Predestinado - Gazeta Esportiva
Bruno Ceccon e Alexandre Silvestre
São Paulo, SP
07/14/2019 09:00:36
 

O talentoso Zinho, encarregado de exercer uma função essencialmente tática, é um símbolo do abnegado time armado por Carlos Alberto Parreira em 1994. Vinte e cinco anos após cumprir a profecia feita pela mãe e disputar a Copa do Mundo 1994, o ex-meia recebeu a Gazeta Esportiva em sua residência.

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Em uma manhã chuvosa no Rio de Janeiro, Zinho valorizou o papel desempenhado nos Estados Unidos e defendeu o time responsável por quebrar um longo jejum de 24 anos. “Dentro de suas características, jogou bonito, sim. Aquela Seleção seria campeã do mundo hoje novamente”, apostou.

Um dos homens de confiança de Carlos Alberto Parreira, Zinho rejeitou o apelido de Enceradeira, popularizado por humoristas à época. E falou sobre a decisão de ceder a camisa 11 ao polêmico Romário a partir do último jogo das Eliminatórias Sul-Americanas.

Um dos maiores campeões de sua geração no futebol brasileiro, o ex-jogador de Flamengo, Palmeiras, Grêmio e Cruzeiro atualmente trabalha como comentarista esportivo. Aos 52 anos, ele ainda se emociona ao lembrar a morte da mãe, que profetizou sua participação na Copa do Mundo no dia do tricampeonato de 1970.

Gazeta Esportiva – A campanha do Brasil nas Eliminatórias foi turbulenta, marcada pela derrota contra Bolívia, a primeira da Seleção no torneio. Como você viveu todo esse processo até a conquista da vaga contra o Uruguai?
Zinho – Parece que foi um sufoco classificar na última rodada. Mas, dentro do grupo, às vezes você perde um jogo aqui, outro ali. É importante lembrar que jogávamos por um empate em casa contra o Uruguai. A pressão maior foi no início, o jogo contra a Bolívia. Isso tudo mexeu muito com público, torcida, imprensa. Ficou aquela cobrança: “Fora Parreira”. Uma pressão muito grande sobre a comissão técnica e alguns jogadores.

Gazeta Esportiva – Por que você acha que havia tanta animosidade da opinião pública com a Seleção? Pelo jejum desde 1970, pela ausência do Romário, pelo estilo do Parreira, pelos resultados abaixo do esperado no começo das Eliminatórias?
Zinho – Uma junção de todas essas coisas. A não convocação do Romário, até menos, porque ficou mais forte quando viemos ao Rio de Janeiro. É mais o tempo sem título e os resultados ruins no início. Perder para a Argentina já daria cobrança, mas, perder para a Bolívia na primeira derrota pelas Eliminatórias… Tinha altitude, isso e aquilo, mas perdeu. A mídia começou a pressão e o povão, ansioso, também. Vem aquilo de o torcedor querer que convoque alguém do seu estado e existiam muitos jogadores de qualidade na época. Era possível formar duas ou três seleções tranquilamente e muitos bons ficavam fora.

Gazeta Esportiva – Nesse contexto de pressão, os jogadores e membros da comissão técnica se uniram.
Zinho – Houve um momento em que o Parreira estava pensando: “Pô, cara… De repente, se eu sair, a pressão alivia”. De madrugada, quando chegamos à Granja Comary, o grupo se juntou e fechou: “Não, não vai. Vamos continuar juntos. O senhor é o comandante e vamos até o final. Vamos classificar e ser campeões do mundo”. Aquele momento uniu o grupo. Muita gente acha que uniu na Copa, mas essa fase de Eliminatórias foi fundamental para o grupo ficar bem montado. Mudaram algumas peças, mas ali a base se juntou a partir de um momento inicial ruim e se superou de tal forma que deu liga para a Copa do Mundo.

Gazeta Esportiva – Você falou de união. Até hoje, aquele time é lembrado por entrar em campo de mãos dadas.
Zinho – Aquilo foi para simbolizar a união, a força de um grupo. Não era uma coisa só de momento, para fazer média. Era para simbolizar uma corrente: vamos todos entrar de mãos dadas, porque, para os adversários quebrarem essa corrente, não vai ser fácil. Todo mundo unido mesmo, um grupo fechado, com objetivo em comum. É claro que cada um tem sua personalidade e jeito de ser, mas aquilo mostrava que todos tinham abdicado de vaidade e objetivos individuais pelo coletivo. Ganhando, todo mundo teria seu valor. Uns mais, outros menos, mas, para o grupo, todos eram iguais.

