Shakhtar do Brasil - Gazeta Esportiva
Gabriel Ambrós*
São Paulo
03/28/2019 08:00:26
 

Quase todo torcedor de um grande clube brasileiro já assistiu seu time de coração vender um jogador para o Shakhtar Donetsk. Há cerca de 15 anos com uma política estabelecida de avaliação, compra, utilização e, eventualmente, revenda de atletas brasileiros, o clube ucraniano se tornou um dos principais compradores das jóias reveladas anualmente no país.

Para entender melhor o planejamento do clube em relação aos atletas do Brasil, a Gazeta Esportiva entrevistou o diretor de scouting do clube, o português José Boto. Com longa passagem pelo Benfica, o dirigente, que assumiu o comando do departamento no meio de 2018, esteve no país no início do mês de março para observar atletas e estreitar as relações entre Shakhtar e clubes brasileiros. Confira:

O resultado do investimento do Shakhtar é a transformação do clube de Donetsk, situado no longínquo leste da Ucrânia, no mais brasileiro da Europa. Para se ter uma noção, dos 28 atletas do elenco atual, 12 são do país, sendo 11 meio-campistas e atacantes. Segundo dados do site especializado em transferências Transfermkt, do período entre 2004 e 2019, o clube investiu 223,16 milhões de euros (cerca de R$ 967,92 milhões) na contratação de 29 brasileiros.

Além do desenvolvimento e utilização desses jogadores, o Shakhtar ainda conseguiu estabelecer uma balança comercial positiva com a venda de 15 dos 29 atletas por preços, em média, muito maiores do que o investido inicialmente. Ao todo, os ucranianos levaram 267,5 milhões de euros (cerca de R$ 1,16 bilhão) com as negociações, em sua maioria para clubes de maior porte do futebol europeu, como a transação do volante Fred no início da última temporada para o Manchester United, pelo valor recorde de 59 milhões de euros (cerca de R$ 255,9 milhões).

Relembre os jogadores brasileiros que atuaram pelo Shakhtar Donetsk

 

Confira a entrevista na íntegra:

Gazeta Esportiva: Como os atletas e clubes brasileiros enxergam o Shakhtar?

Boto: Pela história do Shakhtar. É um clube bastante conhecido aqui no Brasil e um clube que tem portas abertas para os jovens, porque os jovens percebem que é uma porta de entrada muito grande para a Europa, e isso tem a ver com a história. Se nós olharmos para o que foi a Seleção Brasileira na última Copa do Mundo, cinco jogadores que passaram pelo Shakhtar, e é óbvio que o jovem jogador brasileiro olha para isso e o clube vira apelativo para o atleta.  

Gazeta Esportiva: O que o Shakhtar busca em um jogador brasileiro?

Boto: Não só o Shakhtar, mas os clubes no geral; o que nós procuramos no jogador brasileiro é um pouco daquilo que não temos na Europa. É aquela criatividade, velocidade, o drible, isso que nós procuramos muito no jogador brasileiro. Essas características normalmente se expressam mais nesse jogadores que nós chamamos de extremos, vocês chamam de pontas; não é porque procuramos essencialmente essa posição, porque na história do Shakhtar tem outros jogadores; como o Fred, o Fernandinho, que jogam no meio-campo, hoje em dia tem o Maycon, temos também o Alan Patrick, o Júnior Moraes, que é um centroavante, como vocês chamam.

Gazeta Esportiva: Como o Shakhtar faz para vencer a concorrência dos gigantes europeus?

Boto: Tudo o que são clubes periféricos na Europa, a liga portuguesa, ucraniana, que não são daquelas top ligas europeia, tem uma dificuldade acrescida, que não tinham a 10 anos atrás, 15 anos atrás. Que era, os grandes clubes europeus não vinham direto comprar ao Brasil, deixavam que os portugueses, os ucranianos como o Shakhtar, comprar; o jogador fazia dois, três anos, desenvolvia, depois o clube comprava. O que se passa neste momento é que estes clubes vieram direto para o Brasil e inflacionaram o valor do jogador brasileiro. Se nós olharmos para o preço de um Vinícius Jr., de um Rodrygo, percebemos que isso tem a ver com o fato de grandes clubes começarem a vir comprar direto. Isso obriga os clubes que não são tão fortes, que não tem tanta capacidade econômica a termos que arriscar mais e a comprar mais cedo, antes que os outros percebam que realmente há ali um grande talento.

Jose Boto, diretor de scout do Shakhtar Donetsk (Foto: Fernando Dantas/Gazeta Press)

Gazeta Esportiva: Como é a estrutura de observação e avaliação do Shakhtar?

