O peso da saudade - Gazeta Esportiva
Bruno Ceccon
São Paulo
06/27/2016 10:00:18
 

Justo Manuel Navarro Despaigne era um garoto na época em que Fidel Castro, Che Guevara e Camilo Cienfuegos tomaram o poder. Nascido em Santiago de Cuba, um dos polos da revolução de 1959, ele teve a vida diretamente influenciada pela política estatal de investimento maciço no esporte. Atualmente, contratado pela Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt), sofre com a saudade da família enquanto tenta transmitir seu conhecimento em arremessos e lançamentos no país sede das Olimpíadas.

Em situação econômica delicada desde que ficou sem o respaldo do bloco socialista, a ilha caribenha intensificou a exportação de know-how esportivo. Por meio da “Cubadeportes”, uma das incontáveis instâncias do governo local, os países interessados podem contratar treinadores nativos. Justo Navarro, ex-técnico de Yumileidi Cumbá, campeã olímpica no arremesso de peso em Atenas 2004, já atuou na Venezuela e, desde 2010, está no Brasil.

O cubano faz parte de um contingente de 49 técnicos estrangeiros contratados pelo Comitê Olímpico do Brasil (COB) para tentar colocar o país-sede no top 10 do quadro de medalhas dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro 2016. Este é o sétimo capítulo da série Made for Brasil, publicada às segundas-feiras, em que a Gazeta Esportiva apresenta perfis destes profissionais.

Na tentativa de desenvolver os arremessos e lançamentos, a CBAt contratou um grupo de quatro técnicos cubanos, um para cada disciplina (martelo, disco, dardo e peso). Justo Navarro, coordenador da equipe radicada na cidade mineira de Uberlândia, é o único que permanece no Brasil. Responsável por treinar Darlan Romani e Geisa Arcanjo, sétima colocada nas Olimpíadas 2012 no arremesso de peso, feito inédito para o País, ele passou a viver em São Caetano em 2013, perto do CT da BM&F.

“Nas Olimpíadas de 2016, os arremessos e lançamentos brasileiros vão ter a melhor atuação de sua história. O país possui talentos, começou um trabalho mais sério em 2010 e já se viram os resultados. No início do desenvolvimento de uma modalidade, é importante concentrar os principais atletas no mesmo local, porque assim é possível aproveitar melhor a capacidade dos treinadores”, receitou o cubano, que se recusou a dar entrevista sentado. “Técnico de atletismo tem que falar de pé”, pontuou, sério.

Como técnico de atletismo, Justo Navarro teve a oportunidade de conhecer diferentes países ao longo da carreira, possibilidade inexistente para a maioria da população cubana. Na sociedade da ilha, os profissionais que frequentam o exterior, melhor remunerados, são vistos de maneira especial. Consciente de seu privilégio, o treinador de arremessos e lançamentos procurou aproveitar o contato com realidades diversas.

“Do ponto de vista material, você desfruta de uma posição um pouco diferenciada. Tem certos privilégios, é verdade. Culturalmente, pude conhecer o mundo inteiro e gente de todo tipo. Vi a realidade de vários países e sistemas. Percebi que em todo lugar há pobreza e problemas de saúde pública. Isso me fez gostar mais do meu sistema. Digo isso com toda franqueza, porque vi as realidades que existem no mundo e nem todas são muito bonitas”, explicou.

Insatisfeitos com o sistema cubano, vigente desde que os irmãos Castro tomaram o poder em 1959, muitos atletas aproveitaram eventos como Olimpíadas e Jogos Pan-Americanos para desertar, enfraquecendo a ilha que outrora rivalizou com as grandes potências. Esperançoso na possibilidade de que a reaproximação com os Estados Unidos contribua para reerguer o esporte local, o técnico fala com orgulho de seus encontros com Fidel Castro.

Sétima em Londres, Geisa Arcanjo foi acolhida por cubano ao retomar a carreira (Foto: Sergio Barzaghi/Gazeta Press)
Sétima em Londres 2012, Geisa Arcanjo foi acolhida pelo cubano ao retomar a carreira (Foto: Sergio Barzaghi/Gazeta Press)

“Claro, evidentemente! Como não?”, disse Navarro quando questionado se já teve a chance de apertar a mão do líder. “O comandante sempre foi e ainda é uma pessoa apaixonada por esporte. A cada vez que uma delegação retornava a Cuba, ele recebia todos os membros. Uma das maiores coisas que podem acontecer a um cubano que gosta de sua revolução é ter a oportunidade de cumprimentar o Fidel”, completou o treinador.

