Pioneiro, mecenas vê base do surfe em xeque com grandes marcas - Gazeta Esportiva
André Sender e Bruno Ceccon
São Paulo (SP)
05/18/2015 10:45:01
 

O empresário Alfio Lagnado é um pioneiro do surfe brasileiro. Patrocinador de Fábio Gouveia e Teco Padaratz, primeiros brasileiros a vencer etapas no WCT e responsáveis por abrir as portas do Circuito Mundial aos compatriotas no final dos anos 1980, o criador da marca Hang Loose vê a base do esporte em xeque e critica a Confederação Brasileira de Surfe (CBS), presidida por Adalvo Argolo.

Enquanto o Brasil ainda vive momentos de euforia com a vitória de Filipe Toledo na etapa do Rio de Janeiro do Circuito Mundial (WCT), a Gazeta Esportiva publica a reportagem Tempestade no Deserto, retratando o amadorismo da gestão do surfe nacional e a dificuldade na revelação de novos talentos. Este é o sexto capítulo da série.

Quando Alfio entrou na faculdade, o pai parou de financiar suas viagens, o que levou o jovem surfista a começar a produzir bermudas na confecção da família para vender a amigos. O negócio iniciado de maneira despretensiosa prosperou, e ele fundou a Hang Loose em 1982. Quatro anos depois, de forma ousada, promoveu uma etapa do Circuito Mundial em Florianópolis.

À Hang Loose, o empresário incorporou as licenças das marcas Reef, Volcom e Rusty, hoje reunidas na empresa Surf Co. Para Alfio Lagnado, a chegada das gigantes de surfwear ao Brasil comprometeu a base do esporte, dificultando o surgimento de novos talentos.

“Antigamente, havia muitas pequenas empresas patrocinando vários pequenos eventos e surfistas. Com a vinda das grandes marcas, elas foram eliminadas. As gigantes não dão valor à formação dos atletas na base e preferem apoiar as estrelas mundiais. Não precisam investir em um jovem da Praia Grande, porque já têm o Kelly Slater”, disse.

Alfio Lagnado levou Fábio Gouveia e Teco Padaratz para o WCT, abrindo as portas para outros brasileiros (Foto: Acervo Pessoal)
Alfio Lagnado levou Fábio Gouveia e Teco Padaratz para o WCT, abrindo as portas para outros brasileiros (Foto: Acervo Pessoal)

Em resumo, segundo Alfio Lagnado, o surfe se profissionalizou. O fenômeno ocorreu naturalmente em diferentes segmentos da modalidade, como na preparação física, por exemplo. Mas para o empresário, especificamente na base, a chegada das grandes marcas teve efeito negativo.

“Muitos atletas pequenos que estavam em desenvolvimento perderam patrocínio e vários eventos acabaram. As grandes empresas são cotadas na bolsa de valores e estão preocupadas em vender. Não têm o romantismo dos antigos donos de marca. É claro que, no fim das contas, todos querem lucro. Mas antes havia um envolvimento maior com o esporte”, afirmou.

Na contramão do mercado, Alfio apoia desde 1995 o Circuito Paulista amador, batizado de Surf Attack. O evento oferece retorno inexpressivo à empresa, mas é considerado fundamental para revelar novos talentos – nomes como Gabriel Medina, Miguel Pupo e Mineirinho disputaram o campeonato, como faz questão de lembrar o mecenas.

“Conheço essa molecada desde que eram pequenos. Quase todos os que estão no WCT hoje aprenderam a competir ou se desenvolveram no Surf Attack. O custo benefício do campeonato não é tão interessante comercialmente, mas você está investindo para colher no futuro. É um comprometimento com a formação de atletas”, disse Alfio.

A longo prazo, os talentos revelados pelo Circuito Paulista amador fatalmente serão “roubados” pelas grandes marcas mundiais, algo tolerado pelo patrocinador. “Oferecem um caminhão de dinheiro, e o cara vai embora. Tem que ir mesmo, é a profissão deles. Não acho errado, mas atrapalha a formação dos atletas de base”, opinou.

A Federação Paulista de Surfe (FPS), presidida por Silvio da Silva, mais conhecido como Silvério, é a organizadora do Surf Attack. A entidade é rompida com a CBS, responsável por promover o Circuito Brasileiro e criticada pelo empresário Alfio Lagnado.

“O pessoal da Confederação faz um péssimo trabalho. Eles são desorganizados e não sabem promover um evento que dê retorno. São incompetentes. Os caras sentam, ficam mamando inscriçãozinha de campeonato durante 100 anos e não largam o osso. É uma entidade muito mal gerida”, reclamou.

Alfio participou da fundação da Associação Brasileira de Surfe Profissional (Abrasp), iniciada no bojo do Hang Loose Pro Contest, etapa do Circuito Mundial promovida em 1986 na praia da Joaquina, em Florianópolis, e considerada divisor de águas da modalidade no País.

“Esse campeonato foi o marco de união de todo o mundo em prol do surfe nacional. Naquela época, existia um movimento e havia união de atletas, dirigentes, associações e empresários. Com o tempo, isso foi se perdendo. As associações viraram redutos de gente que vive daquilo e os interesses individuais passaram a preponderar”, afirmou.

Para fortalecer o surfe amador, Alfio sugere investir em torneios municipais e estaduais de baixo custo, de preferência com ajuda do poder público. Em julho, mês de férias escolares, um Campeonato Brasileiro selecionaria os integrantes da equipe responsável por defender o País nos eventos da Associação Internacional de Surfe (ISA).

O atual sucateamento do Circuito Nacional contrasta com o sucesso dos surfistas do País na elite, simbolizado pelo inédito título mundial de Gabriel Medina, com passagem pelo Surf Attack. Na melhor das hipóteses, acredita Alfio Lagnado, o fenômeno pode contribuir com a renovação dos dirigentes da modalidade.

Mesmo sem retorno expressivo, Alfio continua patrocinando campeonatos nas categorias de base (Foto: Divulgação)
Mesmo sem retorno expressivo, Alfio continua patrocinando campeonatos nas categorias de base (Foto: Divulgação)

“A Brazilian Storm está acordando o Brasil para o surfe. Com maior visibilidade do esporte, as pessoas amadoras que estão envolvidas podem sair ou pelo menos largar o osso. Por outro lado, no futebol é o contrário. Todo o mundo conhece os escândalos, mas ninguém larga o osso. Não sei como vai ser”, disse.

Diante do sucesso dos surfistas brasileiros, passaram a investir no esporte gigantes de outros segmentos, como marcas de telefonia e empresas automobilísticas. O panorama não empolga Alfio Lagnado, seguro de que os novos apoiadores não colocarão dinheiro na base.

Iniciada em 1986, a etapa brasileira do Circuito Mundial passou por localidades como Florianópolis, São Sebastião e Guarujá antes de chegar ao litoral pernambucano. O evento começou a ser disputado no arquipélago de Fernando de Noronha em 2000 e seguiu até 2012, como parte do WQS.

A etapa foi descontinuada em função da precariedade da Internet na região, tecnologia indispensável para a organização, e do desgaste com dirigentes, mas Alfio já pensa em retomá-la. “É um dos eventos mais tradicionais do mundo. Assim que melhorar a rede digital em Noronha, vamos analisar e devemos voltar, sim”, disse o pioneiro.



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