O russo mais brasileiro da Copa do Mundo - Gazeta Esportiva
Lucas Sarti
São Paulo, SP
12/21/2017 09:30:11
 

Mais de nove mil quilômetros separam Fortaleza, capital do Ceará, de Moscou, capital da Rússia. Além da considerável distância, as duas cidades também são diferentes em diversos aspectos. Enquanto Fortaleza possui algumas das praias mais visadas por turistas estrangeiros, Moscou é conhecida por seu clima gélido, muitas vezes abaixo de 0ºC. Quem poderia imaginar, então, que um cearense nascido em Fortaleza faria da Rússia sua casa, e, de quebra, vestiria a camisa do país em uma Copa do Mundo?

A curiosa história faz parte da trajetória de Ariclenes da Silva Ferreira, conhecido no mundo do futebol como Ari, ou “Arigol”, e que hoje é um típico “russo”. Vivendo há mais de sete anos no país conhecido pela produção de bebidas destiladas e pela revolução russa, Ari conseguiu o que poucos jogadores brasileiros tiveram o privilégio: um passaporte russo e a chance de disputar a Copa do Mundo de 2018, na Rússia, vestindo as cores do país anfitrião.

“Sempre tive o sonho de ser jogador profissional, de dar entrevista, jogar no Flamengo, ir para a Europa, jogar na Seleção Brasileira… estou há oito anos na Rússia, não consegui chegar no Flamengo, mas cheguei na Europa. Trilhei um caminho muito bacana. Agora tenho a possibilidade de jogar uma Copa pela Rússia”, comentou Ari, em entrevista exclusiva à Gazeta Esportiva.

Ari recebeu o passaporte russo neste ano (Foto: Divulgação)

Quando atendeu ao telefonema da Gazeta, com a voz ainda embargada por conta da diferença de fuso horário que existe entre o Brasil e a Rússia – Moscou está cinco horas à frente do horário de Brasília, Ari parecia tropeçar nas palavras da língua portuguesa. Afinal, são praticamente oito anos em solo russo, adaptado a outra cultura, língua e costumes. Com o decorrer da entrevista, no entanto, o atacante brasileiro de 32 anos volta ao fluente português, e passa a contar sobre sua inusitada carreira.

Artilheiro e campeão do Campeonato Cearense de 2005, Ari deixou o Fortaleza, clube que o revelou para o cenário nacional, em 2006, quando se aventurou no Kalmar, equipe da Suécia. Em seguida, atuou no AZ Alkmaar, da Holanda, por três temporadas, e lá conquistou o campeonato nacional da temporada 2008/09. Foi em 2010, somente cinco anos após ter dado os primeiros passos como jogador profissional, que Ari se viu jogando no futebol russo.

“Caso consiga esse objetivo (disputar a Copa pela Rússia), será um dos sonhos realizados. Chegar num país como a Rússia, se adaptar ao futebol, a cultura daqui, não é nada fácil. É tão frio, com tanto trânsito, uma cultura totalmente diferente do Brasil. É inexplicável. É o sonho de qualquer atleta. Acredito que com trabalho ainda posso alcançá-lo. O primeiro passo foi dado. O resto é consequência”, afirmou Ari.

Arig⚽️⚽️ll✌🏽 @fckrasnodar 💪🏽

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E o primeiro passo, destacado pelo jogador, teve início em 2013, quando o técnico italiano Fabio Capello, campeão da Liga dos Campeões sob o comando do Milan na temporada 1993/94, fez um convite ao atacante brasileiro: naturalizar-se russo e defender a seleção local. A indicação de Ari foi feita por um companheiro russo dos tempos de Krasnodar, mas o convite veio da boca do próprio treinador italiano.

“Tinha um jogador russo capitão da seleção que tive o prazer de jogar ao lado no Kraznodar, era o… nome russo é complicado… Roman Shirokov. Por meio dele veio o recado do Fabio, e ele passou meu número de telefone. Como o Capello fala espanhol, me ligou diretamente, e perguntou se eu gostaria de defender e ajudar a seleção naquele momento, que não era muito bom. Falei: ‘claro, seria um prazer jogar pela seleção’. Mas aí, infelizmente, ele foi mandado embora”, relatou Ari.

Após a conversa com Capello, e sem pensar que, no futuro, o italiano seria demitido do cargo de técnico da Rússia, Ari deu entrada no processo para receber o passaporte do país. Anos depois daquela marcante conversa com o treinador italiano, o cearense finalmente recebeu o documento.

