Fim da linha - Gazeta Esportiva
Marcos Guedes*
São Paulo (SP)
03/02/2016 06:28:25
 

Mané Garrincha desembarcou no Parque São Jorge no início de 1966 e fez sua estreia pelo Corinthians no dia 2 de março, exatamente meio século atrás. De acordo com Ruy Castro, que mergulhou na trajetória do craque para contá-la em “Estrela solitária – Um brasileiro chamado Garrincha”, sua vida no futebol já havia sido efetivamente finalizada mais de três anos antes.

“Em minha opinião, Garrincha encerrou sua carreira em dezembro de 1962 no jogo Botafogo x Flamengo, pela final do Campeonato Carioca, vencido pelo Botafogo por 3 a 0, dois gols dele”, afirmou o escritor à Gazeta Esportiva. “Pelos dez anos seguintes, prosseguiu sua carreira por vários clubes, inclusive o Botafogo, como um ex-jogador em atividade. Nenhum deles quis lhe dizer nada. Nem mesmo o Flamengo, clube pelo qual – segundo sua irmã, Rosa – torcia em criança.”

Um dos motivos da quase aposentadoria era seu joelho direito sem meniscos. Outro era o alcoolismo. O problema havia se acelerado no ano que antecedeu a transferência ao Corinthians, incentivada pela companheira Elza Soares. Novos ares e o entusiasmo renovado pelo futebol, julgava ela, poderiam dar ânimo a seu Neném.

O técnico Oswaldo Brandão apostava em Garrincha (foto: A Gazeta Esportiva)
O técnico Oswaldo Brandão apostava em Garrincha (foto: A Gazeta Esportiva)

O Mané realmente ganhou vigor ao trocar o Rio de Janeiro por São Paulo. Especialmente pela tentativa de disputar a Copa do Mundo de 1966, seguiu todas as recomendações dos médicos e preparadores físicos nos exercícios para fortalecer sua perna. Ele não exercia, porém, controle sobre a escalada alcoólica, que já não tinha relação direta com sua força de vontade.

Só o que causava algum efeito direto era a presença física de Elza, que proibiu bebidas no apartamento do casal, em Higienópolis. Mas criatividade nunca foi o problema do anjo das pernas tortas, que escondeu um estoque dentro de uma poltrona. Descoberto, adotou nova estratégia, trocando a água tônica das respectivas garrafas pela cachaça Tatuzinho.

As artimanhas incluíam amarrar as garrafas com um barbante e pendurá-las do lado de fora da janela do banheiro do chique prédio na rua Maranhão. O organismo de 32 anos do jogador exigia álcool. Por isso, na semana da estreia pelo Corinthians, um mês e meio após a chegada a São Paulo, causou risos a peregrinação de Elza pelos bares nos arredores do Parque São Jorge. Tarde demais, ela pedia aos donos dos botequins que não vendessem álcool ao companheiro: ele já era freguês.

 José Teixeira não é muito observador (foto: Sergio Barzaghi/Gazeta Press)
José Teixeira não é muito observador (foto: Sergio Barzaghi/Gazeta Press)

No clube, houve quem não percebesse. Com uma ou duas doses caprichadas no início do dia, o corpo de Garrincha se estabilizava. José Teixeira era o responsável por sua preparação física, acompanhando diariamente o esforço do camisa 7 em aparelhos como o “sapato de chumbo”, e até hoje não crê que o alcoolismo tenha atrapalhado o ponta-direita há 50 anos.

“Não, não. Nunca vi o Garrincha beber! Nunca vi! Sempre que um jogador chegava ao clube, eu conversava abertamente que tinha ouvido isso e aquilo, perguntava se era verdade. Se ele falava que sim, eu dizia: ‘Vamos dar um jeito’. Não tive problema de bebida com ele”, disse à Gazeta Esportiva o preparador, que ficou um bom tempo no Corinthians e lidou com mais de um dependente alcoólico. “Por exemplo: todo o mundo não fala que o Sócrates bebia? Eu só o vi beber depois de parar de jogar.”

José Teixeira (à dir.) jura nunca ter visto Sócrates bebendo (foto: A Gazeta Esportiva)
O professor José Teixeira jura nunca ter visto Sócrates beber nos tempos de Corinthians (foto: A Gazeta Esportiva)

Ainda que sem alarmar Teixeira, Garrincha se esforçou bem menos para combater o vício após o fracasso na Copa do Mundo de 1966. Se sua carreira havia acabado em 1962, como observou Ruy Castro, o que se viu dali em diante, até as últimas partidas disputadas pelo Olaria, em 1972, foi uma caricatura do jogador que carregara o Brasil ao bicampeonato dez anos antes.

Multiplicaram-se os incidentes relacionados ao consumo de álcool, o que só se ampliou com a progressão da doença após a aposentadoria. Quando Elza perdeu a luta e desistiu, o Mané se viu próximo do fim. Seu corpo, que tanta alegria dera ao povo, parou definitivamente de funcionar aos 49 anos, em 1983.

Àquela altura, o Corinthians já tinha vivido o maior momento de sua história, o angelical chute de Basílio, em 13 de outubro de 1977. Na noite mais feliz da vida de muita gente, quem gritou “Timão” o fez também graças ao Mané.

*Colaborou Helder Júnior



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