Passando por cima - Gazeta Esportiva
Fernanda Silva
São Paulo
05/08/2018 09:00:13
 

Foram precisos quase 20 anos para que Diego Hypólito conseguisse falar. Os traumas do início da carreira o seguiram como fantasmas e quase o impediram de viver uma vida tranquila. Isso porque o atleta, nos primeiros anos dentro da ginástica, sofreu humilhações por parte de veteranos na modalidade. “Era um trote”, explica, em entrevista exclusiva à Gazeta Esportiva. Na época, Diego nunca falou sobre com seus pais e a questão ai além de simplesmente “abrir o jogo”. “Minha família já tinha se abdicado de tanta coisa para estar no Rio de Janeiro, a gente já tinha uma condição financeira tão pobre, que eu não queria passar mais um problema para eles”, lembra o paulista.

Ele se recorda, com a voz cabisbaixa, do mais traumatizante dos episódios: o caixão da morte. “Era uma caixa de plinto. Exatamente o tamanho de um caixão. Ela era colocada em cima da gente e os outros sentavam em cima dela”, relembra. “Eu tinha desespero de entrar nisso”. Ainda hoje, as lembranças ecoam na vida de Hypólito. “Odeio ficar em lugar fechado, me sinto muito mal, tenho falta de ar. Tive que fazer tratamento com psiquiatra para me recuperar disso. Venho, na realidade, me recuperando só agora”, continua.

Apesar da dor, Diego resolveu falar sobre o assunto que, por muito, tempo o calou. Como inspiração para outros tantos atletas, sabe que pode também servir como incentivador para que mais histórias sejam contadas — e não sejam repetidas. A iniciativa de relatar o que viveu veio após assistir uma reportagem em que companheiros da modalidade acusavam o ex-técnico da Seleção Brasileira, Fernando de Carvalho Lopes, de ter abusado deles. “As autoridades têm que tomar as posições cabíveis para proteger todas as crianças”, ressaltou o atleta.

Confira a entrevista completa:

Como você está se sentindo em relação a tudo o que aconteceu na ginástica nos últimos dias?

Agora eu já estou mais tranquilo, foi um desabafo que eu fiz que me fez bem. Momentaneamente, me fez mal. No dia, fiquei um pouco doente, na realidade, ainda não estou 100%, mas pelo menos isso está aliviado. Acho que fiz a coisa certa de falar para ajudar outras pessoas a se recuperarem e também para que as autoridades tomem as providências, principalmente relacionado à questão que aconteceu com vários casos e com o Fernando, para que isso não venha a acontecer nunca mais.

De todas histórias e traumas que te marcaram na ginastica, qual mais faz parte da sua vida hoje?

A questão do caixão morte. Cheguei num nível de ter medo de entrar em túnel, porque me sentia fechado e era escuro, similar ao que era dentro da caixa. Isso realmente é uma coisa que eu precisei fazer tratamento e ainda vem sendo acompanhado para que isso se acabe 100%. Melhorou muito. São três meses que eu faço tratamento relacionados a isso, e esse remédio me ajudou muito a tirar de mim isso.

Como era o caixão da morte?

Era uma caixa de plinto, igual a um caixão. Exatamente o tamanho de um caixão. Colocava uma caixa em cima da gente e sentavam em cima da caixa. Eu tinha em torno de 10, 12 anos. A gente nunca queria entrar nisso. Eu tinha desespero de entrar nisso.

Até hoje, odeio ficar em lugar fechado, me sinto muito mal, tenho falta de ar. Tive que fazer tratamento com psiquiatra para me recuperar. Venho na realidade me recuperando só agora.

Você sente que isso ainda está presente na sua vida?

A vida inteira isso vem me assombrando. É algo que eu nunca imaginei que teria coragem de falar. Eu me sinto aliviado por ter libertado esse fantasma que me assombrou durante tantos anos.

Isso era uma tradição? Você chegou a fazer isso alguém?

Era como se fosse um trote. Claro que não. Jamais faria a mesma coisa em alguém. Eu abomino esse tipo de atitude.

Você acha que esse tipo bullying que você sofria pode ser qualificado como um assédio ou abuso?

Eu não sei te dizer. Na verdade eu só expus o que aconteceu na minha vida. Acho que isso era algo que eu realmente não achava engraçado. O pessoal assistia rindo e eu achava aquilo extremamente vergonhoso.

Eu não queria passar mais um problema para minha família e tinha medo também, da reação deles

Porque você acha que vocês demoraram tanto tempo para “abrir o jogo”?

A questão é que eu não tinha condição de falar porque eu não me sentia bem. Depois que eu vi a matéria, eu tive uma revolta muito grande, e aí consegui falar para minha mãe. Se não fosse um trauma, seria mais fácil de falar, mas existe um trauma muito grande sobre isso.

Como sua mãe reagiu quando você contou para ela?

Minha mãe ficou bastante chocada, porque é algo que mexeu com a minha infância e que eu tive traumas a minha vida inteira relacionada a isso.

Você recebia algum tipo de ameaça para não falar o que acontecia?

Minha família já tinha se abdicado de tanta coisa para estar no Rio de Janeiro, a gente já tinha uma condição financeira tão pobre, que eu não queria passar mais um problema para eles. Eu tinha medo também da reação, de como eles iriam lidar com isso. Realmente foi uma questão que eu me sentia oprimido pelas condições que a gente vivia.

E o Fernando nunca fez nada com você, certo? Porque você acha que isso não te aconteceu?

Sim, eu treinei com ele quando eu era mais velho. Os casos são todos com crianças. Mas não faço a menor ideia. Sei que nunca aconteceu comigo e que, para as crianças que aconteceu é um trauma para o resto da vida delas. Então, as autoridades têm que tomar as posições cabíveis. 

Dentro das ginástica, vocês falam sobre isso ou é um tabu?

Eu sou muito mais velho que a galera. Não sou da mesma geração. Acredito que, por eu ter sido espelho para muita gente, acaba que eu não tenho tanto contato relacionado a isso. Nunca tinha ouvido. Na verdade, só quem conviveu comigo dos atletas mais novos foi o Sérgio Sasaki e o Petrix Barbosa.

Conivência é abuso?

Acho que sim. Quando a gente sabe de algo de uma gravidade dessa, a gente tem que contar, é nosso dever proteger as pessoas.

O que você espera daqui pra frente?

Espero que isso abra os olhos das autoridades e dos próprios pais. Que mude o perfil de alguns treinadores, porque isso não são todos. Não dá para a gente colocar todo mundo no mesmo saco, falar que todo mundo faz a mesma coisa, porque não é verdade. Espero que mude a cabeça dos treinadores, para que eles mudem como pessoa. O mundo muda nas nossas atitudes.