Orgulho brasileiro na Venezuela - Gazeta Esportiva
Tomás Rosolino
São Paulo (SP)
05/30/2019 05:00:59
 

O Corinthians já foi quarta força, superou campeões europeus e viu sua torcida fazer uma festa de parar São Paulo algumas vezes na sua história, mas talvez apenas uma ocasião reúna todos esses requisitos. Em solo venezuelano, o mesmo em que busca uma vaga nas oitavas de final da Copa Sul-Americana nesta quinta, contra o Deportivo Lara-VEN, o Timão ergueu a Pequena Taça do Mundo, em 1953, um torneio disputado contra gigantes como Barcelona e Roma, vencido de forma invicta pelo clube do Parque São Jorge.

A Gazeta Esportiva foi o único jornal que retratou passo a passo o feito alvinegro (também esteve presente a Rádio Panamericana com a delegação), noticiando diariamente enquanto o clube acumulava uma série de recordes nos 20 dias em que esteve no país vizinho. A epopeia rendeu mais de 1 milhão de cruzeiros, moeda brasileira da ocasião, honrarias em Caracas, local da disputa, mensagens de parabéns do maior jogador do Brasil à época e um capítulo inesquecível da história corintiana.

Página exalta a conquista e a série de 26 jogos do clube sem perder contra estrangeiros (Foto: Reprodução/A Gazeta Esportiva)

A Quarta Força

Qualquer pessoa que acompanhou o futebol brasileiro em 2017 sabe que o Corinthians foi brevemente tachado e depois incorporou o espírito de quarta força do estado, um mantra que impulsionou a conquista do Paulista e do Brasileiro naquela temporada. Ainda que sem a exata alcunha, porém, o fato de ser subestimado foi determinante para que o Alvinegro superasse os rivais na sua grande conquista na Venezuela.

Edson França, correspondente enviado pela Gazeta à excursão, conta ainda antes da viagem que a ida a Caracas serviria como uma espécie de descanso para os atletas, bicampeões estaduais e cansados pela sequência de jogos. Sem o goleiro Gylmar dos Santos Neves, a delegação embarcou tranquila e só foi saber do menosprezo local ao chegar na capital venezuelana. “Chegaram os cariocas”, publicou um diário local, para desgosto dos corintianos.

Corinthians não empolgou os locais ao chegar a Caracas (Foto: Reprodução/A Gazeta Esportiva)

Parar o “carrasco” Ghiggia – o primeiro desafio

Foi com a pressão de mostrar a força do futebol brasileiro, ainda longe do respeito conquistado com o título da Copa do Mundo ao final daquela década, que o Timão entrou em campo no dia 14 de julho daquele ano. O rival era a Roma, sexta colocada do Campeonato Italiano anterior, mas “brilhantemente reforçada”, como disse o jornal, por Alcides Ghiggia – três anos antes, o uruguaio fez o gol do título do Uruguai na final da Copa do Mundo de 1950, o famigerado Maracanazo.

Comandados por Luizinho, os paulistas fizeram 1 a 0 no primeiro tempo e foram superiores durante todo o combate, surpreendendo o público local. Houve ainda um pênalti não marcado no craque corintiano, nada que mudasse o triunfo pela vantagem mínima sobre os romanos. Àquela altura, a equipe italiana havia vencido o Combinado de Caracas, que poucos dias depois surpreenderia o poderoso Barcelona.

Mais uma baixa e nada de “invasão”

O triunfo sobre a Roma rendeu respeito ao Corinthians, mas o saldo não foi tão positivo: artilheiro e futuro centroavante do Brasil na Copa do Mundo, Baltazar teve o pé esquerdo engessado e virou desfalque (viajaria ao Brasil no meio da competição). Poucos dias antes de encarar o Barcelona, a Gazeta Esportiva ainda fez questão de publicar um serviço aos corintianos que ficaram no Brasil.

Em nota intitulada “aviso aos corintianos”, foi informado que, mesmo com o “entusiasmo da gente alvinegra, acompanhando sua equipe de futebol em todas as batalhas”, ninguém conseguiria ir a Caracas para acompanhar as partidas seguintes da equipe já que todos os voos para a capital venezuelana estavam reservados até agosto, quando o torneio já teria acabado. “E em agosto não interessa, tá?”, finalizou o texto.

Corinthians superou o principal time do futebol europeu (Foto: Reprodução/A Gazeta Esportiva)

Vitória contra os campeões europeus – jogando com “alma e fibra”

O Barcelona não apresentou o futebol esperado na estreia contra o selecionado de Caracas – um misto de brasileiros, argentinos dentre outros contratados para o campeonato -, mas prometia mostrar sua força contra o Timão. Comandados pelo húngaro Kubala, os catalães eram atuais bicampeões espanhóis e haviam vencido a Copa Latina, um dos embriões da Liga dos Campeões da Europa, em 1952. Não puderam defender o título justamente pela sequência de jogos envolvendo o campeonato e a copa locais.

O Timão surpreendeu ao abrir rapidamente o placar com Luizinho, mas, a partir dali, viu-se envolvido pelos espanhóis. O empate veio a dois minutos do segundo tempo, com Moreno, e pareceu reacender o espírito de luta alvinegro. “Jamais se entregaram, jamais desanimaram” relatou a Gazeta Esportiva para contar que Carbone desempatou e Luizinho, mais uma vez, fez o 3 a 1. Nem o gol de Kubala, já perto do fim, diminuiu a festa.