“Dei o primeiro passo para viver no país sem visto. Passei nos testes, agora é esperar o passaporte chegar, o que deve demorar uns três meses”, contou o emocionado brasileiro, que agradece a participação do Lokomotiv Moscou, seu atual clube, no processo. “No período do Kraznodar não fizeram nenhuma questão de me ajudar com o passaporte. (No Lokomotiv) Foi tudo diferente. Além de acreditarem no meu futebol, no meu potencial, me ajudaram com o passaporte”, acrescentou.

Ari está no Lokomotiv desde o início de 2017 (Foto: Divulgação)

Apesar de ter a possibilidade de vestir a camisa da Rússia e jogar sua primeira Copa do Mundo aos 32 anos, Ari ainda mantém os pés no chão, muito por conta de não ter recebido nenhum contato da nova comissão técnica do país. “Não, ainda não. Ninguém veio atrás para saber como está minha situação. Como falei, estou muito feliz por pegar o passaporte. A vontade de jogar pela seleção ainda é grande. É trabalhar para buscar meu objetivo”, disse.

Além de Ari, a seleção da Rússia pode ter outros dois brasileiros vestindo suas cores na Copa do Mundo. O goleiro Guilherme, com passagem pelo Atlético Paranaense, e o lateral Mário Fernandes, que no Brasil atuou pelo Grêmio, mas está há mais de cinco anos no CSKA Moscou. Ambos os jogadores já foram convocados para defender o país em jogos anteriores.

Precisando mostrar serviço para os russos, o atacante enfrentou um grande problema nos últimos meses. Principal jogador ofensivo do Lokomotiv, líder do Campeonato Russo com oito pontos a mais que o segundo colocado Zenit, Ari ficou meses parado por conta de uma lesão de ligamento. Em fase de transição, o brasileiro deve retornar no início de janeiro.

Antes de chegar na Rússia, um episódio com um dos técnicos mais respeitados dos últimos anos marcou a carreira de Ari. Louis Van Gaal, treinador com passagens por Ajax, Barcelona, Bayern de Munique, Manchester United e seleção da Holanda, foi técnico do brasileiro no AZ Alkmaar, e responsável por ‘puxar a orelha’ do cearense. Reforçando a fama de durão que Van Gaal, que também tem histórias parecidas com jogadores como Rivaldo, tem com brasileiros.

“Ele (Van Gaal) era disciplinador de um jeito impressionante. Obrigava a gente a aprender o holandês, uma hora de aula por dia. Lembro que um dia cheguei uns dois minutos atrasado, mas para ele foi falta de responsabilidade. Ele tem essa fama de nunca gostar de trabalhar com brasileiro por conta desses ‘atrasos’. Para ele foi falta de responsabilidade. Tirando isso, sem dúvida ele foi o melhor treinador com quem eu já trabalhei. No campo reclamava, gostava da posse de bola. No aquecimento exigia alto aproveitamento nos passes. Às vezes, ia lá e pegava no pé do jogador, falava que estava faltando comprometimento. Naquele dia da aula me deu uma chamada”, contou com bom-humor o brasileiro, campeão do Holandês em 2008/09.

#Arigooll

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Com contrato renovado por mais uma temporada, Ari permanece atuando no futebol russo, mas também volta suas atenções para o cenário brasileiro. Isso porque o experiente atleta tornou-se o principal gestor do Uniclinic, clube que disputa a primeira divisão do Campeonato Cearense. Antes de se aventurar como empresário, Ari passou por um “teste” no Horizonte, clube de sua cidade natal.

“Estou tentando formar um time diferente, parecido com o modelo europeu. Estamos nos preparando com uma nova filosofia. Temos um treinador jovem, de apenas 25 anos, mas que teve uma experiência aqui na Rússia, observou jogos na Europa. Quero formar atletas e cidadãos. Estou entrando neste projeto sabendo dos riscos, das dificuldades, com o objetivo de fazer a ponte para atletas aqui na Europa”, contou Ari, sem esconder sua animação com o cargo que cumprirá paralelo ao de jogador de futebol.

Possível adversário do Brasil na Copa do Mundo de 2018, caso consiga alcançar seu objetivo, Ari deixa a rivalidade de lado quando questionado sobre o conselho que daria aos jogadores da Amarelinha. “Os campos estão bons para a Copa. Acho que cabe ao jogador, principalmente o zagueiro, jogar de (chuteira) de trava alta. Têm muitos jogadores que não gostam de trava alta, principalmente atacantes, então podem ter problemas”, afirmou. “Os russos adoram como a Seleção Brasileira joga. Acredito que a torcida irá apoiar a Seleção. Todos vão marcar presença nos jogos do Brasil. É um país muito fã do futebol”, finalizou Ari, o cearense mais russo que pode estar na Copa do Mundo de 2018.

* Especial para a Gazeta Esportiva