Torcedor que deu camisa do Bahia a Neuer nega abatimento por causa do 7 a 1 - Gazeta Esportiva
Helder Júnior
São Paulo (SP)
03/27/2018 01:00:31
 

Os pouco mais de 25.000 habitantes de Santa Cruz Cabrália, pequeno município do litoral sul baiano, estavam ressabiados com a confirmação de que recepcionariam a seleção da Alemanha durante a Copa do Mundo de 2014. Afinal, a delegação europeia rejeitara todas as opções de hospedagem sugeridas pela Fifa para construir ali, na vila de Santo André, a sua própria concentração. A expectativa era de que haveria um convívio distante – “frio e até militar”, nas palavras de Damião Dias Pinto, superintendente de Esporte e Lazer da cidade – com a população local.

O próprio Damião, que hoje sonha fazer turismo na Alemanha, não demorou a perceber o contrário. Um ano antes, ele conheceu Oliver Bierhoff, ex-jogador e diretor esportivo da seleção germânica, e surpreendeu-se com a “pessoa muito simples e acessível” que estava interessada em reunir os futuros tetracampeões mundiais em Santa Cruz Cabrália. Mal imaginava que os nada altos muros do Campo Bahia ainda abrigariam fãs de churrasco e telenovelas, conforme o atacante Lukas Podolski afirmou com publicações em português em redes sociais, e até novos torcedores de um clube local. “Bahea! Bahea! Bahea!”, aprenderam a gritar o goleiro Manuel Neuer e o meio-campista Bastian Schweinsteiger para saudar o Esporte Clube Bahia.

Feliz por estar ali, Damião ajudou a transformar o tetracampeão Neuer em um torcedor do Bahia
Feliz por estar ali, Damião ajudou a transformar Neuer em um torcedor do Bahia (fotos: acervo pessoal)

A ligação dos alemães com a equipe tricolor se estreitou no primeiro treinamento aberto realizado em Santa Cruz Cabrália, antes mesmo da estreia no grupo G da Copa do Mundo. Na ocasião, sob calor intenso, os comandados de Joachim Low vestiram uniformes com a inscrição “Feliz por estar aqui” gravada no peito e esbanjaram simpatia em meio a uma atividade tática. O aniversariante Miroslav Klose, então completando 36 anos, chegou a se posicionar no centro de uma roda de índios pataxós de aldeias da Coroa Vermelha para ser festejado. Ganhou um chocalho e um arco e flecha de presente.

O ambiente festivo fez Damião Dias Pinto ficar à vontade no gramado do centro de treinamento da Alemanha. Com uma bola “Brazuca” debaixo do braço, o superintendente de Esporte e Lazer do município baiano passou a recolher autógrafos dos jogadores alemães e a tirar fotografias com quem via pela frente. “O que eu queria mesmo era uma camisa de recordação, mas já tinham jogado quase todas para a arquibancada. Foi aí que percebi o Neuer ainda com a dele, me aproximei e pedi”, contou, ressalvando que teve o auxílio de uma tradutora da delegação da Alemanha para se comunicar.

Neuer também tinha um pedido a fazer. Ao notar que aquele torcedor envergava um uniforme listrado do Bahia – com o nome “Damião Dias” e o número “13” impressos nas costas –, ele não titubeou diante da oportunidade de levar para casa uma lembrança do seu “Bahea”. “O Neuer reconheceu o escudo do Bahia e teve a iniciativa de propor a troca. Fiquei meio reticente porque tinha acabado de ganhar aquela camisa de um amigo, algo muito simbólico. Era personalizada, do meu time do coração. Não tinha caído a ficha do que estava acontecendo ali”, comentou Damião, que recebeu apoio para passar a encarar aquela transação como imperdível. “Você tem noção do que fez? Trocou de camisa com o Neuer!”, exclamou Alexandre Carvalho Leite, vice-prefeito de Santa Cruz Cabrália.

Neuer argumentou que queria a camisa do Bahia para homenagear Dante, seu companheiro de Bayern de Munique e tricolor declarado. O meio-campista Schweinsteiger já possuía um uniforme branco do clube brasileiro, presente do próprio zagueiro. “Pensei que eles só fariam um vídeo qualquer com os uniformes e mandariam para o Dante, como a tradutora me disse. Mas, quando chegaram ao hotel, os dois saíram pulando e tentando cantar o hino para a câmera, acompanhados do motorista deles e de mais alguns funcionários. E o Neuer com a minha camisa! Essas imagens correram o mundo!”, celebrou Damião.

De fato, o gesto repercutiu bastante. Neuer precisou até explicar em uma entrevista para o jornal A Tarde: “Sei que o Bahia é um time de uma torcida muito grande, apaixonada. É o mais popular do Estado. E ainda tem um hino bem empolgante. Desde que soube que ficaríamos aqui, quis conhecer um pouco mais do clube. Já gostava por causa do Dante”. Tamanho entrosamento – mais tarde, Podolski e Schweinsteiger também se promoveram com camisas do Flamengo – foi capaz de comover até parte da torcida do Vitória residente em Santa Cruz Cabrália. “Para ser sincero, algumas pessoas da cidade estavam torcendo mais para a Alemanha do que pelo Brasil na Copa do Mundo”, admitiu Damião.

