Candidato à Fifa, xeque do Bahrein é denunciado por abusos contra atletas - Gazeta Esportiva
Edoardo Ghirotto
São Paulo (SP)
12/21/2015 09:00:59
 

Um candidato controverso figura entre os favoritos à sucessão de Joseph Blatter na presidência da Fifa. O xeque Salman bin Ebrahim al-Khalifa, membro da família real do Bahrein e atual chefe da Confederação Asiática de Futebol (AFC, na sigla em inglês), é acusado por organizações internacionais de defesa dos direitos humanos de ter consentido com casos de prisões arbitrárias e torturas contra atletas que protestaram há quatro anos pela democratização do país. Na primeira parte de uma entrevista concedida à Gazeta Esportiva, Khalifa disse ser inocente e negou envolvimento nos abusos sofridos por manifestantes.

A participação do dirigente na repressão aos ativistas teria ocorrido em meio aos protestos que sacudiram o país em 2011. Inspirados pelos levantes populares da Primavera Árabe, partidos de oposição foram às ruas para exigir a saída da dinastia que comanda o Bahrein há mais de 200 anos. A operação lançada pela monarquia para sufocar as manifestações deixou ao menos 89 mortos e levou mais de 1.200 à prisão.

Raio-X do Bahrein
Com população estimada em 1,3 milhão de pessoas, o Bahrein é uma pequena ilha localizada no Golfo Pérsico. O país é um aliado estratégico dos Estados Unidos e Arábia Saudita e desde 1999 é governado pelo rei Hamad bin Isa al-Khalifa, que assumiu o poder após a morte do pai. A família Al-Khalifa descende de uma linhagem muçulmana sunita, cuja vertente defende que os fiéis sigam à risca a compilação de ensinamentos do profeta Maomé (suna). Ao contrário da realeza, a população do Bahrein é constituída em sua maioria por xiitas, defensores de uma visão interpretativa para adaptar a suna à atualidade. As diferenças ideológicas levam os sunitas a enxergarem os xiitas como “subcidadãos”.

Por meio de uma nota divulgada em abril de 2011, o ministério da Informação comunicou que a federação de futebol local, então chefiada por Khalifa, agiria contra esportistas que ingressaram nas manifestações. Atletas, técnicos e dirigentes seriam identificados por um comitê especial e responderiam por “violar a lei” ao participar de protestos ilegais e por “tomar qualquer ação com o objetivo de remover o regime ou insultar símbolos nacionais”. A chefia do órgão foi concedida a Khalifa por Nasser Bin Hamad al-Khalifa, filho do rei e então chefe do comitê olímpico local.

A população do Bahrein foi às ruas para pedir a saída da monarquia que governa o país há mais de 200 anos (Foto: Mohammed Al-Shaikh-AFP)
A população do Bahrein foi às ruas para pedir a saída da monarquia que governa o país há mais de 200 anos (Foto: Mohammed Al-Shaikh-AFP)

“Que uma parede caia sobre a cabeça de quem desejar a queda do regime”, disse Nasser, em discurso transmitido pela televisão estatal do Bahrein. “Não importa se é um atleta ou político, quem se envolver nessa rede será punido. Hoje é o dia do julgamento”, acrescentou. Acredita-se que cerca de 150 personalidades ligadas ao esporte foram identificadas e sancionadas pelo comitê. Mas, em contato por e-mail com a reportagem, o postulante à presidência da Fifa alegou que o órgão nunca foi criado oficialmente. “O comitê que foi anunciado – e do qual supostamente eu seria membro – nunca foi criado e nunca se reuniu. Não poderia ser um membro ativo de tal comitê, pois ele nunca existiu”, afirmou Khalifa. “Essas alegações são bobagens completas. Elas são insultantes e maliciosas”.

Um segundo relatório publicado pela imprensa estatal do Bahrein, no entanto, contradiz as declarações de Khalifa. “O comitê de investigação teve sua primeira reunião ontem. A reunião foi chefiada pelo xeque Salman bin Ebrahim al-Khalifa e contou com a participação de membros do comitê”, diz o documento, publicado em 11 de abril de 2011. “Essa será uma etapa preliminar para preparar um relatório detalhado sobre o assunto. Ele será apresentado ao comitê investigativo, que tomará ações necessárias contra todos aqueles que atentaram contra a terra natal e seus sábios líderes”. As averiguações, segundo a nota, se baseariam em “provas documentadas e evidências que foram enviadas por membros do movimento esportivo e por vários seguimentos da sociedade”.

Questionado sobre os documentos, Khalifa disse não ter conhecimento dos informes oficiais do governo. “Não tenho ideia sobre qual documento você está falando, simplesmente porque não existe um documento desse tipo”, afirmou. Ele declarou que um comitê com tal propósito não seria necessário porque os atletas que participaram de manifestações já eram conhecidos do grande público. “Se uma manifestação ocorresse no Rio de Janeiro, alguém pediria para um comitê ou um oficial do meio futebolístico identificar o Ronaldo, o Neymar, ou qualquer outro jogador de ponta? Obviamente não. Todo mundo conhecia esses jogadores. A mesma coisa ocorreu no Bahrein. Ninguém precisava identificá-los porque eles eram conhecidos no país”.

