Pelé fez 2 a 0 em cima dos Leopardos. O primeiro tempo acusou 1 a 0, gol de Toninho, aos 33 minutos, recebendo passe de Pelé. Manoel Maria, a 1 minuto da fase final, definiu o marcador.

A passagem pela África deu bons números e histórias ao Santos e também para seu principal trunfo, Pelé. “Em um intervalo de quinze dias o Santos estanca a morte em dois momentos, em três cidades diferentes da África”, finaliza Nascimento, referindo-se também ao episódio em que o Santos parou a guerra na Nigéria. Para Edu, o Alvinegro fez o que sabia fazer de melhor: jogar bom futebol. “Tivemos que jogar dos dois lados e, como sempre, ganhamos”, destaca. “Mas quando fomos embora a guerra continuou”, lamenta.



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