O homem por trás do apito e do recorde - Gazeta Esportiva
Pedro Nascimento
São Paulo
11/22/2020 06:00:32
 

A última rodada do Campeonato Brasileiro teve um gosto especial para Héber Roberto Lopes. Ao apitar a vitória do Vasco sobre o Sport, o árbitro de 48 anos chegou a 350 partidas na competição de elite no futebol nacional e se igualou a Arnaldo César Coelho como o juiz com mais jogos no Brasileirão. Neste domingo, o paranaense baterá a marca, já que está escalado para comandar o confronto entre Botafogo e Fortaleza, no Engenhão, com bola rolando a partir das 18h15.

(Foto: Arte/Gazeta Esportiva)

Héber comentou sobre o recorde em entrevista exclusiva à Gazeta Esportiva, mas foi muito além ao destrancar o baú de sua carreira e abordar as mais diversas camadas do profissional da arbitragem no Brasil. O juiz que iniciou sua trajetória apitando partidas de futsal com apenas 13 anos passou pelos mais diversos tipos de percalços antes de chegar à final da Copa América de 2016.

Acho que a maioria vira árbitro no Brasil por situações inusitadas e acidentais. Eu acompanhava um time de uma empresa que se chamava Revisora na Vila Recreio, do senhor José Prestes. Eu era tudo: o massagista, o que levava a bola, acabava o jogo eu recolhia o uniforme do pessoal. Tinha um senhor que apitava todo sábado de tarde o jogo da Revisora. Um belo dia, esse senhor não foi e o Prestes me deu o apito. Pensei: ‘Meu pai amado, eu com 13 anos apitando jogos de adultos’. Fui bem naquele jogo, no outro o velhinho voltou, mas os caras já sacaram ele.

Da experiência como lavador de pratos em Roma até alcançar Arnaldo César Coelho, Héber atuou profissionalmente em campos por todo o país e acompanhou transformações no futebol e na arbitragem. O paranaense de nascimento e catarinense de federação não esquiva ao analisar o VAR no Brasil e, prestes a se formar em jornalismo, projeta seu futuro após pendurar as chuteiras e o apito.

(Foto: Djalma Vassão/Gazeta Press)

Como você deixou o futsal e passou a apitar futebol?

No salão, eu também tive uma velocidade muito rápida. Com 18 para 19 anos, já estava apitando uma final de Taça Brasil de adultos. Depois, tive um período em que morei na Europa por dois anos. Em 1990, fui para a Itália tentar apitar futebol, mas a federação deles não aceitou o diploma de futebol de salão. Eu ia começar tudo de novo, lá da mamadeira, só que no campo. Fiquei trabalhando dois anos como garçom e lavando prato em um restaurante de Roma. Depois de dois anos, percebi que estava perdendo tempo, porque fiquei afastado da arbitragem.

Volto para o Brasil e, em 1994, entro para a Federação Paranaense de Futebol, tornando-me árbitro de futebol. Já comecei apitando a segunda divisão do Paranaense, porque já era conhecido do futebol de salão. Aí vem uma das coisas mais expressivas, que hoje seria difícil de acontecer: entrei na CBF em 1995, com apenas um ano. Em 2002, entrei para o quadro da Fifa e fiquei por 16 anos.

Quais as maiores dificuldades que você encontrou no início de sua carreira?

Eu digo que a parte mais difícil é o controle de jogo, a parte disciplinar. Porque você tem jogadores que tiveram carreiras em clubes grandes e, no final de suas carreiras, vêm para jogar em times de segunda divisão. Eles não aceitam ter seus jogos apitados por árbitros de apenas 18 anos. Então, você tem que ter boas ações disciplinares para a condução do jogo. É até um conselho para os árbitros mais jovens: façam um alicerce muito bem solidificado em suas carreiras, principalmente na parte disciplinar.

Você imaginou que chegaria às competições mais importantes quando começou a apitar?

Eu coloquei metas, assim como todo cidadão que vai fazer o curso de medicina coloca que ele quer ser um clínico geral ou um cardiologista. Eu coloquei alguns objetivos, mas com o pensamento de que seria quase impossível. Quero apitar um jogo no Maracanã, quero ingressar no quadro da Fifa, quero apitar o Campeonato Brasileiro. Graças a Deus essas coisas foram acontecendo, apitei grandes jogos no Maracanã, inclusive uma final do Campeonato Brasileiro.

O que foi determinante para que você tivesse sucesso em sua carreira?

