Cabeça-feita - Gazeta Esportiva
Bruno Ceccon
São Paulo, SP
09/22/2018 08:00:35
 

A chance de acompanhar a palestra de um hipnólogo, a princípio, não animou os atletas do Flamengo de Guarulhos, clube que disputa a quarta e última divisão do futebol paulista. Enquanto Seu Jura cuidava do gramado e Tia Cida trabalhava na cozinha, os jogadores aguardavam pelo início da conferência com Olimar Tesser. A tarde chuvosa deixou alguns sonolentos e trouxe os dois carismáticos cachorros locais para dentro do humilde refeitório que sediaria a reunião.

Formado nas categorias de base do Palmeiras, Tesser passou como goleiro por clubes como Botafogo-SP, Fluminense-MG, Nacional-PR e Jabaquara-SP antes de encerrar a carreira aos 31 anos. Em um 1º de abril, começou verdadeiramente a estudar hipnose e, do passado como atleta, veio o link com o esporte. De acordo com o profissional, suas técnicas possibilitam a otimização do trabalho diário conduzido pelos times de futebol.

“Tudo que o treinador e o preparador físico fazem no campo, podemos sedimentar muito mais rápido entre os atletas com 15 minutos de hipnose. Eles assimilam melhor, evitam lesões e têm um processo regenerativo superior. Cada 10 minutos em estado de hipnose equivalem a duas horas de sono. Então, conseguimos acelerar alguns aspectos. Da mesma forma que há o trabalho físico e técnico, precisa ter o trabalho emocional. Os europeus ganham da gente no emocional e não na bola”, disse.

Já contratado por clubes como Portuguesa, Paulista, Ituano, Ponte Preta e Bahia, entre outros, Tesser conseguiu atrair a atenção dos jovens do Flamengo de Guarulhos com algumas demonstrações. Os jogadores ficaram boquiabertos diante de companheiros em transe e riram no momento em que até os mais descrentes foram influenciados pelo hipnólogo. Com foco no dia 27 de outubro, data da final da Quarta Divisão, o ex-goleiro falou sobre trabalho em equipe, estratégia, planejamento e, principalmente, confiança.

“Auto-hipnose e hipnose são a mesma coisa. As demonstrações com as pessoas que não acreditam servem justamente para mostrar isso. Não importa se acredita ou não. A hipnose acontece. Se a pessoa não quer ser hipnotizada, pode dar um pouco mais de trabalho, mas o profissional, quando tem habilidade, faz a hipnose acontecer rápido e sem problema algum. Com todos os tipos de atleta, é fácil de trabalhar”, explicou o antigo goleiro, que também presta serviço para empresas.

O jovem Marcelo Marelli, de 36 anos, é o técnico do Flamengo de Guarulhos na última divisão do Campeonato Paulista. Com passagens pelas categorias de base do Flamengo do Rio de Janeiro e do Corinthians, ele se candidatou a participar de uma das dinâmicas de Olimar Tesser. Para apresentar uma “surpresa”, o hipnólogo pediu a todos que fossem para o fundo do refeitório e foi prontamente atendido, inclusive pelos dois cachorros.

Caminho afiado
O ex-goleiro, então, exibiu uma trilha formada por cacos de vidro e deixou os atletas de olhos arregalados. Na condição de treinador e principal líder do elenco, Marelli foi convidado por Tesser a ser o primeiro a percorrê-la. Vagarosamente, após alguns instantes de aparente hesitação, ele tirou os tênis e deu um passo adiante. Sem olhar para baixo, seguindo as instruções do hipnólogo, chegou ao outro lado com os pés intactos.

“Vendo pela televisão, você acha que essas coisas são sempre combinadas. Quando chegou na hora do vidro, todo o mundo ficou receoso. Percorrer uma passarela de vidro, a princípio…”, disse o treinador. “Realmente, eu só fui porque estávamos ali e seria importante para todos. Mas, depois que você passa, vê que é capaz de tudo nessa vida. Os obstáculos, somos nós mesmos que colocamos na cabeça”, completou Marelli.

A dinâmica de caminhar no vidro, bem-sucedida no Flamengo de Guarulhos, nem sempre funciona, de acordo com Olimar Tesser. “As pessoas só passam se estiverem hipnotizadas, em auto-hipnose. No Ituano, por exemplo, dois jogadores cortaram o pé na primeira vez e não seguimos adiante. Acredito que nosso trabalho precisa de um comprometimento de todos. Não só da comissão e da diretoria, mas também dos atletas”, afirmou.

Amparados pelo técnico Marcelo Marelli, ao som de uma canção épica, todos os jogadores do Flamengo de Guarulhos tiraram os chinelos de dedo para percorrer o caminho formado por cacos de vidro, com direito a vibração, dedos apontados para o alto e até dancinha no final. Integrantes da comissão técnica e funcionários do clube fizeram o mesmo. Em seu último ato, Olimar Tesser convidou Tia Cida, responsável pela cozinha, para a dinâmica e comoveu os atletas.

“Olê, olê, olê, olá! Cida! Cida!”
“Acho que mexeu não só comigo, mas com todos”, contou o goleiro Matheus Santillo, formado na base do Corinthians. “A tia Cida é nossa mãezinha. Ela é a referência de mãe, porque muitos estão longe das famílias. Foi sensacional. No mundo do futebol, há muitas incertezas e precisamos provar nossa capacidade todos os dias. Essa palestra, realmente, tocou o coração”, afirmou o capitão, que aguardava pelos companheiros no final da trilha de cacos.

Tia Cida em ação (Foto: Sergio Barzaghi/Gazeta Press)

Tia Cida aceitou o convite do hipnólogo e, de touca e avental, também percorreu o caminho afiado. No final, abraçada pelos atletas aos gritos de “olê, olê, olê, olá! Cida! Cida!”, ela chorou. Integrante do Grupo 11 da terceira fase da última divisão do futebol paulista, o Flamengo de Guarulhos coloca os ensinamentos de Olimar Tesser à prova em busca de uma das duas vagas de acesso oferecidas pelo longo torneio, iniciado em abril.

“Deu para perceber que o treinador tem esse grupo na mão. Os jogadores estão comprometidos com o time e com o líder. Não prometo que vão ganhar o campeonato, porque uma palestra não é suficiente para isso, mas vejo que estão focados e realmente entenderam tudo que falei. Os atletas querem e têm objetivo. Procurei mostrar que o talento é deles e fico com a certeza de que essa equipe ainda pode dar muito”, apostou Tesser.