Ademir de Menezes, então grande estrela do futebol brasileiro, fez questão de parabenizar os corintianos (Foto: Reprodução/A Gazeta Esportiva)

Respeito adquirido na Venezuela e exaltado no Brasil

A vitória sobre o Barcelona não demorou a repercutir no Brasil. Ademir de Menezes, então melhor jogador brasileiro e até hoje um dos craques da história do esporte, mandou uma mensagem, via A Gazeta Esportiva, para parabenizar os corintianos. Atleta do Vasco, ele escreveu um texto que poderia ser atribuído a qualquer corintiano. “A esta hora, queria encontrar-me em Caracas para dar boas gargalhadas e ver a cara dos promotores e dos entendidos que não acreditavam no Corinthians”, pontuou o artilheiro da Copa do Mundo de 1950.

O Corinthians já havia assegurado a liderança do primeiro turno da competição e, caso ganhasse da seleção de Caracas, poderia sagrar-se campeão justamente contra o Barça, na semana seguinte. O feito foi ganhando as ruas em São Paulo, com a população acompanhando tanto pelas páginas da Gazeta quanto pela voz da Rádio Panamericana. Luizinho e Claudio (até hoje maior artilheiro do clube) eram apontados como destaque do elenco.

Os corintianos em 1953 (Foto: Reprodução/A Gazeta Esportiva)
Vitória na bola e na briga contra o Barcelona

O Corinthians passou com tranquilidade pela Seleção de Caracas na visão da Gazeta Esportiva, jogando um futebol abaixo dos dois primeiros jogos, mas bom o bastante para superar o rival. Liderado por um brasileiro de codinome “109”, o time da casa tornou-se apenas uma escada para o Alvinegro chegar ao patamar que sonhava: duelo contra o Barça pelo título da competição.

No reencontro pelo segundo turno, o Timão protagonizou um embate mais defensivo e conseguiu travar o toque de bola do adversário, visto como “o grande perigo” dos espanhóis. Goiano, após cruzamento de Claudio, chutou de primeira e marcou o único gol da partida. A partir dali, começaram as “cenas deprimentes” relatadas pelo jornal.

Kubala, com o 9 às costas, “cerra os punhos” enquanto o corintiano Homero encara um dos seus companheiros (Foto: Reprodução/A Gazeta Esportiva)

Inconformado com o revés, o Barça iniciou uma confusão após “uma falta absolutamente normal” de Roberto Belangero. O relato da briga, dividido em três edições do jornal devido às dificuldades de circulação da informação à época, cita Kubala como o mais exaltado entre os espanhóis e o Corinthians como vencedor também nesta disputa.

“Na primeira partida foram os jogadores do Barcelona foram à imprensa espanhola reclamando: ‘No és posible tanta mala suerte‘”, começou a Gazeta. “No total, o Barcelona levava vantagem numérica sobre os brasileiros (…) quiseram então a desforra a socos e pontapés, no que também sofreram amargo revés”, continuou o jornal.

Em nota subsequente, foi informado que a polícia precisou intervir para que a partida fosse reiniciada 18 minutos depois e a vitória corintiana fosse consumada. As brigas, porém, seguiram na arquibancada e até fora do estádio. “Nós mesmos fomos testemunhas de um “fecha” pós-jogo entre um espanhol e um brasileiro. (…) Muita gente brigou pelo Alvinegro”, concluiu.

Corinthians ainda poderia ter jogado um mata-mata, mas rejeitou (Foto: Reprodução/A Gazeta Esportiva)

Incidente diplomático e convite rejeitado

O título invicto foi confirmado pelo Corinthians com novas vitórias sobre a Roma (3 a 1) e o Combinado de Caracas (2 a 0), mas o assunto seguia em torno do Barcelona. O Timão recebeu uma oferta de cinco mil dólares para participar de um novo torneio reunindo os quatro times, jogando uma semifinal contra o time local e enfrentando o vencedor de Barça e Roma na decisão. A ideia dos organizadores era um reencontro com os espanhóis, mas o Timão precisava voltar ao Brasil e correr atrás do prejuízo no Campeonato Paulista, que já chegava à sua quarta rodada.

A recusa virou incidente diplomático, com a Embaixada da Espanha em Caracas suplicando aos dirigentes pela realização de um novo duelo com o Alvinegro. “Foi dito que a situação não era boa no país nem na colônia ibérica (a Venezuela, no caso) por causa das derrotas do Barcelona no exterior”, revelou o jornal. O elenco corintiano, porém, já estava preparado para rumar de volta a São Paulo, onde uma grande festa o esperava.

Corinthians foi recebido por uma multidão na capital (Foto: Reprodução/A Gazeta Esportiva)

Festeja a “maior torcida do Brasil” para o “Gualicho”

O Corinthians voltou para casa com 1 milhão de cruzeiros no bolso e uma festa digna de título mundial à sua espera. A “apoteótica recepção” se deu em meio ao frio e à chuva característicos do agosto paulistano, com mais de dez mil pessoas se amontoando ao redor do Aeroporto de Congonhas. Os gritos eram de “Corinthians, Corinthians, Gualicho, Gualicho”, uma referência ao cavalo Gualicho, que acabara de se sagrar tricampeão do GP Brasil de Turfe, à época segundo esporte na preferência dos brasileiros.

O cortejo saiu do aeroporto até o Vale do Anhangabaú, “o vale do povo”, onde os jogadores tiveram seus nomes gritados um a um pela “maior torcida do Brasil”, titulo da matéria. O jornal ainda estampou em uma das páginas a sequência de 28 jogos sem perder para times estrangeiros, sendo 21 delas fora do país. Como não poderia deixar de ser no Corinthians, porém, o dia seguinte já havia mudado o tom de festa. “Campeões em Caracas agora correm atrás do prejuízo no Paulista”, encerrou o jornal.