Boto: Nós temos uma estrutura de scouting que tem oito pessoas e uma delas vive aqui no Brasil e o que ele segue mais são os campeonatos de base. Porque o Brasileirão, por exemplo, para mim é fácil assistir na televisão e muitas vezes vir aqui também. E o que eu quero que ele faça mais é esses campeonatos de base, sub-20, sub-17, para nós conhecemos primeiro antes que eles apareçam no Brasileirão. (…) ele observa, passa os nomes a mim, eu faço uma monitorização do jogador, venho vê-lo ao vivo também, e se nos agrada, se o preço for compatível, tentamos ver com o treinador, com o presidente, que é quem toma a última decisão, trazemos esses jogadores antes que apareçam ofertas maiores e aí não temos condição de chegar a elas.

Gazeta Esportiva: O Shakhtar tem uma estrutura específica para auxiliar na adaptação do atleta brasileiro na Ucrânia.

Boto: O clube tem um departamento de apoio aos jogadores estrangeiros. Tem pessoas que falam português, então o jogador logo ali tem uma facilidade de comunicação muito grande. Acompanha o jogador em tudo que for necessidade; a casa, o carro, tudo que ele precisa está muito bem protegido pelo clube. Por outro lado, o fato de já haver uma comunidade de jogadores brasileiros no clube ajudam a integração dos novos jogadores, e depois também o fato de o treinador nas últimos três anos ser português, que também ajuda a comunicação, que é um fator importante para que o jogador perceba as necessidades táticas da equipe e é muito mais fácil quando o treinador fala a mesma língua.

Brasileiros encontram boa estrutura para se adaptar em Donetsk (Foto: AFP/Genya Savilov)

Gazeta Esportiva: É mais fácil observar jogadores no futebol brasileiro?

Boto: É um jogo mais anárquico, não é tão tático e isso permite poder ver mais a qualidade do jogador, o que ele vale por si, ao invés de imaginar, porque muitas vezes o que se passa em outros países é que o jogo é tão tático, o jogador está tão amarrado àquilo que é a sua missão tática, que nós não conseguimos ver o jogador em sua plenitude. E uma das coisas boas que o Brasil tem; boa para nós scouts que vamos ver, quiçá não tão boa para a liga brasileira; é que é um jogo mais anárquico, mais aberto.

Gazeta Esportiva: Clubes brasileiros deviam usar mais atletas de base para valorizá-los?

Boto: É uma visão de fora que muitas vezes não toma em consideração coisas culturais, coisas que tem a ver com o país, que eu no caso não conheço. Aquilo que às vezes eu penso é: com a quantidade de jogadores brasileiros, quantidade de qualidade de jovens, se as equipes colocassem um, dois, a jogar nas equipes principais, os preços deles disparava e, ao invés de venderem por 10, venderiam por 20. Tenho poucas dúvidas de que essa estratégia de mercado iria resultar. (…) há países que jogam muito com isso, com lançar jovens que despertam a cobiça dos grandes clubes, porque um jovem a jogar em uma liga profissional é logo diferente, e isso faz inflacionar o preço. Mas no Brasil não há essa política. Ainda bem que não há porque somos nós que compramos (risos).

Destaque do Santos, Rodrygo já está vendido ao Real Madrid (Foto: Sergio Barzaghi/Gazeta Press)

Gazeta Esportiva: Como funciona a relação entre scouts, empresários e clube nas contratações?

Boto: Hoje em dia é muito fácil chegar a conversa com jogador, com empresário de jogador, com o próprio clube para negociação. Não temos nada específico, nada ‘é assim ou é assado’. Temos uma pessoa que trabalhamos mais nos últimos anos, mas também trabalhamos com outras pessoa, não há uma especificidade da forma como abordamos o jogador para a contratação.

Sim, sim, isso é normal, é normal em todos os clubes. E temos realmente pessoas com que trabalhamos mais do que outras, pela proximidade que tem o Shakhtar, mas não quer dizer que tudo é feito por essas pessoas. É uma situação circunstancial e de análise do próprio clube, de como chegar mais facilmente àquilo que é o objetivo do clube.

Gazeta Esportiva: O scouting está inflacionando o futebol?

Boto: Não é propriamente que o scouting é o culpado disso, o scouting é uma consequência de o mercado ter mudado. Ou seja, o fato da maior parte dos clubes ter scouting, faz com que conheçam praticamente todos os jogadores que existem no mundo inteiro, e a concorrência é fortíssima, como é óbvio, isso faz o mercado disparar e os preços dispararem.

Porque antigamente só um ou dois clubes conheciam a base dos clubes do Brasil, e hoje todos os clubes da Europa conhecem os grandes jogadores da base. A questão é que não é a descoberta do jogador, porque ninguém mais descobre hoje em dia, é uma questão de se arriscar na contratação deles sem ainda terem dado provas de que estão preparados para jogar no mais alto nível.

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*especial para a Gazeta Esportiva