Dos Santos: sobrenome brasileiro cravado na ginástica mundial - Gazeta Esportiva
Fernanda Silva
São Paulo, SP
03/05/2018 09:30:43
 

Antes de entrar no solo, a concentração não pareceu voar pelo tablado como o pó de magnésio que passou nas mãos. Sorrindo, subiu no local de apresentação, acenou, como de praxe, para os avaliadores e seguiu rumo ao início de sua apresentação na final de Atenas 2004. Sambou, fez um duplo twist esticado, salto eternizado e batizado com seu nome, mas, por fim, deslizou, apesar de quase não escutar o público e ter foco na música que dançava. O pé direito para fora da marca delimitada pode ter lhe custado o sonhado pódio em Jogos Olímpicos. “Eu voltaria um passo atrás e já ficaria feliz”, destaca Daiane dos Santos, cogitando o que mudaria dentro da sua história na ginástica olímpica.

“Pode ser que eu tivesse ficado dentro da área demarcada e não tivesse medalha”, pensa, com a mão apoiada sobre o rosto, relembrando as cenas vividas nas Olimpíadas, quando saiu da apresentação bufando e chateada com a marca de 9,375 pontos obtida. “Aquele passo ali me tirou todos os anos de treinamento e empenho buscando meu objetivo que era fazer o mais correto possível”.

Eu voltaria um passo atrás e já ficaria feliz

Apesar de lamentar não ter coroado a rica carreira com uma medalha olímpica, Daiane sabe que tem muito a valorizar. Na semana do Dia Internacional da Mulher, ela foi uma atleta do esporte feminino brasileiro que fez a diferença. “Quando você tem uma oportunidade real desse sonho se tornar real e ele não acontece, óbvio que não fica tudo bem”, destaca a ginasta. “Trabalhei muito para isso, mas só tem três campeões. Sua vida tem que seguir adiante. Se você não conquistou aquilo, você já conquistou muitos outros títulos”.

O currículo de Daiane é extenso. Ela começou aos 11 anos, mais tarde que a maior parte dos ginastas, que tiveram oportunidade ainda muito pequenas. “Tive que aproveitar o máximo que eu podia dentro do ginásio. O que me prendeu na ginástica foi a paixão”, lembra Daiane que, dois anos depois, entrou para a Seleção. Aos 13, competiu o Sul-Americano e ganhou medalha. “Quando voltei, voltei diferente e decidida: eu quero ser uma ginasta” — este, talvez, tenha sido um marco para o início uma carreira de sucesso.

Somando conquistas

A partir daí, Daiane dos Santos começou a se dedicar ainda mais para somar vitórias. Em 1999, subiu no pódio em duas categorias durante o Pan-Americano em Winnipeg, no Canadá. Com apenas 16 anos, foi prata no salto sobre cavalos e bronze por equipe. Em 2003, veio outro terceiro lugar, no Pan de Santo Domingo e, no mesmo ano, apresentou pela primeira vez, no Mundial de Anahein, na Califórnia, o Duplo Twist Carpado, ao som de Brasileirinho. Ambos, acrobacia e canção, hoje, raramente são dissociados da atleta e fazem parte de sua identidade no imaginário brasileiro.

Nosso objetivo era atingir as pessoas. Mas a gente não tinha noção do quanto isso ia repercutir

Basta soar o Lá, primeira nota do solo de Brasileirinho, que outro solo, o de Daiane é remetido. Destino ou coincidência, a música veio por acaso. Na época, a coordenação da Seleção tomou a decisão dos brasileiros usarem músicas nacionais em suas apresentações. Cheia de opinião, Daiane queria sua coreografia ao som de Aquarela do Brasil. Eis, então, que a ideia vinda do pai da coordenadora da Seleção de Ginástica foi bem aceita: Por que não Brasileirinho, do compositor Waldir Azevedo? “A gente ficou apaixonado”, lembra Daiane. “Nosso objetivo era atingir as pessoas. Mas a gente não tinha noção do quanto isso ia repercutir”, destaca a atleta.