Gazeta Esportiva – No jogo decisivo contra o Uruguai, a corrente ganhou mais um elo: Romário.
Zinho – Em amistosos, o Romário teve divergências com a comissão técnica e, na época, também havia outros grades atacantes, como Careca, Evair, Muller, Bebeto. A gente jogava pelo empate contra o Uruguai, mas, com a partida no Rio de Janeiro, tinha um clamor pela convocação do Romário, que vivia grande momento na carreira. Foi legal por parte da comissão técnica deixar de lado uma indisciplina, conversar com o atleta e ver o melhor para a Seleção Brasileira. E o melhor para a Seleção era a volta do Romário, no Rio de Janeiro, no jogo da classificação.

Gazeta Esportiva – Após a chegada do Romário, você passou a jogar com a camisa 9.
Zinho – Eu joguei com o número 11 a Eliminatória toda. O Romário tem essa superstição e falou ao Parreira que gostaria de jogar com a 11. Imediatamente, para mostrar que todos eram iguais, o Parreira disse para conversar comigo e o Romário, humildemente, veio. Eu falei: “Romário, quero classificar para a Copa do Mundo. Esse grupo tem o objetivo de classificar e ganhar a Copa do Mundo. É com a 2, com a 3, com a 20. Eu não tenho superstição, jogo com qualquer uma”. Foi ali que comecei a atuar com a camisa 9. Cedi porque sabia que isso influenciava no psicológico do Romário e era um cara que decidiria a parte final. Então, a gente conversou, ele ficou grato e correspondeu em campo. Marcou dois gols, jogou muito. Nossa Seleção fez uma partida maravilhosa.

Gazeta Esportiva – Depois de toda a pressão que vocês sofreram, como foi enfim garantir a classificação para a Copa do Mundo?
Zinho – Minha mãe passou todas as Eliminatórias muito doente e morreu no dia do jogo contra o Uruguai. Na véspera da partida, ela teve uma crise e voltou ao hospital. De noite, meu pai foi à concentração para avisar e perguntei: “Morreu?”. Como estava internada, eu ainda tinha esperança que melhoraria e fui para o jogo. Quando acabou, não consegui ficar feliz pela classificação e por minha boa atuação. No hospital, acompanhado pela minha esposa, peguei na mão da minha mãe e oramos. Ela ainda estava com batimentos e percebi até que aumentaram. Creio que escutou as orações e estava me esperando para uma despedida. Tanto é que, 10 minutos depois que saímos, sofreu parada cardíaca e morreu. No dia seguinte, via as matérias nos jornais da festa pela classificação e estava no cemitério enterrando minha mãe. Então, a Copa do Mundo virou um prazer, o orgulho de uma mãe que ajudou na minha história toda, que profetizou lá atrás e acreditou. Pô, ela estava comigo ali na Copa, entendeu?

Gazeta Esportiva – Como assim “profetizou lá atrás”?
Zinho – Em 1970, quando o Brasil foi tricampeão, tinha três anos de idade e me perdi dos meus primos na comemoração pelas ruas de Petrópolis. Bateu aquele desespero em todo mundo. O sapato do meu pé esquerdo estava em casa e minha mãe pegou. Todos saíram para me procurar nas ruas e ela ficou ali, pedindo a Deus que eu aparecesse. Na fé, minha mãe disse: “Um dia, ainda vou ver meu filho jogando pela Seleção Brasileira em uma Copa do Mundo”. Em 1979, tive a oportunidade de fazer teste no Flamengo e começar minha trajetória no futebol. Fui passando de categoria em categoria, pegando Seleção de base e o pessoal da família lembrava essa história. Em 1989, recebi a primeira convocação para a Seleção principal e, em 1994, joguei a Copa do Mundo. Só que minha mãe faleceu em 1993.

Gazeta Esportiva – Que história incrível!
Zinho –
Vinte e cinco anos depois, eu consigo falar, mas é claro que ainda me emociono. Tem que segurar. Foi um momento muito difícil e, ao mesmo tempo, maravilhoso.