(Foto: Mohammed Al-Shaikh/AFP)
Khalifa diz não conhecer os informes oficiais que provam sua participação em comitê investigativo (Foto: Mohammed Al-Shaikh/AFP)

Segundo o Instituto do Bahrein por Direitos e Democracia (Bird, em inglês), ao menos 79 esportistas seguem presos no país. Entre os 150 atletas punidos após os protestos, 27 tinham índice olímpico e ficaram impedidos de competir profissionalmente. “Embora Khalifa não tenha torturado ninguém pessoalmente, o único objetivo do comitê que ele presidiu era identificar os atletas que depois foram presos e torturados”, disse o ativista Said Yousif Almuhafdha, um influente refugiado político bareinita.

Constituída após as manifestações, a Comissão Independente de Inquérito do Bahrein (Bici) constatou que os manifestantes presos – incluindo esportistas – sofreram espancamentos, choques elétricos, privação do sono, exposição a altas temperaturas, ameaças de estupro e insultos religiosos. “Trocar Joseph Blatter por Salman al-Khalifa significa que um indivíduo corrompido dará lugar a um torturador”, declarou AlMuhafdha.

À rede BBC, a Human Rights Watch (HRW) – uma das ONGs internacionais mais respeitadas na área de direitos humanos – alegou que “existem indícios claros da participação de Khalifa nos acontecimentos de 2011”. “Essa família real conduziu uma repressão brutal, quando forças de segurança atiraram em pessoas na rua e torturaram outras cinco até a morte na prisão”, pontuou Nicholas McGeehan, pesquisador da HRW no Golfo Pérsico. “Os fatos falam por si só e apontam os motivos pelos quais isso [a eleição de Khalifa] seria uma escolha dúbia, algo muito pior do que dinheiro em envelopes marrons”.

Trocar Blatter por Khalifa significa que um indivíduo corrompido dará lugar a um torturador.

Said Yousif AlMuhafdha

Para Khalifa, as alegações a respeito da realeza à qual pertence são “equivocadas”, uma vez que “anulam a liberdade individual que exerço para ser uma pessoa por direito”. “Ao contrário de algumas famílias reais da Europa, que talvez tenham entre 100 e 150 membros, a família al-Khalifa tem aproximadamente 2.000 membros. Dizem, então, que os mais de 2.000 membros da realeza do Bahrein cometeram atos hediondos? Em caso afirmativo, estão se baseando em conceitos muito perigosos”, disse. “Se os fatos forem estudados com seriedade, verão que como uma pessoa e um indivíduo eu sempre olhei pelos jogadores de futebol e não tenho nenhum registro de conduta errônea”.

Em novembro, o comitê eleitoral da Fifa aprovou a candidatura de Khalifa à presidência alegando que não foi constatado “nenhum envolvimento pessoal ou direto” do dirigente com infrações aos direitos humanos. No mesmo mês, a HRW publicou um relatório denunciando as autoridades do Bahrein por persistirem no uso de práticas abusivas e torturas contra presos políticos.

“Não é nosso papel decidir quem deve ou não deve presidir a Fifa. Esses são os fatos que importam. Pessoas foram torturadas até a morte no Bahrein pela família que governa o país e por suas forças de segurança”, disse Nicholas McGeehan à BBC. “Estamos divulgando os fatos para que as pessoas possam decidir por elas mesmas se esse homem [Khalifa] é ideal para o comando da Fifa”. A reportagem tentou um novo contato com Khalifa para abordar a situação política do país, mas não obteve resposta por parte do dirigente até a data dessa publicação.

O Caso do “Menino Dourado”
Uma das alternativas da campanha de Khalifa para livrá-lo das acusações é um depoimento dado recentemente pelo atacante A’ala Hubail, apelidado de “Menino Dourado” e considerado o maior jogador de futebol da história do Bahrein. Junto do irmão Mohammad, que também atuava no futebol nacional, Hubail foi levado por homens mascarados, interrogado em um local desconhecido e espancado pelas forças de segurança. “Uma das pessoas que me batia disse que quebraria as minhas pernas. Eles sabiam quem nós éramos”, afirmou o atleta, em um minidocumentário produzido pela ESPN norte-americana em 2011.

(Foto: Frederic J. Brown)
Hubail é considerado o maior jogar da história do Bahrein (Foto: Frederic J. Brown/AFP)

Hubail ficou preso por três meses e foi suspenso da seleção do Bahrein. Mas, após o lançamento da candidatura de Khalifa, o jogador deu uma entrevista à agência Associated Press apoiando a candidatura do dirigente à Fifa. “Não acho que ele esteve envolvido nisso. Eu não mentiria”, disse Hubail, em novembro. O atleta afirmou que não gostaria de “machucar nem ofender” ninguém durante as manifestações e que teve sua imagem manipulada por grupos opositores ao ser filmado em meio aos protestos.

Sobre o caso, Khalifa classificou de “absurdas” as alegações de que expôs jogadores de futebol aos abusos das autoridades locais. Ele disse ainda que as denúncias são fruto de “um jornalismo irresponsável” e “inaceitável”. “Todo esse montante de mentiras é muito insultante, particularmente porque eu tenho até os dias de hoje um relacionamento cordial com todos os jogadores do meu país”, afirmou.



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