Está ruço? - Gazeta Esportiva
Helder Júnior*
São Petersburgo (Rússia)
07/08/2017 04:45:54
 

A Rússia não é tão fria entre junho e julho.

Copa das Confederações? População russa demorou a abraçar torneio visto como prévia do Mundial (foto: Olga Maltseva/AFP)

Em um bairro agitado de São Petersburgo, muitos já não se importavam com a exposição ao vento gelado. Vestiam apenas camisetas enquanto dispensavam a tradicional vodca para consumir cervejas e drinques típicos dos trópicos nos bares com mesas dispostas nas calçadas – era possível até degustar uma famosa cachaça brasileira em vários daqueles estabelecimentos, por um valor pelo menos 51 vezes maior do que se paga no país-sede da última Copa do Mundo.

“Sou da Sibéria”, explicou um calorento jovem com cerca de 30 anos, proveniente da região onde se situa o local habitado mais frio do mundo, a aldeia de Oymyakon. Em seguida, irônico, levou a mão à testa para enxugar uma gota de suor que não estava ali.

Na mesa do siberiano, não se falava sobre futebol. Por mais que um grupo de estrangeiros insistisse. Dirigentes, esportistas e jornalistas das mais variadas nacionalidades, munidos de ingressos para a decisão da Copa das Confederações e devidamente agasalhados, eles perambulavam pelas ruas de São Petersburgo em busca de referências ao Mundial.

“Já começou? Não era só no próximo ano?”, questionou um garçom, confuso. Atrás dele, cinco torcedores chilenos não paravam de fazer algazarra com camisas de sua seleção. “Chi, chi, chi! Le, le, le! Viva, Chile!”, gritavam, entre uma garfada e outra, em um aquecimento para a final contra a Alemanha. Quase ninguém compreendia o motivo de tamanha animação.

Na Rússia, a Copa do Mundo ainda é fria entre junho e julho de 2017.

Estátua da mascote Zabivaka é ignorada em movimentada avenida de São Petersburgo (foto: Helder Júnior/Gazeta Press)

“Não era o que eu esperava”, lamentou Fahad Khan, executivo da Federação Paquistanesa de Futebol, embora empolgado para usufruir ao máximo da competição considerada teste para o Mundial. “A Copa das Confederações tem sido um desapontamento em termos de emoção nas cidades e até mesmo nos jogos. Uma partida do Campeonato Japonês tem mais energia, diversão, paixão… O marketing da Copa do Mundo precisa ser intensificado. Esse é o maior desafio”, continuou.

Fahad logo preencheu o seu vazio. Com broches da Fifa na lapela do paletó, ele seguiu um grupo de russos pelas escadarias que davam acesso a um caraoquê, no porão de uma casa, onde só se escutava músicas em inglês.

Esse idioma, no entanto, não é de domínio público. Para retornar ao hotel onde está hospedado, Fahad e os seus companheiros carregavam consigo panfletos com o respectivo endereço escrito em alfabeto cirílico. Sem o recurso, provavelmente seria preciso apelar à mímica para se comunicar com um taxista.

Embora seguros, os táxis estão longe de ser um meio de transporte econômico em São Petersburgo. Quem almeja a comodidade de um carro particular sem dispender de tantos rublos, a moeda local, deve utilizar um conhecido aplicativo norte-americano – com a vantagem de não ter que informar o seu destino ao motorista, mas apenas digitá-lo no telefone celular.

Às 21 horas, o sol ainda ofuscava a visão de quem estava na Arena Zenit no último domingo (foto: François Xavier Marit/AFP)

Há mais uma alternativa de locomoção, à que um amigo boliviano de Fahad decidiu recorrer quando não encontrava táxis nas ruas nem uma rede de internet para conectar o seu telefone celular. Com um inglês tão limitado quanto o dos russos com quem tentava conversar, Juan Montaño teve a ideia de escrever “táxi” em uma folha de papel e mostrá-la a alguns condutores comuns. Um deles abriu a porta do carro e ofereceu-se para levá-lo ao hotel.

