Em nome do Senhor - Gazeta Esportiva
Fernanda Silva
São Paulo, SP
01/04/2019 08:00:23
 

Depois de desembarcar no aeroporto de Atenas, na Grécia, as quatro da manhã, Neil Horan foi até uma das poucas lanchonetes abertas no local para tomar uma xícara de café. Era 29 de agosto de 2004. Cansado da viagem que tinha como origem o Reino Unido, o então padre encontrou um canto no saguão do edifício e dormiu por três horas, ao lado dos passageiros que esperavam por seus respectivos voos. Já eram 7h30 quando acordou e pegou um ônibus com destino à praça Sindagma, na região central da cidade. Com o mapa de Atenas na mão, Neil tinha como destino final o estádio Panathenaico, onde estaria a linha de chegada da Maratona dos Jogos Olímpicos. Ali, também, queria cumprir seu propósito: anunciar ao mundo a volta de Jesus. Nesta entrevista exclusiva à Gazeta Esportiva, Neil Horan relembra o episódio que o colocou na história, quase 15 anos depois de ter estragado a prova de Vanderlei Cordeiro de Lima.

Quando acreditou chegar ao estádio, quase não conseguia andar devido à multidão que ocupava o entorno. Logo, entretanto, descobriu que estava no local errado. Ele, então, mudou de ideia e parou na Avenida Mesogeion. Precisava trocar de roupa e colocar a vestimenta típica da Irlanda. “Eu estava prestes a desistir, pois não conseguia  achar um lugar onde pudesse me trocar”, recorda. O nervosismo, ele lembra, era evidente.

Eu estava prestes a desistir

Diante de seus olhos passava o quilômetro 35km da disputa que o brasileiro Vanderlei Cordeiro de Lima comandava.  “Uma pequena figura apareceu. Ele era tão pequeno que achei que não fosse um corredor de maratona”, destaca Neil. “Então, eu vi todos os espectadores torcendo, o que mostrou que ele era de fato um atleta – o líder da maratona, na verdade”.

A cena minutos depois foi tão inacreditável quanto improvável e nem os jornalistas brasileiros que a narraram souberam o que dizer. Vanderlei e o pelotão já corriam há mais de 1h53. O brasileiro liderava e vinha em boa velocidade. Não contava, entretanto, que um homem vestido com uma roupa típica irlandesa atravessasse a rua e o impedisse de correr. O homem não era santo, mas padre. Neil Horan empurrou o atleta que estava carregando o número 1234 para cima da multidão.

“Eu pretendia segurar meu cartaz na frente do líder, para que as Câmeras captassem sua mensagem. Lá, estava escrito: ‘Leia a Bíblia, pois a Bíblia está sempre certa’”, justifica Neil. Quando Vanderlei o ultrapassou, ele entrou em pânico e empurrou o corredor. “Eu não consigo entender como isso aconteceu, já que eu nunca quis colocar um dedo nele. Pessoalmente, acho que foi o trabalho dos anjos”, crê o então padre, que afirma ter se arrependido e se sentido mal por roubar a medalha de ouro de Vanderlei.

Eu nunca quis colocar um dedo nele. Pessoalmente, acho que foi o trabalho dos anjos.

Neil não fazia ideia de quem Vanderlei era. Fez isso para causar impacto mundo afora – e causou. Na ocasião, o brasileiro foi ajudado por alguns espectadores. Polyvios Kossivas foi o principal nome no feito heróico que colocou Lima de volta na pista. Naquela hora, o padre foi preso e enviado para a unidade de polícia de Holargos.

LIVRAI-NOS DO MAL

A escolha pela ação na maratona foi estratégica. Primeiro porque Neil não precisaria pagar para assistir à modalidade. Segundo porque, como a corrida é feita nas ruas, isso permitia que o ex-padre ficasse mais próximo dos atletas — algo que seria impossível em alguns ginásios e estádios. Além disso, havia também uma motivação histórica. A Primeira Maratona em Jogos Olímpicos ocorreu justamente em Atenas, em 1896. “Isso dava ao evento de 2004 um status especial”, justifica.

Neil quase não consegue se lembrar da ampla variedade de sentimentos que teve naquele dia. “Era fácil sentir a euforia que se acumulava quando vi barreiras ao longo da Mesogeion – uma rua onde eu sabia que a corrida passaria”, lembra. Mais tarde, quando segurou o brasileiro pelos braços, novos sentimentos vieram à tona. “Tive uma mistura de medo, preocupação, euforia, tensão, expectativa”.

Enquanto isso, Vanderlei precisou de sangue frio para retomar a corrida. E pouco esforço nunca foi parte do vocabulário dele.

O paranaense de Cruzeiro do Oeste vinha de duas medalhas de ouro em Pan-Americanos. A primeira foi conquistada em Winnipeg 1999, no Canadá. A segunda veio um ano antes do fatídico evento, em Santo Domingo 2003.

Filho de um casal de lavradores nordestinos fugidos da seca para o Sul do Brasil, Vanderlei nunca teve vida fácil. E não era naquele dia que as coisas seriam diferentes.

Fato é que Vanderlei perdeu 20 segundos de seus 48 de vantagem. Chegou em terceiro e completou o pódio atrás do italiano Stefano Baldini e do norte-americano Mebrahtom Keflezighi. Comemorou a chegada fazendo um aviãozinho. Ali, mostrou o que era espírito olímpico — e foi reconhecido por isso, mais tarde, quando conquistou a medalha Pierre de Coubertin, honraria dada pelo Comitê Olímpico Internacional para quem demonstra Espírito Olímpico. Ele também acendeu a pira olímpica e, mais recentemente, inaugurou o Hall da Fama da COB.

PERDOAMOS A QUEM NOS TEM OFENDIDO

Se, apesar de tudo, Vanderlei viveu um momento de glória, Neil, por sua vez, teve consequências não tão boas. A maior delas, segundo ele, foi ter sido levado ao tribunal. “Fui multado em três mil euros e peguei um ano de prisão – mas ambos foram suspensos, o que significa que foram retirados”, lembra. “Quando voltei a Londres, descobri que dois policiais me acompanharam às manifestações que participei por muitos anos depois da maratona. Acho que eles estavam com medo de que eu fizesse a mesma coisa novamente”.

Fui multado em três mil euros e recebi um ano de prisão – mas ambos foram suspensos

Em 2005, o então padre foi expulso da igreja pela Arquidiocese de Southwark, em Londres. “Eu rejeito completamente essa decisão. Apelarei a um tribunal superior, o de Jesus Cristo”, disse o irlandês, na ocasião. A medida foi tomada porque ele já era controverso dentro da igreja pelas coisas que acreditava e pela maneira como expunha suas crenças — como fez com Vanderlei. Hoje, Neil segue protestando. Brexit, as atitudes do papa Francisco e a volta de Jesus são pautas do irlandês.