O legado de Sócrates: dentro e fora das quatro linhas - Gazeta Esportiva
Fernanda Silva
São Paulo, SP
02/19/2018 18:13:12
 

Primeiro, o lance. Depois, a rede balançando e a euforia da torcida corintiana. No campo, o autor do gol, que comemoraria 64 anos de idade nesta segunda-feira, apenas estendia o braço direito, de punho cerrado. Era a forma que Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira encontrara para fazer uma das coisas de que mais gostava: usar o futebol para levantar ideais em que acreditava.

“A comemoração dele era algo de esquerda: demonstrava seu ponto de vista sem precisar falar”, lembra Walter Casagrande, um dos grandes amigos do Magrão. “Quando jogávamos bem, tudo era bem aceito pela torcida. Quando jogávamos mal, eles se viravam contra a gente. Coisas do futebol.”

Numa fase específica, inclusive, Sócrates deixou de comemorar os gols no Corinthians. Gilvan Ribeiro, autor do livro Sócrates & Casagrande – Uma história de amor, explica o motivo. “Ele tinha tido uma discussão para renovar o contrato com o Vicente Matheus”, conta Gilvan, referindo-se ao relacionamento do jogador com o então presidente do Timão. “O Vicente oferecia pouco e ele estava protestando.” 

 

Logo começou uma ligação com a massa, porque o Corinthians era o time do povão

“Ele queixava-se também da pressão que sofria em campo por parte dos torcedores”, destaca Celso Unzelte, jornalista e autor de diversos livros sobre o alvinegro, entre eles, o Almanaque do Corinthians. “Logo começou uma ligação com a massa, porque o Corinthians era o time do povão”.

Com o tempo, o jogador foi transformando o gesto em algo com intuito mais político. “A torcida do Corinthians fez com que ele mudasse sua visão de mundo. A formação foi acontecendo. Ele se tornou mais preocupado com as classes populares”, lembra seu irmão Sóstenes Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira. Essa foi mais uma forma inteligente de o jogador, revelado no Botafogo-SP e que também passou por Fiorentina (Itália), Flamengo e Santos, divulgar ideologias.

Futebol como manifestação

Nascido em 19 de fevereiro de 1954, em Belém, o Doutor, como ficou conhecido, desenvolveu um conteúdo de preocupação social ainda em Ribeirão Preto, cidade onde cresceu e estudou medicina. “Ao chegar na cidade de São Paulo e no Corinthians, seu universo cresceu, e percebeu que a oportunidade que vivia naquele momento deveria ser generosamente ofertado para a melhoria do seu povo”, destaca Gustavo Vieira de Oliveira, atual diretor executivo do Santos e filho do ídolo.

“Ele era um cara diferente do ponto de vista intelectual”, destaca o jornalista Celso Unzelte. Durante a Ditadura Civil e Militar brasileira, o Doutor era um árduo defensor do fim da repressão e lutava pelo pelo voto direto. A dedicação à Diretas Já foi tão grande que, durante comício no no Vale do Anhangabaú de 1984, prometeu que não iria para o exterior se a Emenda Constitucional Dante de Oliveira, fosse aprovada. O documento, que pedia o restabelecimento das eleições diretas para presidente da república, entretanto, foi derrubado na Câmara dos Deputados, em 25 de abril daquele ano. Logo. Sócrates foi para a Fiorentina, na Itália. “Mas ficaram as amarras dele no Brasil, com a intelectualidade e a vanguarda”, conta Gilvan Ribeiro.

Antes de viajar, deixou legado no time alvinegro. Junto a outros colegas, viu o Corinthians ser espelho do Brasil. “Nos primeiros anos da década de 1980, chegou um momento em que havia um vácuo no poder corintiano, foi a hora de propor uma nova administração”, conta Unzelte. O objetivo da iniciativa era que todos dentro do clube tivessem espaço para opinar, com divisão de responsabilidades. “Foi uma experiência revolucionária para o futebol”, afirma o professor. Nesse contexto, Sócrates tinha o papel de um líder intelectual, entusiasta e mostrava seu lado humano.

