Pra não dizer que não falei das flores - Gazeta Esportiva
Fernanda Silva
São Paulo
09/23/2018 09:00:29
 

Parecia uma final. Hortência estava ali, representando o Brasil em uma competição mundial. Ela podia sentir o apoio da torcida. A vontade deles de vencer era tão grande quanto a dela. “Sabe quando você está jogando e vê o ginásio lotado e sabe que, pela televisão, as pessoas também estão torcendo? Foi a mesma coisa”, conta a atleta, sobre o sentimento que teve no último título recebido. Ele não foi fruto de um embate em quadra, mas sim das cinco vezes em que a Rainha, aniversariante deste domingo, vestiu o manto verde e amarelo e defendeu a Seleção em Mundiais.

A vitória na Austrália foi um prêmio para a geração de Paula e Hortência (Foto: Acervo/Gazeta Press)

Desde a última terça-feira, Hortência Marcari também ostenta o posto de “Melhor dos Mundiais”, 24 anos depois de sua última participação na competição. A honraria veio de uma escolha popular. Na votação do site da FIBA (Federação Internacional de Basquete), ela foi dona de 85% dos votos. “Aquele público que sempre torceu por mim, que sempre estava ali vibrando, foi importante nesse momento. Eles entraram lá e votaram massivamente”, declara, agradecida, em entrevista exclusiva à Gazeta Esportiva.

Não é para menos. Seu caminho para o trono foi condecorado de vitórias e flores – muitas delas. A começar pelo seu nome, coincidência que se estende para sua terra natal, Potirendaba, no Interior de São Paulo, onde nasceu no dia 23 de outubro de 1959. O termo que nomeia a cidade vem da língua tupi e significa “lugar onde estão as flores”. O acaso final – ou inicial – está na data de seu aniversário, que marca o começo da primavera no hemisfério Sul do planeta.

Com tanta flor logo de cara, a trilha de sua carreira não podia ser diferente. Foi na aula de educação física onde tudo começou. Era, ali, o primeiro passo rumo à realeza. Ao migrar do atletismo para os esportes coletivos e entregar uma bola de basquete nas mãos da já não tão pequena Hortência, o professor do Colégio Estadual de Vila Santa Maria, em São Caetano do Sul, no ABC Paulista, não poderia imaginar que a mesma, um dia, subiria no lugar mais alto de diversos pódios. “Quando me apresentaram a bola de basquete, foi paixão à primeira vista. Eu adorei e comecei a praticar”, lembra. Um dos mais importantes dia de sua carreira, entretanto, veio bem mais tarde, quando ela tinha 35 anos.

O reino das flores

Corria o ano de 1994. A promessa era que, depois daquele Campeonato Mundial, Hortência e “Magic” Paula, dois dos maiores nomes do esporte brasileiro, deixariam as quadras. Àquela altura, no dia 12 de junho, as representantes do Brasil já tinham, sem medir esforços, chegado à uma condição inédita. Depois de bater os Estados Unidos em uma semifinal heroica, era chegada a vez de encarar a fortíssima China, de Zheng Haixia e companhia.

Naquele momento, acreditamos que poderíamos nos sagrar campeãs, mesmo tendo a China, que era um time difícil, à frente

No jogo anterior, apenas três pontos, em um placar de 110 a 107, tiraram as norte-americanas da luta pelo título. Ali, o ginásio do Sydney Entertainment Center, segundo o correspondente da Gazeta Esportiva na Austrália, virou uma passarela do Samba, com “os brasileiros fazendo o maior carnaval”, conforme escreveu Juarez Araújo.

“Geralmente os EUA e a antiga União Soviética eram quem se sagravam campeões mundiais. Até 1994, ou era um ou outro”, recorda a atleta do Interior. “Naquele momento, acreditamos que poderíamos ser campeãs, mesmo tendo a China, que era um time difícil, à frente”.

