Há 53 anos: "só o Santos parou a guerra na África" - Gazeta Esportiva
Fernanda Silva
Santos, SP
02/04/2022 11:05:38
 

“Ter parado a guerra foi um ponto a mais para mostrar a nossa superação. Simplesmente poderíamos chegar e falar: ‘guerra dos dois lados, para que vamos entrar nesse rolo?’. Mas não. A gente queria fazer aquilo e pensávamos: ‘Não somos obrigados a jogar, mas queremos e vamos fazer isso’”, lembra Antônio Lima dos Santos, o Lima, eterno coringa da Vila, com o rosto marcado pelo suor do dia quente em Santos (SP), ainda vestindo o manto do alvinegro praiano. Agora, trabalhando com a base da equipe, o ex-jogador lembra, com saudosismo e entre boas risadas, o episódio em que, ao lado de seus companheiros do Santos Futebol Clube, parou uma guerra na África, há 53 anos.

Munido com Pelé, que já se sagrava rei do futebol, e com seus outros astros de sua tropa, a equipe da baixada viajava o mundo em excursões para mostrar seu bom futebol e arrecadar dólares. “Nesse início de ano, o Peixe estava se exibindo na África Ocidental”, conta Guilherme Guarche, coordenador do Centro de Memória e Estatística do Santos Futebol Clube. Depois de uma bela exibição na Nigéria, ainda no início da viagem, os praianos foram convidados a regressar ao país para uma segunda apresentação, que não estava programada quando o time deixou a Vila Belmiro, tempo antes. O intuito do governo nigeriano era melhorar sua imagem diante da população de Benin, local afetado pelos conflitos internos da região. “Eles queriam que o Santos voltasse à nação porque havia um movimento separatista para formar a República de Biafra, no enclave do território nigeriano. Nessa cidade, a guerrilha de Biafra tinha um grande movimento organizado”, explica Guilherme Nascimento, autor do livro Almanaque do Santos FC.

Era 4 de fevereiro de 1969. Na cidade de Benin, o Santos fez bonito no campo arenoso do estádio de Ogbe. Segundo o jornal A Gazeta Esportiva, publicado um dia após o embate, a partida teve “lotação esgotada” para ver a vitória dos Meninos da Vila em cima da seleção do Centro-Oeste da Nigéria, por 2 a 1. Os dois gols santistas foram marcados no primeiro tempo, “premiando assim a grande multidão que foi ao Estádio para ver o rei do futebol e sua renomada equipe”, conforme escrito no periódico paulistano.

“Nós só ficávamos sabendo dos conflitos quando chegávamos no local. 

Os tentos dos comandados por Antoninho foram feitos pelo ex-ponta-esquerda, Jonas Eduardo, o Edu, e por seu parceiro Toninho Guerreiro. “Toninho foi um centroavante fantástico, muito bom jogador. Fazia gols incríveis”, comenta Edu, sobre o amigo falecido em 1990. “Mas infelizmente, eu não lembro de fazer esse gol. Gostaria de lembrar”, ressalta o jogador, com saudades nos olhos marejados e largo sorriso no rosto enquanto compartilha as histórias ao lado do também companheiro de equipe Walter Ferraz de Negreiros, conhecido apenas como Negreiros.

Na linha, o trio defendia o time da Vila com Turcão, Ramos Delgado, Joel Camargo e Rildo (Oberdan), além de Lima e Manoel Maria, Toninho (Douglas), Pelé (Amauri) e Abel. A defesa do então bicampeão paulista ficava por conta do goleiro Gilmar (Laércio). Entretanto, a equipe base da Seleção Brasileira da Copa do Mundo disputada no ano seguinte não dimensionava os problemas políticos enfrentados pelos locais por onde passavam naquele início de ano.

“Lembro bem que o empresário falou que alguns países que gostariam de nos ver jogando estavam em guerra”, conta Edu. “Mas ele conversou com as autoridades e fizeram uma trégua nos combates”.

Lima comunga da lembrança do campeão mundial. “Nós só ficávamos sabendo dos conflitos quando chegávamos no local. Já tínhamos feito jogos em outras partes da África, mas ninguém comentava nada”, rememora. “Combinamos entre os jogadores e eles [responsáveis pela equipe] prometeram que não haveriam riscos. De fato, não houveram problemas, pelo contrário, fomos maravilhosamente bem tratados lá”, ressalta Lima. Isso porque, segundo Guarche, no dia da sétima apresentação dos comandados de Antoninho no Continente Negro, foi decretado feriado local na parte da tarde. “Então, não teve hostilidade nenhuma naquele dia”, destaca o coordenador.

