Artigo - Gazeta Esportiva
Henrique Nicolini
São Paulo
05/16/2006 09:00:35
 
O jornalista Henrique Nicolini. (Foto: Acervo/Gazeta Press)

Do centenário de A Gazeta (para nós o “Gazetão”), eu contemplei 60 anos, ou sessenta por cento do total dos anos transcorridos. Nem Cásper Líbero dirigiu este veículo por tanto tempo, pois a sua passagem pela instituição que o colocou na história do Jornalismo restringiu-se a vinte e cinco anos. Ele adquiriu um jornal semi-falido em 1918 e, num curto espaço de tempo, colocou-o no apogeu. Comandou-o com grande competência, até que, em 1943, um acidente com um avião da VASP privou-o do convívio com os demais mortais.

O êxito de Cásper surpreendeu a muitos, pois, segundo contam, na época da compra, ele não possuía o perfil de um administrador responsável como acabou sendo. Hoje, poderíamos chamá-lo de um “playboy”, mais interessado no mundanismo do que no comando de uma organização consistente.

A verdade é que com ele o jornal se concretizou, adquiriu personalidade a ponto de incomodar o Governo constituído e ser empastelado nos anos 30.

Cásper, na área do esporte, igualmente, era um inovador. Foi o criador da tradicional Corrida de São Silvestre, hoje com 80 anos de existência, e das provas populares que constituíram a “marca” da Fundação.

A A Gazeta Esportiva, também filha do espírito empreendedor de Cásper, é de 1929. Ela era inicialmente um suplemento semanal do Gazetão em tamanho tablóide. A Gazeta Esportiva somente passou a sair diariamente em 20 de outubro de 1947, como produto da iniciativa de Carlos Joel Nelli, outro gigante da Fundação Cásper Líbero, de igual envergadura do seu patrono, falecido quatro anos antes.

O esporte, divulgado em duas ou três páginas do Gazetão, chegou a ser responsável por grande porcentagem da circulação do veículo. As provas populares, que sempre foram o carro chefe promocional do jornal, já existiam mesmo antes da década de 30, quando A Gazeta funcionava na Rua Líbero Badaró, local onde permaneceu até o início dos anos 40, quando foi para o então moderníssimo edifício da Fundação Cásper Líbero.

Foi nesse prédio que eu conheci, “in loco”, o funcionamento desse jornal e os personagens que faziam parte do elenco de profissionais que, pelo simples fato de escreverem no Gazetão, tornavam-se famosos.

O diretor era Miguel de Arco e Flexa (com x mesmo). Ele tinha uma sala só para si, encarregava-se do editorial e, no fim dos anos 50, já mostrava alguma decadência. Deve-se a ele o resgate da memória deste jornal quando ele escreveu o opúsculo “40 Anos de Gazeta”. Quando eu o conheci, ele já havia aderido às delícias dos “aperitivos” e começava a dar trabalho. Conta-se, porém, que em sua juventude, quando as partidas de futebol não eram ainda transmitidas pelo rádio, ele, em uma tabuleta, anotava as parciais dos jogos para exibi-los para uma aglomeração de populares que, nas tardes de domingo, postava-se diante da sede de A Gazeta.

O lado disciplinador do jornal ficava por conta de Pedro Monteleone, um médico que se identificava com a redação e as linotipos. Ele era adorado pelo pessoal da oficina, de quem era porta-voz até nas reivindicações salariais.

O cargo que hoje se chamaria de editor chefe pertencia a Américo Bologna. Calmo e atencioso, ele programava todo o jornal e era a pessoa mais relacionada com o mundo da imprensa.

Nas editorias especializadas, destacava-se o editor de política Gumercindo Fleury, que pela sua popularidade elegeu-se vereador. Sua coluna criava ou desmanchava o prestígio de muita gente.

Havia outros editores, entre os quais Nelson Baruel Martins e José de Moura. Este muito ligado aos temas do abastecimento. Algumas de suas reportagens decretavam o aumento de vários produtos de primeira necessidade.

O noticiário internacional era o resultado da tradução, feita na própria redação, de telegramas das agências com notícias que chegavam em inglês, mimeografadas, à redação. Naquele tempo glorioso dos anos 50, não havia nem o telex.