Eram 4 horas da manhã no Brasil quando as brasileiras entraram em quadra para uma partida emocionante, vencida por elas com o placar em 96 a 87. Naquele ano, quando Hortência e sua trupe subiram no lugar mais alto do pódio da competição global, a experiência já pesava e aquele era o último dos cinco mundiais disputados por ela. “Estávamos mais experientes, e contávamos com a entrada da Janeth, da Alessandra, da Ruth e de jogadoras mais jovens. Nossa equipe encaixou naquele Mundial e a gente conseguiu vencer na minha última tentativa”, destaca Hortência.

Nada mal se despedir da seleção com uma medalha de ouro e estar entre as cinco melhores do mundo

Na competição, foram 27,5 pontos da paulista por jogo – incluindo 32 em cima dos EUA. “Nada mal se despedir da Seleção com uma medalha de ouro e estar entre as cinco melhores do mundo”, confessou a então atleta do Nossa Caixa- Ponte Preta/Campinas à Gazeta Esportiva.

“Ela era fundamental e uma referência. Quando você tem essa referência, as adversárias querem marcá-la, fazendo com que ela faça menos pontos, atue menos do que atua normalmente”, lembra Janeth Arcain, parceira de equipe da aniversariante. Mas a resistência rival não conseguiu pará-la. Tampouco o nascimento seu filho João Victor, em fevereiro de 1996. Ainda tinha mais por vir.

Um jardim inteiro

Era preciso somar mais algumas cestas para se isolar no cargo de maior pontuadora da Seleção. Vieram, então, os Jogos Olímpicos de 1996. Ela desistiu da aposentadoria e, lá, acumulou mais pontos para chegar aos 3.190 em 127 partidas pela Seleção. Com a ala de 1,74m e Magic Paula, “o basquete feminino finalmente ganhou reconhecimento”, defendeu, então, A Gazeta Esportiva.

Os jogos em Atlanta, nos Estados Unidos, foram, de fato, a despedida de Hortência do time nacional. Ali, poucos meses após ter seu primeiro filho, ela conseguiu fechar a conta e conquistar medalhas nos principais eventos da modalidade (já tinha ouros no Pan-Americano de 1991 e no Mundial de 1994). “Esses momentos me marcaram. Eu, sinceramente, não mudaria nada”.

Naquela Olimpíada, a prata valia ouro. Isso porque a Seleção lutou, mas não conseguiu segurar a revanche das norte-americanas na decisão. As donas da casa venceram, mas não tiraram o brilho das representantes do verde e amarelo. A prata, entretanto, esteve longe de ser uma decepção. “Essa medalha é linda”, brincou, na época, a estrela da disputa.

“Ainda fazem da flor seu mais forte refrão”

“A Hortência foi uma atleta completa. Ela conseguia ter uma ótima visão de jogo, sem contar a finalização, que era o ponto fundamental e forte dela”, destaca Janeth, parceira de Seleção da Rainha, que também não poupou o voto para eleger a brasileira como Melhor dos Mundiais.

“Ela foi minha ídola para jogar basquete”, afirma, recordando do Mundial de 1983, em solo brasileiro, que acompanhou nas arquibancadas. “Ela sempre foi uma jogadora muito exigente, uma atleta que sempre cobrava muito das suas companheiras para que cada uma desempenhasse o máximo da sua performance dentro da sua posição e da quadra”, lembra Janeth.

Com Hortência, Janeth defendeu a Seleção em competições mundo afora (Foto: Acervo/Gazeta Press)

Para Hortência, entrar em quadra era uma grande responsabilidade, que não permitia erros. “Eu pensava em realizar aquilo que eu sabia, fazer o que eu podia fazer e, se eu conseguisse isso durante a partida, independente do resultado, para mim, já era motivo de muita alegria”, destaca a Melhor dos Mundiais. “Não gosto de perder. O sentimento, o gosto amargo da derrota para mim é muito ruim. É um sentimento que eu não gosto de sentir, então, quando eu entro para fazer algo, eu gosto de fazer muito bem feito”. Afinal, já dizia o poeta que falou das flores: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.