Musga?”, perguntou o motorista, na lembrança de Juan, para sugerir uma “музыка”, o russo de “música”. Em seguida, enfiou um pen drive no painel frontal do veículo e passou a sacolejar os braços ao som de uma melodia árabe eletrônica, em volume muito alto, bem diferente do repertório majoritariamente britânico do caraoquê.

A corrida custou 2.000 rublos (pouco mais de R$ 110), valor que o taxista improvisado relutou em digitar no telefone celular de Juan. O costume local é que o passageiro determine o preço da “carona”.

Quando o boliviano adentrou o seu quarto, eram mais de 3 horas, e o sol já estava a pino. Nessa época do ano, só escurece em São Petersburgo após as 22 horas (e por pouco tempo), o que fez Chile e Alemanha se enfrentarem à luz do dia no primeiro tempo do jogo com início às 21 horas, na Arena Zenit. Será assim nas partidas mais tardias da Copa do Mundo de 2018.

Até lá, a Fifa espera que a sua presença no país também esteja mais clara. Para a Copa das Confederações, o Comitê Organizador Local espalhou por São Petersburgo alguns cartazes e réplicas da mascote do Mundial, o lobo Zabivaka, insuficientes para prender a atenção dos pedestres. Durante cerca de dez minutos de observação, a Gazeta Esportiva não contabilizou nem sequer um que tivesse parado e fixado os olhos em uma dessas peças publicitárias.

Pantufa com a imagem do atacante Hulk estava em promoção na loja oficial do Zenit (foto: Helder Júnior/Gazeta Press)

A réplica da mascote estava estrategicamente localizada – a poucos metros de uma loja oficial do Zenit, popular clube da cidade defendido pelo brasileiro Giuliano. O meio-campista que despontou no Internacional é um dos jogadores de confiança do técnico Tite, porém ainda fica à sombra de um compatriota nos corações dos torcedores russos. A imagem do atacante Hulk, que passou pelo time de São Petersburgo entre 2012 e 2016 e hoje atua pelo chinês Shanghai SIPG, aparece estampada nos mais variados produtos vendidos ali, de pôsteres a pantufas.

Não foi à toa, portanto, que Hulk recebeu um convite para assistir à decisão entre chilenos e alemães acompanhado de um brasileiro com muito mais prestígio na sua posição, Ronaldo. Apresentado pela Fifa como uma “lenda”, o ex-jogador do Zenit contribuiu para combater o estigma de que o racismo será um problema durante a Copa do Mundo. “Tenho certeza de que isso não acontece mais aqui. Não aconteceu em nenhum momento da Copa das Confederações e não vai acontecer no Mundial. Comigo, no começo, eu ficava muito triste quando ocorria. Depois, fui me adaptando, e os russos me abraçaram. Um ano depois de eu sair do Zenit, já não existia mais racismo”, assegurou Hulk.

Acostumados a ver também os futebolistas locais Aleksandr Kerzhakov e Aleksey Smertin como garotos-propagandas da Copa, os russos agora começam a se familiarizar com outros expoentes da Seleção Brasileira, a primeira a obter uma vaga no Mundial por meio das Eliminatórias. Na edição do jornal Sovsport do dia que antecedeu o encerramento da Copa das Confederações, uma fotografia do técnico Tite ganhou grande destaque. “Essa matéria está dizendo que esse Tite – imagino que seja o nome do homem da foto – gostaria de se concentrar em Sochi e fazer um amistoso contra a Rússia”, traduziu, de bom grado, um guia turístico.

O técnico Tite, ainda desconhecido para alguns russos, já virou destaque em um jornal local (foto: reprodução)

Para os turistas brasileiros que flanavam por São Petersburgo, os elos futebolísticos com a população russa quase sempre ainda remetiam a um passado distante de Tite, Hulk e Ronaldo. Uma família paulista que acabara de visitar o Hermitage, um dos maiores museus de arte do mundo, e caminhava às margens do rio Neva para conhecer a emblemática Catedral do Sangue Derramado foi abordada desta forma por um comerciante de souvenires: “Edson Arantes do Nascimento!”. O fã de Pelé agradeceu com um “obrigado”, em português, após vender duas matrioscas (as tradicionais bonecas russas de madeira, encaixadas uma dentro da outra) e uma das suas várias camisetas que satirizavam o presidente Vladimir Putin.