Mas torcida não entra em campo – a não ser nos treinos abertos da Alemanha. Em 8 de julho de 2014, o Mineirão recebeu quase 60.000 torcedores da Seleção Brasileira, três vezes mais gente do que a população de Santa Cruz Cabrália. Nada adiantou. De Fortaleza, onde havia acompanhado no Castelão a vitória do Brasil sobre a Colômbia nas quartas de final, Damião viu com um grupo de amigos o time defendido por Dante ser humilhado com uma derrota por 7 a 1 em casa. “Quando voltei para a minha cidade, não encontrei abatimento. A vida seguiu normalmente, ao contrário do que aconteceu em outros lugares do País. Todo o mundo aqui já pensava só no título da Alemanha”, rememorou.

E, para quem acha que a Seleção Brasileira se comportou como um time de garotos contra os alemães, Damião relembrou um tropeço dos campeões do mundo diante de uma equipe ainda mais imatura do que a de Luiz Felipe Scolari. “Veja que diferença para o Brasil, que se manteve longe do povo. A Alemanha visitou uma escola pública da nossa cidade e distribuiu presentes, jogou bola. O pessoal diz que os únicos que venceram os alemães foram os meninos do colégio da vila de Santo André. O garoto que marcou o gol está orgulhoso até hoje”, sorriu.

Na decisão do Mundial, a Argentina esteve próxima de repetir o feito dos estudantes baianos, porém acabou castigada pelo gol de Mario Gotze na prorrogação. “Antes desse jogo, os alemães vieram se despedir dos moradores da nossa comunidade. Atravessaram a balsa e deixaram tantas coisas com a multidão que quase saíram pelados. Foi muito emocionante. Depois, fizemos uma grande festa entre nós para comemorar o título. Dá até saudades”, reconheceu Damião, confiando que o seu sentimento seja recíproco. “No Maracanã, os alemães repetiram a dança que aprenderam com os nossos índios. É o canto de quem vai para a guerra, algo muito forte na cultura indígena, assim como as pinturas que fizeram no rosto. Funcionou bem, não?”, perguntou.

Hoje, o torcedor que deu o uniforme do Bahia para Manuel Neuer guarda com carinho a camisa da Alemanha que ganhou em troca. Está enquadrada em sua casa, com as manchas do treinamento de um ano atrás preservadas e algum resquício de grama do campo da vila de Santo André. Damião brincava que aceitaria vender a recordação para custear o seu casamento, marcado para 2016. E não hesitava na hora de imaginar um lugar ideal para a lua de mel.

Com as manchas do treino de um ano atrás preservadas, camisa que Damião ganhou de Neuer foi parar em um quadro
Com as manchas do treino preservadas, camisa que Damião ganhou de Neuer foi enquadrada (foto: acervo pessoal)

“Conhecer a Alemanha passou a ser um sonho. Quem sabe um dia eu possa assistir a um jogo do Bayern de Munique lá? Virei torcedor, também por causa do Dante. Sou Bayern até quando jogo videogame”, avisou o tricolor, que encheria a sua bagagem de camisas do Bahia para promover novas trocas em solo alemão. “Eles adorariam, assim como o Neuer. Falaram muito do Podolski na Copa do Mundo, mas o Schweinsteiger é um cara ainda mais legal, sempre sorridente. Foi ele quem liderou os outros na dança com os índios.”

Já com a medalha de campeão do mundo no peito, Schweinsteiger havia retribuído a hospitalidade nacional em seu discurso após a vitória diante da Argentina. “Brasileiros? Fala, mermão”, ele cumprimentou, em bom português, quando foi abordado por um grupo de jornalistas no Maracanã. “Sorrimos bastante aqui. Foi um torneio incrível para nós. As pessoas foram muito respeitosas e amigáveis mesmo depois de enfrentarmos o Brasil. Amo esse país, onde todo o mundo é feliz. Não é como a Alemanha. Lá, ficamos tristes às vezes”, comparou o alegre meio-campista.

Em Santa Cruz Cabrália, no entanto, a população se convenceu de que os alemães são tão quentes quanto o clima da região. Damião lembrou que a cidade conta com um grupo de imigrantes do país europeu e incrementou a sua visibilidade turística. “Já tínhamos muitos atrativos aqui, mas agora todo o mundo quer conhecer o local onde a Alemanha ficou na Copa do Mundo”, disse, embora uma visita além dos muros da antiga concentração dos tetracampeões não seja tão acessível como Neuer e os seus companheiros. Transformado em um resort de luxo, o Campo Bahia chegava a ter diárias cobradas em euros que superam os R$ 8 mil no ano seguinte ao Mundial.

Damião colecionou fotografias com os carrascos da Seleção Brasileira, de quem virou grande fã
Damião colecionou fotografias com os carrascos da Seleção Brasileira em 2014 (foto: acervo pessoal)

Em 2015, Damião Dias Pinto esperava que aqueles quartos fossem novamente ocupados por jogadores germânicos em 2016. A seleção olímpica da Alemanha estava classificada para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, que terá partidas de futebol também em Salvador, e cogitava repetir a experiência de sucesso de sua concentração na Copa do Mundo. Para temor de quem já foi goleado por 7 a 1 uma vez. “Rapaz… Do jeito que a Seleção Brasileira está, não sei, não”, advertiu o superintendente de Esporte de Santa Cruz Cabrália, torcedor do Bahia e amigo distante de Neuer. Nas Olimpíadas, porém, deu Brasil, com vitória nos pênaltis sobre os alemães no Maracanã.



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