Gazeta Esportiva – Aquele grupo contava com alguns remanescentes da Copa do Mundo de 1990, como Taffarel, Jorginho, Dunga e Muller, entre ouros. Como a experiência deles ajudava nos momentos de maior pressão?
Zinho – Isso foi positivo para não repetir os erros. Eles sabiam quais foram os comportamentos individuais em 1990 e como influenciaram na falta de sucesso, como era a concentração, o foco, se o time era unido ou não. Tinham muitos jogadores já cascudos de Copa do Mundo e que viram os problemas internos e externos da edição anterior. O lado negativo é que vinha junto toda a pressão de 1990, quando foi meio bagunçado, o grupo era desunido, jogadores de São Paulo e Rio tinham relacionamento ruim. A concentração era aberta a empresários, familiares e jornalistas. Enfim, o oba-oba tirava o foco do trabalho. Então, procuramos fechar nossa concentração para tudo isso. Mas também veio cobrança, porque as entrevistas eram bem limitadas e a entrada de empresários e familiares, totalmente bloqueada.

Gazeta Esportiva – Você disputou os sete jogos da campanha como titular. Quais foram os mais marcantes?
Zinho – Tem dois que me marcaram mais, contra a Holanda e contra a Suécia, pela semifinal. Foram jogos em que, além de cumprir a parte tática, também fui bem tecnicamente, com acertos de passe, chutes a gol e um pouco mais de chegada ofensiva. Sou realizado com a função que exerci, mas, sabendo do potencial que tinha, fiquei satisfeito por me aproximar mais do Zinho criativo e ofensivo nessas partidas.

Gazeta Esportiva – No esquema armado pelo Parreira, você tinha uma função essencialmente tática.
Zinho – Era uma função diferente da que fazia no clube. Eu vinha de títulos brasileiros e fui uma das peças mais importantes nas Eliminatórias. A Copa do Mundo é um torneio de tiro curto, então o erro precisa ser minimizado. A gente tinha um esquema tático muito mais robotizado, mais firme. Então, minha função era muito mais tática e isso não era entendido por parte da imprensa. É claro que a galera começa a ver e pensa: “Pô, não jogava assim no clube”. Então, veio uma cobrança muito forte em cima de mim e do Raí por causa da nossa função tática: um aberto pela direita e outro pela esquerda, acompanhando lateral e marcando mais do que chegando ao ataque, diferentemente do que fazíamos no São Paulo e no Palmeiras.

Assista aqui ao vídeo da final

Gazeta Esportiva – Você chegou a conversar sobre isso com o Parreira?
Zinho – Várias vezes eu conversava com o Parreira para ver se ficava mais solto e ele me deu um pouco mais de liberdade. Mas, ao mesmo tempo, falava: “Cara, você é o meu titular e vai jogar as sete partidas. Abraça esse projeto, abraça esse esquema de jogo. Temos que igualar os europeus na marcação sem a bola, no esquema 4-4-2. Não é possível a gente estar há 24 anos sem ganhar uma Copa. Se a gente tem talento, tem o futebol, tem a parte técnica, está faltando o quê? A parte tática”. Eu acho que a Seleção de 1994 foi um marco de comprometimento e conscientização tática dos jogadores do futebol brasileiro, de que, com organização e disciplina tática, você ganha jogo. Não só com talento. Às vezes, a gente pode ter perdido a Copa do Mundo de 1982, com uma das maiores seleções de todos os tempos… Chorei quando criança, porque eram meus ídolos que estavam lá.

Gazeta Esportiva – Na Seleção de 1982, não faltava talento…
Zinho – Desculpa, mas aquele meio de campo bate com o de 1970. Por que não ganhou? Por que tomou três gols da Itália? Será que não falhou na parte tática, na marcação, nesse comprometimento? Enfim, estou falando isso porque o Parreira conversava com a gente. Tivemos seleções brilhantes, mas estávamos há 24 anos sem ganhar. Ele pedia: “Vamos igualar o sistema. Sem a posse, oito homens atrás da linha da bola, com liberdade maior para Bebeto e Romário”. Até mais para o Romário, porque o Bebeto ainda voltava para marcar um volante. Tínhamos dois caras em grande momento e que não passariam em branco por 90 minutos. Se a gente criasse as chances para eles, ganharíamos os jogos. A tônica era não levar gol. Então, o grupo abraçou isso, cada um abdicou e deu certo. Mas, se essa Seleção não ganha, seria massacrada. Até hoje, falam: “Ganhou, mas não jogou bonito”. É incrível! Uma seleção que ganha uma Copa invicta não jogou bonito? Dentro de suas características, jogou bonito, sim. Aquela Seleção seria campeã do mundo hoje novamente.

