Ponto fora da curva - Gazeta Esportiva
Bruno Calió
São Paulo
07/10/2018 23:04:28
 

Harry Kane e Luka Modric irão comandar suas seleções na busca do que parecia impensável há 23 dias: uma vaga na final da Copa do Mundo. Destaques de Inglaterra e Croácia, ambos representam seus povos como poucos em campo e, apesar de opostos nesta quarta-feira, têm trajetórias similares, que já se cruzaram e podem voltar a se encontrar.

Quando Harry Kane tinha apenas um ano, Modric já sofria com a guerra de sua recém-criada Croácia. Em meio a um sistema comunista em ruínas, seu país anunciou a independência da Iugoslávia em 1991, dando início ao sangrento conflito que seria encerrado apenas em 14 de dezembro de 1995, com um saldo de 20 mil mortos e mais de 400 mil desabrigados.

Uma das vítimas do conflito armado foi o avô de Luka, que junto com o pai do atleta, Stipe, pegou em armas para defender sua pátria. Refugiado em um hotel na cidade de Zadar, o pequeno Modric passou os anos seguintes sonhando com sua mudança de vida, enquanto seus pais tentavam lhe dar uma infância o mais próximo possível do normal.

E como a maioria dos jovens do planeta, mas de maneira pouco usual, Modric conheceu o futebol. Aos 11 anos, com o recente final da guerra, passou a jogar na equipe local de Zadar, para apenas em 2002, aos 17 anos, seguir para o Dínamo Zagreb, o maior clube do país, em transferência que apesar de importante futebolisticamente, segue rendendo dor de cabeça ao craque.

O diretor do Dinamo na época era Zvadro Mamic, empresário que caçava talentos e foi condenado pela Justiça por fazer atletas assinarem contratos fraudulentos, em que parte dos salários e valor de transferências futuras desses jogadores acabavam em seus bolsos. Assim, foi sentenciado a seis anos de cadeia por desviar R$ 68 milhões do clube e sonegar R$ 7,4 milhões em impostos. Ele, no entanto, evadiu para a Bósnia-Herzegovina e segue em liberdade.

Anos mais tarde, em 2017, Modric, que foi agenciado por Mamic quando atuou na Croácia, foi chamado a depor sobre o caso. De início, o atleta confirmou o esquema, mas depois, voltou atrás ao dizer que “não se lembrava”. Assim, o meia se tornou alvo de ofensas de parte dos croatas, em especial, os torcedores do Hadjuk Split, maior rival do Dinamo Zagreb.

Polêmicas à parte, foi em 2003, porém, que sua carreira decolou. Emprestado para o Zrinjski Mostar, da Bósnia-Herzegovina, outra nação recente, ele foi eleito o melhor jogador do Campeonato nacional aos 18 anos. “Eu joguei na Bósnia. Quem joga na Bósnia, joga em qualquer lugar”. Era um passo importante para o garoto que ainda retornaria a seu país para conquistar o povo que viu seu pai defender.

Enquanto isso, em Londres, Harry Kane, ainda com nove anos, apesar da situação social e familiar incomparável, também enfrentava suas dificuldades para ingressar no futebol. Nascido próximo ao estádio White Hart Lane, o jovem inglês, cujo pai nasceu na Irlanda, começou a jogar no Ridgeway Rovers, que lançou David Beckham ao Manchester United. Com apenas nove anos foi chamado para testes no rival Arsenal, mas foi dispensado também por ser considerado “gordinho”.

“Eu não consigo realmente lembrar o que senti no momento. Para ser honesto, eu não acho nem que eu realmente sabia o que isso significava. Eu era muito jovem. Mas eu lembro como o meu pai reagiu e como isso fez me sentir. Ele não me criticou. Ele não criticou o Arsenal. Ele não pareceu especialmente incomodado de modo algum. Ele apenas disse: ‘Não se preocupe, Harry. Nós iremos trabalhar mais duro e nós iremos continuar e iremos encontrou outro clube, certo?’”, contou ao Players Tribune.

O primeiro clube, no entanto, foi o time do bairro em Walthamstow. Lá, o garoto loiro foi descoberto por um olheiro e convidado para um teste no Watford, onde enfrentou o Tottenham, impressionou os Spurs e, aos 16 anos, recebeu o convite para finalmente treinar por sua equipe do coração. “Harry Kane, he’s one of our own (Harry Kane, ele é um de nós)”. A música cantada hoje em White Hart Lane sempre foi verdadeira, mas ainda estava longe de ser entoada em 2009.

Quase junto com Harry Kane, chegava ao Tottenham o ainda pouco conhecido Luka Modric, que havia retornado ao Dínamo Zagreb após sucesso na Bósnia. Franzino, o croata de 1,74m venceu o prêmio de melhor jogador dos Spurs logo na temporada 2010/11, em que os londrinos chegaram às quartas de finais da Liga dos Campeões, terminando a fase de grupos na primeira colocação da chave que tinha Internazionale e Milan.

Kane e Modric nunca jogaram juntos, mas dividiram vestiário no Tottenham durante algum tempo, enquanto o centroavante, já grandalhão, alternava entre seguidos empréstimos para Bristol Rovers, Milwall, Norwich e Leicester. O inglês rodava tanto, que mesmo tendo ficado no banco de reservas do Tottenham com apenas 16 anos, já começava a ter dúvidas sobre sua carreira.

“O pior momento foi provavelmente quando eu estava no Leicester City e não conseguia ver como conseguiria entrar no time. Eles ainda estavam na Championship [segunda divisão] na época e eu lembro de estar no meu apartamento e ter essa terrível percepção de ‘Se eu não consigo jogar no Leicester na Championship… Como eu poderia jogar pelos Spurs na Premier League?’”, contou ao Players Tribune.

Enquanto Kane se questionava, Modric deixava o Tottenham na temporada 2012/13 pela porta dos fundos. Já com a idolatria tão sonhada por Kane, o croata tentou forçar uma transferência de 40 milhões de libras para o rival Chelsea, não aceita pelos Spurs, que o negociaram com o Real Madrid.

“Meu único arrependimento foi não ter ganho um título pelo Tottenham. Queria ter ido embora de uma maneira melhor, espero que os fãs entendam um dia que segui meus sonhos”, disse à revista Four Four Two.

Para curar o que consideraram uma traição, nada melhor do que ver um torcedor em campo. Com a demissão do técnico português André Villas-Boas, substituído por Tim Sherwood, e a má fase da primeira e segunda opção para o ataque, Adebayor e Soldado, Harry Kane finalmente ganhou espaço no Tottenham.

Foram três gols nos primeiros três jogos como titular e o início da ascensão do centroavante que não apenas não seria mais contestado, como bateria recordes de Neymar, Henry, Messi e Cristiano Ronaldo como o atleta que precisou de menos jogos para alcançar a marca de 100 tentos.

Já consolidado no Tottenham e fortemente especulado no Real Madrid, Kane pode novamente dividir vestiários com Modric após a Copa do Mundo, que já os premiou com três troféus de melhor em campo para cada um. Antes, o filho de irlandês e o Iugoslavo de nascença tentarão levar suas nações, Inglaterra e Croácia, ao último passo pela glória máxima do futebol mundial.

Modric e Kane são os destaques de Croácia e Inglaterra (Foto: AFP)