O craque mais brasileiro - Gazeta Esportiva
Marcos Guedes*
São Paulo (SP)
03/02/2016 03:19:09
 

É difícil achar um personagem mais brasileiro do que o mulato Garrincha, avesso a normas sociais, ingênuo e instintivamente genial. Some-se a tudo isso a mistura religiosa, algo tão nacional quanto os sambas cantados por sua mulher Elza Soares, e temos um anjo torto pintado tipicamente em cores locais. Em 1966, ele chegou ao Corinthians, clube que se define em seu hino como “o clube mais brasileiro”.

Essa união só aconteceu com a bênção de um pai de santo, Seu Alberto, compadre de Elza. De acordo com relato de Ruy Castro, biógrafo do craque, o baiano apontou um ambiente carregado contra o casal no Rio de Janeiro e recomendou a mudança para São Paulo. O técnico alvinegro, Oswaldo Brandão, tinha lá seus pais de santo na capital paulistana, conhecia a fama de Seu Alberto – havia outros clientes famosos, como Elizeth Cardoso e Altemar Dutra – e aprovou prontamente a contratação.

O que fizeram o ponta-direita e sua companheira quando os papéis foram assinados? Correram para o interior de São Paulo, no Santuário Nacional de Aparecida, para agradecer a Nossa Senhora Aparecida. O pai de santo pode ter indicado o caminho, mas ele não seria trilhado sem a ajuda da Cidinha, como é carinhosamente chamada a padroeira do Brasil, venerada na Igreja Católica.

Elza Soares e Garrincha não formavam um casal ateu (reprodução/A Gazeta Esportiva)
Elza Soares e Garrincha não formavam um casal ateu (reprodução/A Gazeta Esportiva)

“Fomos comprar uma vela do meu tamanho. A promessa de Elza era um pedido à santa para que eu fosse contratado pelo Corinthians. O negócio era mesmo pagar. O pior é que ela não ficou satisfeita”, contou Garrincha, em entrevista publicada por A Gazeta Esportiva em 22 de janeiro de 1966, dia seguinte à visita.

A insatisfação da cantora era explicada por um alvinegro teimoso. “O vendedor das velas era corintiano e não quis receber o dinheiro de jeito nenhum. Mas eu disse para ela deixar isso para lá. Eu também fiz uma promessa, e a gente pode depois pagar tudo junto”, disse o camisa 7, descrevendo o pagamento prometido e a graça solicitada: “Dar uma vela do dobro do meu tamanho se o Corinthians levantar o título de 66”.

Se o desejo não foi alcançado, não foi por falta de fé. Logo que se instalou no apartamento providenciado pelo clube no chique bairro de Higienópolis, Elza mandou Seu Alberto lavá-lo com sal grosso. Em seguida, foi a vez de Oswaldo Brandão levar o pai de santo ao Parque São Jorge na procura por sapos enterrados no gramado – busca incrivelmente recorrente na história da agremiação.

Apartamento na rua Maranhão estremeceu (foto: A Gazeta Esportiva)
Apartamento na rua Maranhão estremeceu (foto: A Gazeta Esportiva)

Foi achado “um fóssil de qualquer coisa embrulhado num saco já quase desfeito e amarrado com linha de carneiro”, narrou Ruy Castro. O campo estava limpo para a redenção do time preto e branco, já na segunda década de jejum. O apartamento – inaugurado em festa com Wilson Simonal, no auge, como grande atração – estava lavado para o casal recomeçar sua vida, livre do ambiente carregado do Rio de Janeiro.

E o prédio da rua Maranhão estremeceu. Católicas senhoras chegaram a ameaçar chamar a polícia. “Nunca tinham visto – aliás, ouvido – tanto alvoroço noturno no sacrossanto recesso de um lar. Os sons se estendiam pela madrugada, com intervalos de quinze minutos para respiração. Ninguém podia fazer aquilo tantas vezes numa noite e com o mesmo entusiasmo”, divertiu-se Ruy Castro.

*Colaborou Helder Júnior



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