O sonho do tri - Gazeta Esportiva
Marcos Guedes*
São Paulo (SP)
03/02/2016 04:24:19
 

Campeão mundial em 1958 e grande nome do bi, em 1962, Garrincha estava longe da melhor forma no início de 1966. Sua tentativa de renascer no Corinthians, naquele ano, tinha tudo a ver com o sonho de buscar o tricampeonato com a Seleção Brasileira na Copa do Mundo da Inglaterra.

“Se o pensamento ajuda, eu vou. Porque somei a vontade ao pensamento, coloquei bem junto a força fabulosa que é o Corinthians e acho que acabarei conseguindo, mesmo porque os amigos todos da CBD pensam que posso lutar pelo tri”, afirmou, logo na chegada ao clube do Parque São Jorge.

Naquele momento, o Mané estava ao menos sete quilos acima do peso, com sérias questões sobre seu joelho direito. Sua árdua luta para se colocar em condições razoáveis se tornou algo visto com esperança não só por alvinegros, em um jejum de títulos que já começava a fazer sapos serem desenterrados do Parque São Jorge, mas também por torcedores verde-amarelos e pela Confederação Brasileira de Desportos.

Ainda no início dessa luta, Garrincha recebeu no Parque a visita do amigo Nilton Santos, velho companheiro de Botafogo e de Seleção. “Mané, você está ficando mais fino, hein?”, incentivou o ex-jogador, assumindo nova torcida, sem abrir mão do preto e branco: “Creio que tenho muito de corintiano”.

A Enciclopédia do Futebol chegou a dizer “meu Corinthinha” e topou posar com um uniforme sem a estrela solitária. “Creio que não faz mal. É até uma honra, mesmo tendo abandonado o futebol, pois o Corinthians é dos grandes e tem agora o meu amigo Mané Garrincha”, disse o ex-lateral, acrescentando: “Esta camisa é bonita mesmo, hein, Mané?”. “É bacana. Continuo alvinegro, mas agora corintiano”, retrucou o ponta, o que arrancou um brado do aposentado: “Vamos, Corinthians!”.

Nilton Santos procurou incentivar o Mané e chegou a dizer "meu Corinthinha" (reprodução/A Gazeta Esportiva)
Nilton Santos procurou incentivar o Mané e chegou a dizer “meu Corinthinha” (reprodução/A Gazeta Esportiva)

Alguns dias mais tarde, o encontro foi com Maria Esther Bueno, outra que se recuperava de problema no joelho com o pensamento na Inglaterra. Pouco antes da Copa do Mundo, seria disputado em Londres o torneio favorito da tenista, o de Wimbledon, motivo de animada conversa no Hospital Pedro II, no centro de São Paulo, onde se tratava também o Mané.

“Vamos à Inglaterra lutar pelo Brasil?”, perguntou a paulistana, ouvindo a resposta: “Vamos, Maria Esther, estou com vontade”. Seguiu-se um papo sobre meniscos retirados e expectativas. Ela apontou a australiana Margaret Smith como grande adversária; ele, “todos os laterais”. Despediram-se, com a promessa de reencontro festivo na terra da rainha.

A tenista realmente se apresentou muito bem nos gramados britânicos. Ela não cruzou, na chave de simples, o caminho de Margaret, eliminada nas semifinais pela norte-americana Billie Jean King. Na decisão, no entanto, Billie Jean derrubou Maria Esther. Já nas duplas, a brasileira ergueu o troféu ao lado da norte-americana Nancy Richey, cumprindo a promessa de bater Margaret, que foi à final na companhia da também australiana Judy Tegart.

Maria Esther foi mais longe na terra da rainha do que Garrincha (reprodução/A Gazeta Esportiva)
Maria Esther foi mais longe na terra da rainha do que Garrincha (reprodução/A Gazeta Esportiva)

Garrincha também fez o que estava ao seu alcance para apresentar a melhor forma, mas suas condições eram piores do que as de Maria Esther. Mesmo depois de marcar seu primeiro gol pelo Corinthians, definindo vitória sobre o Cruzeiro, ele admitiu: “Preciso lutar muito, ainda”. Já em abril, perto da pré-convocação para a Copa, foi ainda mais sincero: “Sonho dia e noite com o Mundial, quero alcançar o tri, mas tenho até medo de ser convocado por dó”.

O Mané foi chamado. Na insanidade que foi a preparação verde-amarela, com 44 jogadores reunidos inicialmente por Vicente Feola, o ponta alvinegro sobreviveu aos sucessivos cortes e teve bons momentos. Em 1º de maio, em triunfo por 2 a 0 sobre a seleção gaúcha no Maracanã, logo na primeira bola que recebeu, encheu ao menos os olhos míopes do cronista Nelson Rodrigues, um de seus grandes fãs.

“Foi uma das jogadas mais histriônicas de toda a vida de Mané. Primeiro, pulou por cima da bola. Fez que ia mas não foi. Pula pra lá, pra cá, com a delirante agilidade de 58. Lá estava a bola, imóvel, impassível, submissa ao gênio. E Garrincha só faltou plantar bananeiras. Três ou quatro gaúchos batiam uns nos outros, tropeçavam nas próprias pernas”, escreveu, em O Globo.

A empolgação fez Nelson contestar os que davam o craque como morto e decretar sua ressurreição. “E vamos e venhamos: – para um defunto, Mané parecia ontem salubérrimo”, observou, apontando que “Mané voltou a ser ele mesmo”. Por fim, o dramaturgo se pôs a imaginar o que aconteceria na Inglaterra com o camisa 7: “Sempre que ele receber a bola, lord Nelson há de tremer na tumba e a ‘Divina Dama’ há de chorar lágrimas de esguicho”.

Não foi assim. O falso otimismo de Nelson Rodrigues até foi alimentado na estreia, vitória por 2 a 0 sobre a Bulgária, com um gol de falta de Garrincha. Mas a verdade veio à tona no segundo jogo, o último do ponta-direita em verde-amarelo. Na despedida, 3 a 1 para a Hungria, ele perdeu pela primeira vez com a camisa da Seleção. O Brasil deu adeus definitivo na derrota por 3 a 1 para Portugal, sem o Mané em campo.

Se Lady Hamilton chorou, foi de alegria pelo título dos donos da casa, conquistado com enorme ajuda da arbitragem. De volta do fracasso na Europa, Garrincha não teve força para seguir lutando.

*Colaborou Helder Júnior



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