Quando o cerco fechou na política brasileira, fazendo com que a votação indireta continuasse no Congresso, o Corinthians também sentiu o baque e, em 1985, a Democracia Corintiana não ganhou as eleições no Timão.

O Sócrates usava o futebol para passar mensagens políticas, porque sabia que tinha um alcance geral

Ídolo de um clube “popular”, o atleta não deixou de militar com a camisa da Seleção Brasileira – vestida em 60 oportunidades. Ainda que a Fifa não permitisse, ele chegou a entrar em campo com faixas na cabeça em plena Copa do Mundo de 1986, no México. Com textos em inglês e espanhol, o jogador não queria apenas ser visto: queria ser ouvido.

Socialista e sem medo de expor o que pensava, Sócrates falava que os outros jogadores eram alienados e cobrava um posicionamento deles. “Ele usava o futebol para passar mensagens políticas, porque sabia que tinha um alcance geral, de todas as classes. Era um canal”, destaca Ribeiro. “Hoje os jogadores não se pronunciam politicamente. E ele fez isso”, concorda Unzelte.  

Pouco mais de seis anos após seu falecimento, o legado do jogador é motivo de orgulho para seus filhos. Apesar de pouco terem acompanhado as glórias de Sócrates em campo, ouviram as histórias do Doutor — em primeira e terceira pessoa. “Sabendo das mazelas que o Brasil estava passando naquele momento, para mim esse maior legado que ele deixou para nossa geração. É uma inspiração pra gente lutar pelas coisas que a gente acredita”, afirma Sócrates Junior, quinto dos seis filhos do jogador, fruto do relacionamento dele com Silvana Campos.

“Ele compreendeu como ninguém que o jogador de futebol tem uma grande força política, por ter voz, espaço na mídia e, especialmente, por conseguir se comunicar com uma parcela da população que a história do Brasil e sua elite segregou do processo político”, destaca seu filho Gustavo Vieira. “Ele teve o discernimento de entender e a coragem de colocar em prática. Que bom seria se outros jogadores seguissem seu caminho”.

Ele compreendeu como ninguém que o jogador de futebol tem uma grande força política

Futebol era prioridade?

Torcedor do Santos, aos 14 anos Sócrates já se destacava em Ribeirão Preto, onde cresceu. “Era um jogador diferente, tinha um toque de bola que chamava atenção, com o calcanhar”, lembra Sóstenes Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, seu irmão um ano mais novo. “Na aula, ele sentava na primeira carteira, mas não anotava nada. Era facilidade”, lembra Sóstenes, que embora tenha tido criação parecida, considera ter uma personalidade muito diferente do irmão.

Se na sala de aula tinha facilidade apesar de não precisar ser tão dedicado, o campo foi um reflexo da escola. “Sócrates foi um talento, não um atleta”, opina Celso Unzelte. “Ele fumava, bebia, quase não tinha resistência. mas era um cara muito talentoso”. Sócrates Júnior concorda: “Não corria muito, porque o físico não deixava”, comenta o filho, entre risos discretos. “A técnica e a inteligência que ele impunha o destacavam”.

Antes de jogar no Timão, Sócrates se formou em medicina. Era uma exigência do seu pai, defensor da teoria “estudos primeiro”. “Era também um compromisso dele com ele mesmo”, lembra o irmão Sóstenes.

Quando saiu do interior, Sócrates veio para o Corinthians tornar-se um fenômeno de massa. “Ele tinha uma genialidade impressionante. Se fosse mais dedicado, seria muito maior.” destaca Celso. Sóstenes concorda: “Se ele fosse mais dedicado, seria ainda mais espetacular”.

Para seu filho, a prioridade de pai era a política, “mas não no sentido partidário”, destaca Sócrates Junior. “Política no sentido de pensar políticas públicas, gestão públicas, pensar filosoficamente sobre os rumos da nossa sociedade, do nosso País”.