Os brasileiros, contudo, eram minoria entre os turistas que passeavam por São Petersburgo no dia da final da Copa das Confederações. As ruas que levavam ao Estádio Krestovsky foram tomadas por muitos chilenos e poucos alemães naquele domingo. Quando se aproximavam do local da partida, também chamado de Arena Zenit, todos encurtavam os passos para admirar a construção que receberá sete jogos da Copa do Mundo.

A Arena Zenit já chamava a atenção na Rússia muito antes da sua inauguração. O estádio com capacidade para abrigar 68.134 espectadores passou impressionantes dez anos em obras e, tal qual ocorreu com diversas sedes da Copa do Mundo do Brasil, esteve envolvido em denúncias de corrupção. O seu custo saltou de R$ 366 milhões em 2007 para R$ 2,3 bilhões em 2017, segundo dados do governo municipal – R$ 1 bilhão a mais do que foi gasto na reforma do Maracanã, por exemplo.

A imponente Arena Zenit custou R$ 2,3 bilhões e ficou uma década em obras (foto: Helder Júnior/Gazeta Press)

Não somente o orçamento da Arena Zenit é elevado. Os chilenos e alemães que caminhavam na direção do imponente estádio já o avistavam ao longe, antes mesmo das esperadas reclamações por ter de superar os inúmeros degraus de suas escadarias. São 110m de altura, contra uma média de menos de 50m das sedes do Mundial do Brasil, com direito a uma cobertura retrátil, indispensável para a sua utilização durante o rigoroso inverno russo.

A segurança da Fifa também é austera. Para acessar a Arena Zenit, os torcedores deveriam apresentar, além do ingresso para o jogo entre Chile e Alemanha, a chamada “Fan ID”. Trata-se de uma credencial introduzida na Copa das Confederações, com a fotografia e o nome em alfabetos latino e cirílico do seu portador, com a finalidade de identificar cada um dos presentes no evento. O artifício serviu ainda para dificultar a ação de cambistas e facilitar a imigração na Rússia.

Após mostrar a “Fan ID” ao transpor a primeira barreira de segurança, os torcedores de Chile e Alemanha foram submetidos a uma revista minuciosa, que checou até as telas e teclas dos seus telefones celulares. Bolsas foram reviradas, e nem mesmo automóveis credenciados puderam circular pelos arredores da Arena Zenit sem que portas e capôs acabassem abertos para vistoria. Um dia antes da partida, no torneio infantil “Futebol pela Amizade”, promovido por uma das principais patrocinadoras da Fifa na Rússia, bastou uma mochila ser esquecida na arquibancada para policiais se aglomerarem, ressabiados com a possibilidade de terrorismo. “A KGB está com tudo!”, brincou um brasileiro, que assistia àquela competição como convidado, citando o antigo serviço de inteligência da União Soviética.

Veículos passaram por inspeção minuciosa antes de poder circular nos arredores do estádio (foto: Helder Júnior/Gazeta Press)

Não era necessário ter as virtudes de um agente secreto para notar que os ares desconfiados dos russos se transformavam à medida que o público enfim entrava na Arena Zenit. Lá dentro, os voluntários da Fifa se preocupavam em dar máximo suporte para os visitantes – indicavam o melhor caminho para chegar ao assento marcado, forneciam pulseiras de identificação para crianças, no caso de se perderem dos seus responsáveis, e esclareciam dúvidas sobre a rede de Wi-Fi do estádio. Para se conectar a ela, os torcedores forneciam um número de telefone celular de até 12 dígitos (os do Brasil, em geral, possuem 13), para o qual seria enviada uma senha de acesso. Quem estava online era incentivado a interagir em redes sociais por meio de hashtags, podendo ter as suas fotografias exibidas nos dois enormes telões da arena.

Havia distrações além da internet. Aglomerados nos corredores internos do estádio – com acabamento simples, contrastando com a fachada luxuosa –, torcedores formaram longas filas para comprar recordações da decisão da Copa das Confederações e degustar cachorros quentes e hambúrgueres. O cardápio do torneio não contemplou os pratos típicos, como o borscht (sopa cozida com beterraba) ou o estrogonofe, diferentemente do que ocorreu em 2014. No Mundial do Brasil, a Fifa cedeu a apelos e abriu uma exceção para que o feijão tropeiro prosseguisse como uma das atrações do Mineirão.