Entre os tradutores estava Erwin Theodor Rosental, um profissional de tanto talento que se transformou em editor e, a seguir, professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.

Na parte cultural despontava Agnello de Mello, que escrevia sob o pseudônimo de Judas Isgorogota, além de Corrêa Jr. e Paulo Bonfim, ainda hoje militante na Academia Paulista de Letras.

Na reportagem, o mais destacado era Nelson Cunha Azevedo, um educador, que acabou ocupando o cargo de diretor do Departamento de Educação, cargo que, em importância, na época, comparava-se ao do próprio Secretário da Educação.

Havia também Décio Reis, bom jornalista, e uma série de jovens como Roberto Fontes Gomes, Regina Helena Paiva Ramos, Miguel Batluomi, Paulo Mattos, editor de aeronáutica e outros.

A parte da polícia ficava por conta de “Espaguete”, um repórter que ninguém conseguia saber o nome. Ele era famoso em toda a imprensa de São Paulo, pelo desnível de aparência entre ele e a sua esposa, que aparecia constantemente na redação. Ele era um “boa pinta”, bonitão. Ela era o antônimo mais radical.

Íamos nos esquecendo do Antonio Alves de Lima, de família tradicional. Para falar a verdade, eu não sei bem o que ele fazia no jornal, em que área escrevia. Não poderíamos também olvidar de Maria Lúcia Sampaio Pinto, a primeira aluna proveniente de uma escola de jornalismo a trabalhar em um jornal. Ela escrevia sobre religião. Católica fervorosa, era amiga da hierarquia da igreja e rezava no carro de reportagem quando ia a Aparecida.

Naquele prédio da Avenida Cásper Líbero nós, de A Gazeta Esportiva, trabalhávamos no 1ºandar (não usávamos o elevador). A redação de A Gazeta estava no segundo e, portanto, bastava um lance de escada para estar com a turma daquele jornal, muitos dos quais grandes amigos. Daí este nosso interesse em mostrar nesta matéria uma A Gazeta cheia de figuras vivas, e não somente de marcos históricos despersonalizados. Mas este quadro precisava completar-se com outras partes do corpo, cujo coração era a redação. Havia o Hernani Pereira de Castro na gravura, um autodidata que foi estudar na Alemanha, o José Patella e uma grande equipe na fotografia, Carbonaro e o Totoca na oficina e tantos outros que tornaram A Gazeta o jornal mais bem impresso de São Paulo.

Estávamos nos esquecendo dos colaboradores, entre eles Maurício de Medeiros e Menotti Del Picchia, um grande nome da nossa literatura.

Bem, toda a história tem de ter um começo, um meio e um fim. Eu tenho uma teoria pessoal sobre o declínio de A Gazeta que, se um dia eu a tivesse divulgado, teria sido provavelmente trucidado pelos companheiros do segundo andar.

A Gazeta possuía uma seção de esportes que, como dissemos, era altamente dinâmica pelo espírito de Cásper e, mais tarde, pelo de Carlos Joel Nelli.

Com a publicação da A Gazeta Esportiva diária, parte deste público leitor migrou para A Gazeta Esportiva, inclusive os anúncios classificados.

O Gazetão ia para as bancas às 14h30min horas e, em vez de aproveitar o noticiário do que havia ocorrido no período da manhã daquele dia, limitava-se ao noticiário do dia anterior, muitas vezes “cozinhando” informes de outros matutinos. Afinal, o Gazetão era um vespertino. Salvava a pátria reportagens sobre as estradas, sobre o aumento da malha viária do Estado de São Paulo.

Quando veio a crise econômica de 1968, o Gazetão era nitidamente deficitário e mantido pelo novo carro-chefe da Fundação Cásper Líbero que, na época, era A Gazeta Esportiva.

Após os anos 70, A Gazeta circulou apenas para não perder o direito do registro de seu título.

A perda do espírito promocional e as modificações na estrutura da economia do país acabaram por contaminar também A Gazeta Esportiva, que mudou sua área de atuação do papel para o monitor em 2001, já no terceiro milênio.

Toda esta epopéia descrevemos com detalhes em nosso livro recentemente lançado, “O Jornal de Ontem”.

Para nós, com 60 anos de jornalismo, o centenário de A Gazeta é mais do que uma data. É uma revivescência de nossa própria história.



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