Vou tomar muito cuidado para não parecer uma autoavaliação. Eu prefiro que as pessoas façam uma avaliação do meu trabalho. Mas, falando de uma forma objetiva, acho que minha carreira foi pautada pelo amparo de todas as comissões pelas quais eu passei. Sempre tive a confiança dessas comissões estaduais e nacionais. Eu sempre fui um árbitro com um perfil mais rigoroso. Eu me impunha nos meus jogos, ainda tenho esse perfil. Obviamente, se você acompanhar os meus jogos neste final de temporada, verá que tenho poucas aplicações de cartão amarelo, tenho um respeito grande dos jogadores. Fui pavimentando tudo isso através de ações disciplinares. A parte técnica é importante? É sim, a parte mental, o convívio social, tudo é importante, mas eu digo que a disciplina faz com que os outros pilares fiquem mais tranquilos. Se você tem disciplina, pelo menos você tem organização. Naquela votação de melhor e pior do ano, sou sempre eleito como o mais chato. Porém, quando os clubes vão fazer jogos mais difíceis, gostam de quando eu apito. A gente sabe que na vida não há sempre o radicalismo, nos momentos legais a gente também tinha uma boa comunicação, um bom convívio, mas na maioria das vezes eu me pautei pela disciplina.

(Foto: Fernando Dantas/Gazeta Press)

Qual será a primeira coisa que virá à cabeça das pessoas quando lembrarem do Héber no futuro?

Eu acho que vão lembrar da seriedade, da dedicação e da disciplina. Claro, uma minoria vai xingar e lembrar de coisas negativas. Eu não costumo abrir concessões, ficar debatendo. As pessoas encaram isso como: ‘O cara é muito duro, não dá abertura’. As pessoas que passaram a conviver comigo perceberam que isso era uma forma de constituir uma carreira. Vou sempre achar que serei visto como um disciplinador.

“Sou muito grato a meus familiares. Às vezes, as pessoas só veem os jogos que você apitou, mas não veem quando você chega em casa com uma lesão, triste, quando não é escalado. O porto seguro é a família”

Como é a preparação de um árbitro para uma partida de futebol?

Hoje em dia, temos uma reunião técnica antes de todos os jogos. Há uns 15 anos, quando não tínhamos tantas informações e mídias, ficava bem mais difícil. Você só via a escalação do time no dia do jogo, quando pegava o jornal, ou no campo, quando os times entregavam as escalações. Hoje não, é possível ver o sistema de jogo, o perfil dos jogadores. Nós temos estatísticas de tudo. Todo dia anterior ao jogo ou pela manhã do dia da partida, é feita uma reunião que dura por volta de uma hora e meia, um momento em que todos têm o direito de falar e expor. Ali nós colocamos as escalações das equipes, os perfis dos jogadores e, inclusive, os perfis dos companheiros que estão na equipe de arbitragem. Com as ferramentas, nós temos mais pessoas na equipe. Por exemplo, eu que sou um árbitro mais velho e vou trabalhar com um mais jovem, procuro passar um tranquilidade para que ele não fique acanhado. Então, tudo é falado e colocado no plano de trabalho. A gente viaja um ou dois dias antes do jogo justamente por isso. É definido um bom hotel, um bom plano de alimentação, um bom plano de logística. O torcedor não imagina a quantidade de coisas que fazemos antes de entrarmos em campo para apitar o jogo.

Da mesma maneira, quando termina um jogo nós também temos um feedback. O árbitro não chega mais em sua casa e fica lamentando: ‘Não vi isso, não vi aquilo. Minha nossa, como isso aconteceu?’. Não, após o jogo nós já temos todas as informações. ‘Olha, você fez uma excelente arbitragem. Olha, cometeu um equívoco aqui’. A presidência da Comissão Nacional de Arbitragem, capitaneada pelo Leonardo Gaciba, tem dado todo o suporte para que a gente trabalhe com tranquilidade.

Como é a sensação de contar com o VAR apenas na reta final de sua carreira?

A forma como conduzo o jogo está diretamente relacionada à comunicação. Hoje, o árbitro precisa narrar o jogo e explicar qual foi a decisão que ele tomou. Isso porque é de acordo com a sua narrativa que o VAR irá avaliar o chamamento protocolar ou não. Então, estou me adaptando. O fato de estar trabalhando tanto no campo quanto na cabine faz com que a comunicação e as narrações do que acontece no jogo melhorem. Bandeirinha eletrônica, VAR, intercomunicador, são ferramentas que sou totalmente a favor. No início da carreira, cometi equívocos que dificilmente cometeria se contasse com o VAR.

(Foto: Fernando Dantas/Gazeta Press)

As pessoas criticam o VAR exageradamente…

A CBF, através da Comissão Nacional de Arbitragem, tem números volumosos que mostram a evolução do VAR, mas não há o interesse de se divulgar isso. Há o interesse de falar que demorou para checar um lance. Um lance ajustado, difícil. Claro, se você me perguntar se não acho que o VAR poderia ser mais rápido, responderia que sim. Mas é um projeto novo, de apenas dois anos. Gente, nós estamos aprendendo a lidar com a máquina. E outra coisa: a máquina é movida por um ser humano, não é máquina com máquina. De qualquer forma, aquela discussão de boteco sobre a bola que entrou um metro, o impedimento de três metros e o gol com a mão não existe mais.