Boa parte dos torcedores estava mais interessada em beber do que em comer. Podendo escolher entre duas marcas de cerveja – uma delas, a mais barata, russa –, eles acumulavam os copos colecionáveis da Copa das Confederações enquanto se embriagavam. Alguns não se apressaram para se posicionar nas arquibancadas nem mesmo quando a festa de encerramento da competição começou.

Brasil foi representado por passistas na festa de encerramento da Copa das Confederações (foto: Yuri Cortez/AFP)

A cerimônia foi bastante simples, como é praxe no futebol, para não prejudicar o gramado que receberia a partida. E contou até com uma homenagem ao Brasil. Celebrando os países que já conquistaram a Copa das Confederações – a Seleção Brasileira é tetracampeã do torneio –, os russos se renderam ao clichê ao representar a nação sul-americana com passistas de escola de samba e capoeiristas.

Na hora de torcer, a população local deixou o lugar-comum e dividiu-se. Muitos se contagiaram pelo jeito inflamado com que os chilenos cantaram os últimos versos do seu hino à capela, agitando bandeiras nas arquibancadas. Houve até quem os cumprimentasse pela demonstração de patriotismo. Outros, talvez arrebatados pela campanha vitoriosa da Copa do Mundo passada, preferiram gastar a voz para se unir à minoria alemã e apoiar o time experimental do técnico Joachim Löw com berros indecifráveis. A gritaria se intensificava quando o polêmico árbitro de vídeo da Fifa entrava em ação.

Ao término da partida, o placar já não era relevante para quem encarava a Copa das Confederações como uma prévia da Copa do Mundo (a Alemanha venceu o Chile com gol marcado pelo atacante Lars Stindll no primeiro tempo, tirando proveito de falha do zagueiro Marcelo Díaz). Os russos que foram à Arena Zenit confraternizaram-se de maneira que trazia esperanças a quem ainda anseia presenciar um clima de Mundial no país eurasiático.

Chilenos tomaram as ruas de São Petersburgo e a Arena Zenit na Copa das Confederações (fotos: Helder Júnior/Gazeta Press)

“Antes dessa Copa das Confederações, ouvimos muito sobre os problemas que teríamos na Rússia – violência, ação de hooligans, racismo, arbitragem –, mas não passamos por nada disso. Não houve incidentes. Se um torneio problemático se parecesse com esse torneio, então quero muitos torneios problemáticos indo em frente”, festejou o suíço Gianni Infantino, presidente da Fifa, entusiasmado para a Copa do Mundo.

Até mesmo Fahad Khan, o paquistanês que vagava em busca de emoções nos bares e caraoquês de São Petersburgo nos dias anteriores, rendeu-se. Ele, que se encontrou com Infantino em Singapura, no ano passado, fez diversos elogios à população russa. “As pessoas daqui estão sempre dispostas a ajudar. Elas são generosas e amáveis. Não perderei a Copa do Mundo por nada. Futebol é o que amo, como, bebo e durmo”, exagerou, avisando que a maioria dos habitantes do seu país, nada tradicional no esporte, torcerá pelo Brasil em 2018. A Alemanha está em segundo lugar na predileção paquistanesa, ainda de acordo com ele.

Fahad Khan, da Federação do Paquistão, encontrou Infantino em Singapura e foi elogioso à Rússia (foto: divulgação)

No próximo ano, a Fifa imagina que mais russos também viverão de futebol. As próprias origens de São Petersburgo ensinam sobre as benesses de abraçar o que é cultuado no exterior. Em 1703, a cidade foi fundada pelo czar Pedro, o Grande, que a transformou na capital do Império Russo com a intenção de abrir o país às modernidades do ocidente.

Entre 2017 e 2018, é o calor do grande povo descendente de Pedro, apesar da resistência à Copa das Confederações, o maior trunfo para aquecer a 21ª edição da mais prestigiada competição do planeta. Dirigentes da Fifa já se encheram de confiança.

Afinal, a Rússia não é tão fria entre junho e julho.

*O repórter viajou a convite da Gazprom.

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