O confronto e o rei

A luta em terras nigerianas começou em 1967 e terminou quatro anos depois. “Morreram mais ou menos um milhão de pessoas. Eles queriam criar uma República Separatista da Biafra, mas não conseguiram”, conta Guilherme Guarche. Considerado o maior time de futebol pela imprensa argentina na década de 1960, o esquadrão de Pelé atraia as atenções gerais em qualquer lugar que ele fosse. Isso incluía, além dos combatentes dos dois lados da guerra, a presença do rei Akenzua II, conhecido como “The Oba de Benin”, que governava espiritualmente na região, no embate.

No estádio, junto ao líder local, estava parte de sua família, composta por 26 esposas, 84 filhos e 216 filhas. “Na época, eu falei: ‘metade do estádio estará ocupado pelos parentes do rei. Estamos jogando simplesmente para família dele’”, brinca Lima, que brilhou no Santos de 1961 a 1971.

“Na lateral do campo ficavam os torcedores. O rei ficou perto de onde estávamos, e com suas esposas ao lado dele”, destaca Edu, “Lembro que os torcedores que estavam nas primeiras fileiras, perto do campo, tinham cadeira. O resto era tudo em pé”, finaliza o jogador que também vestiu a camiseta do canarinho em três copas do mundo – de 1966 na Inglaterra, 1970 no México, e 1974 na Alemanha.

“Jogamos em um campo tipo de várzea, nele não tinha nada, mas o rei queria ver o jogo. Aquilo, levantava uma poeira”, compartilha Negreiros a memória, conversando em frente a fotos da equipe o Santos da década de 1960, com, segundo o atleta, a melhor linha do futebol mundial. Para Lima, apesar da semelhança com o campo do futebol armador, a estrutura na cidade africana era diferente. “As pessoas, quando iam para o campo e levavam sua cadeira nas costas. Não se via isso na várzea”, lembra. “Quando chegamos no estádio, lá estava lotado. Muita gente em pé para que coubessem ainda mais pessoas. Todo mundo feliz, não teve briga, não teve nada”, sorri o grande curinga do Santos de Pelé.

A demora para descobrir que a guerra foi parada

Até o ano de 1990, não se falava que o Santos havia parado uma guerra. Nem sequer os jornais da época noticiaram o feito. Na Gazeta Esportiva daquele dia 4 de fevereiro, o destaque para a partida era pequeno, e a única menção ao conflito dizia que a Nigéria “se encontra convulsionada por acontecimentos internos”.

A pausa da luta foi colocada em pauta somente em 1990. A revista Placar, em homenagem ao 50º aniversário de Edson Arantes, o Pelé, fez uma matéria especial com ele. Foi a primeira vez que se falou de jogo da Guerra suspensa. “Só depois dessa matéria com Michel Laurence que se passou a falar que o Santos parou a guerra”, conta Guilherme Guarche.

Legado dentro e fora do campo

“Naquela época, não tínhamos ideia do que a gente representava. Fazíamos aquilo porque gostávamos”, destaca o saudosista jogador de Jaú (SP). “Era amor, amor e amor”. Lima concorda: “É o poder do esporte. Isso é um exemplo para o mundo inteiro. É uma forma de mostrar o quanto é errado ficar dando tiro um no outro. Vamos jogar bola que é melhor”, destacou, bem humorado.

A passagem pela África deu bons números ao Santos e também para seu principal trunfo, Pelé. Ao todo foram quatro vitórias, quatro empates e uma derrota. Pelé marcou oito gols nos noves jogos realizados e totalizou 946 tentos assinalados enquanto buscava sua marca de mil gols. “Para o Santos é um fato relevante, porque enaltece cada vez mais o nome do clube. Além disso, o torcedor se enche de orgulho de saber que o time dele parou uma guerra”, finaliza Guarche. Com a história, a torcida da baixada pode seguir entoando nas arquibancadas: “O meu Santos é sensacional. Só o Santos, parou a guerra”.



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