Você se sente mais seguro com o VAR ou mais pressionado para acertar com o auxílio da tecnologia?

Eu vejo como uma ferramenta importante, porém é importante salientar que o árbitro ainda continua decidindo dentro do campo de jogo. O árbitro não pode ir a campo pensando que pode cometer um equívoco, já que terá o auxílio do VAR. Isso é uma bengala. O objetivo do projeto é salvar lances de erros claros. O árbitro tem que focar no campo, esquecer que tem o VAR. No seu íntimo, tem que buscar tomar a decisão como se não houvesse VAR. Se o árbitro entrar em campo condicionado a usar o VAR, pode ter certeza que ele usará o VAR. Mas, se ele entrar em campo focado e alinhado com os seus companheiros de campo, pode ter certeza que ele dificilmente irá ver algo na cabine.

Qual foi o grande jogo de sua carreira?

Vou lembrar momento, não vou lembrar de um jogo, porque foi uma sequência muito boa. Foi o último ano do Campeonato Brasileiro antes dos pontos corridos. Em 2002, pude apitar praticamente todas as fases da competição, com exceção da final. Inclusive, na decisão que estava sendo apitada pelo Simon, com todo respeito e ética, o Arnaldo Cézar Coelho disse: ‘Olha, quem deveria estar apitando é o Héber Roberto Lopes, que fez um grande campeonato’. Mas, naquele momento, o seu Armando entendeu que eu tinha atingido o meu limite, já que eu era árbitro apenas da CBF. Estava quase no quadro da Fifa. Depois, em 2003, apitei a final do Campeonato Brasileiro, Cruzeiro e Paysandu no Mineirão. Para você ver como o seu Armando estava certo. ‘Calma, 2002 está bom, em 2003 você vem como árbitro internacional e com maior know-how’. E foi o que aconteceu.

Agora, no final, fico muito honrado de ter saído da Fifa apitando a final da Copa América centenária, foi um momento maravilhoso. Geralmente, você sai do quadro internacional mais desgastado e não apitando os principais jogos. Você sair da Fifa tendo como o último jogo a final da Copa América em New Jersey, nos Estados Unidos, torna-se um momento para ser destacado na carreira.

(Foto: Fernando Dantas/Gazeta Press)

Você se igualou a Arnaldo Cézar Coelho como o árbitro que mais apitou partidas de Campeonato Brasileiro. O que essa marca significa para você?

Em momento algum eu abri uma disputa com o querido Arnaldo Cézar Coelho. Jamais, nunca passou pela minha cabeça, fui apenas trabalhando jogo a jogo. É óbvio que, quando cheguei a uma marca expressiva e vi o meu condicionamento físico, objetivei como algo a ser alcançado no final de minha carreira. Quando vai chegando ao fim, você objetiva algumas coisas para ter um incentivo e dar uma moral para trabalhar. Mas nunca para dizer que sou melhor que A ou B. Outra coisa foi uma cobrança familiar e de pessoas próximas: ‘Poxa Héber, vamos buscar, você vai ficar marcado na história em um dos campeonatos mais difíceis do planeta’. Eu fico muito honrado de ter empatado com o Arnaldo e de ter recebido uma mensagem bem leve e respeitosa dele. É isso que fica, não houve nenhuma disputa.

Você está no último semestre do curso de Jornalismo. Tem o objetivo de se tornar um comentarista de arbitragem?

O doutor Delfim de Pádua Peixoto, ex-presidente da Federação Catarinense, que inclusive foi vice-presidente da CBF e estava no voo da Chapecoense, fez essa exigência. ‘Héber, vem para cá. Gostaria que você se formasse em jornalismo aqui, porque vai morar em Santa Catarina, vou colocar isso no seu contrato’. Sou muito grato a ele, pena que não está aqui para ver quantas coisas boas eu fiz representando Santa Catarina. Tenho uma gratidão eterna por ele.

Em um bate-papo, na sala de reunião da Federação, falei que tinha o interesse de concluir o curso de jornalismo, já que via uma abertura no mercado. Grandes árbitros trabalhando nas emissoras, na imprensa escrita. Vou aproveitar, se o presidente da Federação está me incentivando e vai colocar isso em meu contrato para melhorar o meu lado social, óbvio que vou abraçar. Vamos ver se aparece um convite. Caso contrário, a gente permanece na arbitragem, porque acredito que ainda temos muito a contribuir e retribuir.