Gazeta Esportiva – Na época, em uma sátira de um programa humorístico, você passou a ser chamado de Enceradeira. Isso te magoou?
Zinho – Magoou a família, porque eu nem fiquei sabendo lá. Minha esposa, meu pai e minha irmã que sofreram as brincadeiras nas ruas. Aí, fiquei chateado, porque fui para a Seleção representar meu país e, depois de 24 anos, trazer um título muito importante para um povo que, com tantos problemas, viu no futebol o prazer, a alegria e a paixão de ser campeão do mundo. Essa coisa de Enceradeira foi mais uma brincadeira. Hoje, minha tia até fala: “Enceradeira era para dar brilho à casa. Então, você foi à Seleção para dar brilho”. É uma brincadeira que alguém ri, mas alguém chora. Eu não gosto de humor assim. Gosto do humor de Chico Anysio, Jô Soares, Praça é Nossa. É aquele humor que não ofende. Tirar um sorriso de uma pessoa humilhando outra… Lembro do Rubinho Pé de Chinelo. Pô… Imagina a família do cara, os filhos. Será que eles ficavam felizes? Se coloca no meu lugar, no lugar do cara. Será que o seu filho gostaria?

Gazeta Esportiva – Você chegou a encontrar os humoristas responsáveis pela sátira?
Zinho – Até encontrei com a rapaziada e fui um pouco áspero com um deles, porque veio querer fazer de novo a brincadeira em uma Copa América e mandei para aquele lugar. Mas passou, porque fomos campeões do mundo. Se não tivesse o título, até hoje não sei se… Atualmente, a maioria da crônica esportiva destaca minha função. Foi fundamental, importante para dar um sustento, uma base e liberar jogadores. Hoje, os caras entendem taticamente o time e há vários atletas que fazem isso. É um conjunto. Uma equipe não ganha só atacando.

Gazeta Esportiva – Na época, pelo Palmeiras, você se destacava como meia talentoso e criativo, com boa chegada ao ataque. De alguma forma se sentiu sacrificado pela função tática no esquema do Parreira?
Zinho – Não, de maneira alguma. Vestir a camisa da Seleção Brasileira é um privilégio, um prazer, uma honra. Quantos craques, que jogaram muito mais do que eu, não conseguiram ganhar uma Copa do Mundo? Sempre fui um jogador habilidoso, técnico, de dar passe, fazer gol, organizar time. Tenho 29 títulos na carreira, cinco Brasileiros. Nessas campanhas, eu atuava em outro estilo. Então, a lembrança não pode ser só do jogador tático. Acho que devia até ser exaltado, pela versatilidade. Fui ponta esquerda agressivo e driblador no começo da carreira, meio-campista capaz de fazer gol e dar passe e também de marcação, de tática, de comprometimento. Fico ainda mais realizado e agradeço ao Parreira pela oportunidade. Cara, jogar a Copa do Mundo e conquistar o título era um sonho de criança.

Gazeta Esportiva – Depois de concretizar a profecia da sua mãe e disputar a Copa do Mundo pela Seleção Brasileira, como foi a experiência de voltar para a casa e não encontrá-la?
Zinho – Lá na Copa, eu ainda estava meio anestesiado. No avião, viemos cantando samba a viagem inteira. Depois de todos os desfiles em carro aberto, quando cheguei a Nova Iguaçu, minha rua estava lotada. Como tinha contrato com uma marca de bebida, liguei e mandaram um caminhão. Quando entrei em casa, entre os familiares, realmente veio a lembrança, com fotos da minha mãe. Ela foi peça fundamental em toda minha trajetória, estudava comigo e meu pai sempre trabalhando, na correria. Ele era motorista e, às vezes, vinha almoçar em casa. Enquanto isso, eu ficava jogando bola com os ajudantes. Em vez de descansar, eles jogavam comigo no quintal! Era a diversão da Baixada Fluminense. Mas foi um momento de emoção de todos, de falar: “Pô, valeu a pena todo o esforço e dedicação de, com 11 anos, sair de Nova Iguaçu às 4 horas da manhã para treinar na Gávea de ônibus e trem”. Lembrei da minha infância, de onde saí para chegar ao ponto de campeão do mundo.