Assim como a música, o salto também ressoou. Seu sobrenome nomeou duas das acrobacias apresentadas em Atenas: Duplo twist carpado (Dos Santos) e uma variação da primeira, o Duplo twist esticado (Dos Santos II). O Duplo twist carpado surgiu de uma ideia do treinador ucraniano Oleg Ostapenko, quando um outro salto teve que ser substituído. “Eu não sabia até a competição, que o elemento não existia”, relembra Daiane. Ela se sentiu homenageando um pouco a todos os brasileiros ao colocar em evidência o segundo sobrenome mais popular do País. “Fora que ficou marcado o nome da minha família. Uma brasileira, gaúcha, marcada na história da ginástica mundial”.

Base contra o preconceito

Sentada na cadeira de seu escritório, enquanto fala, Daiane, em meio ao papo, brinca com sua irmã e assessora, Deise dos Santos. Com apenas um ano de diferença, sendo Deise a mais velha, as duas fazem parte de uma família de cinco irmãos. “Meus pais sempre nos apoiaram muito, inclusive na ginástica”, conta Daiane, sem esconder o sorriso.

Ela dedica a eles, inclusive, o fato de saber lidar com críticas e preconceito. “É difícil encontrar algum brasileiro negro que nunca sofreu racismo. É engraçado porque 52% da população brasileira é considerada negra”, ressalta a gaúcha, que ainda nos seus primeiros anos no esporte, foi alvo de críticas apenas por sua cor. “Tinham pais que não queriam que suas filhas chegassem perto ou falassem comigo. Mas foi uma coisa que eu nunca dei muita bola. Meus pais souberam trabalhar muito bem isso”, destaca. Ela sabe: o preconceito está bem longe de ser algo legal e, por isso, é preciso mudar a cabeça das pessoas e ocupar espaços que pertencem também a essa parte da população.

É difícil encontrar algum brasileiro negro que nunca sofreu racismo

“É bacana quando você vê atletas em esportes que não eram considerados para negros. Negros não podem nadar, temos nadadores negros. Negros não podem jogar tênis, temos tenistas negros. Negros não podem jogar golfe: Tiger Woods, maior golfista, negro. Ginástica artística: As duas últimas campeãs do mundo são negras”, contabiliza Daiane. “O Brasil é um pedaço do mundo dentro de um país só. Temos casos vergonhosos que precisam ser tratados de maneira séria”.

Da aposentadoria em diante

Daiane confessa que, seis anos após sua aposentadoria, depois dos Jogos Olímpicos de 2012, já não tem todas habilidades que antes esbanjava. “Na cabeça tenho tudo, no físico não. Nosso corpo muda muito”, brinca. “Em termos de idade, daria para ir mais longe, mas em termos de empenho integral, não”

Segundo ela, os dois primeiros meses após deixar o colã foram como tirar férias depois de muito tempo trabalhando. “Você dorme tarde, ou nem dorme, come errado… Mas chega uma hora que você não tem mais o que fazer, você já fez tudo nos dois primeiros meses”, conta, em meio a risos.

Passou a ocupar seu tempo livre fazendo de sua modalidade um instrumento de mudança para crianças e jovens de todo País, por meio do projeto socioeducativo Brasileirinhos. “Quero quebrar o tabu de que a ginástica é pro Sul e Sudeste. A ginástica é pra quem gosta, pra quem está apaixonado”.

Para Daiane, devido a tantos anos dedicados ao alto rendimento, ela adquiriu um olhar competitivo e crítico, inclusive em relação à Seleção Brasileira. “A nova geração está muito bem. Acho que a gente conseguiu passar o colã para frente”, destaca, contente.“Se eu não ficar feliz, todo trabalho que eu tive lá atrás não valeu de nada”, conta. “Não posso pensar: ‘ah, mas eu queria só eu” — eu quero mais é que a gente consiga descobrir o maior número de talentos no Brasil ainda”.



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