Aos 65 anos de idade, Justo Navarro ainda tem certa dificuldade para falar português, mas conseguiu se adaptar ao Brasil sem maiores dificuldades. Morador das imediações do CT da BM&F, vai a pé até o local de trabalho e passa a maior parte do tempo livre em seu apartamento vendo televisão, principalmente programas noticiosos e esportivos. “Falam excessivamente de futebol”, observou o cubano que, diferentemente de milhões de seus compatriotas, não gosta das novelas brasileiras.

Para o técnico, o maior desafio da vida no exterior é a saudade da família. Por seu contrato de trabalho, Navarro é obrigado a passar 11 meses no Brasil e apenas um em Cuba. As rígidas normas migratórias da ilha praticamente impedem seus parentes de visitá-lo. Longe de casa, o técnico se comunica por telefone e e-mail, ainda incipientes no país caribenho. Os longos períodos de solidão, por sinal, fazem o profissional estudar a possibilidade de retornar à pátria definitivamente após as Olimpíadas de 2016.

“Em termos profissionais, foi fácil de me adaptar. O idioma, os atletas aprenderam bastante rápido. Na alimentação e no clima, quase não há diferença. Mas do ponto de vista pessoal, é complicado, porque vivemos aqui sem a família. É muito duro. Tenho esposa, filhos e netos, com os quais passo apenas um mês por ano”, disse Navarro, com contrato até 2016. “Gostaria de continuar, mas, por outro lado, já tenho uma certa idade e também penso em me reaproximar do meu país”, explicou.

Afastado da família, o técnico desenvolveu uma relação afetuosa com seus atletas. “É um cara muito centrado, sério. Mas tem seus momentos de descontração também. Somos muito amigos. É quase uma relação de pai e filho, porque conversamos tanto sobre a vida esportiva quanto sobre a vida particular. Ele dá conselhos, como um pai mesmo. A gente vai na casa dele e vice-versa. Se no final de semana tem um aniversário, por exemplo, nós sempre convidamos”, contou Darlan Romani.

Darlan Romani considera técnico Justo Manuel Navarro Despaigne como um pai (Foto: Sergio Barzaghi)
Darlan Romani considera técnico Justo Manuel Navarro Despaigne como um pai (Foto: Sergio Barzaghi)

Para Geisa Arcanjo, com uma trajetória turbulenta, o experiente técnico cubano foi ainda mais importante. Campeã mundial juvenil em 2010, ela perdeu o título por doping. De volta após um ano de suspensão, se classificou para os Jogos de Londres 2012 e ficou na sétima posição. Em 2014, chegou a abandonar a carreira e trabalhou como atendente de telemarketing. Assim que decidiu retomar o esporte, acabou acolhida pelo antigo treinador.

“Quando fui embora, o Justo quis saber os motivos, mas não questionou minha decisão. No momento em que mandei e-mail falando que queria voltar, disse que as portas sempre estiveram abertas. Ficou do meu lado o tempo todo e me deu mais força para tentar disputar as Olimpíadas pela segunda vez”, contou Geisa. “Só de olhar, ele já sabe como a gente está em um determinado dia. É incrível. Sempre tive o sonho de treinar com um cubano. É como se fosse parte da minha família”, completou.

Atualmente, os cubanos são maioria na legião de técnicos estrangeiros contratada pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB) antes dos Jogos 2016 e há no País atletas da ilha bem-sucedidos em diferentes modalidades, como vôlei e basquete. Praticamente sem contato com os compatriotas, Justo Navarro tem na música outro de seus passatempos. Fã de Los Van Van, icônico grupo de salsa fundado por Juan Formell no final dos anos 1960, ele conheceu no Brasil o som do Exaltasamba.

Os estudos também servem para entreter Navarro, doutorado pelo Instituto de Cultura Física Manuel Fajardo. Como parte do programa do curso de educação física, ele chegou a praticar decatlo na juventude, mas seu interesse sempre foi se aprimorar nos arremessos e lançamentos. Dentro da política estatal de investimento no esporte, marcada pelo intercâmbio com os países socialistas, aprendeu com técnicos alemães e soviéticos. Em 1971, passou a treinar a seleção juvenil cubana.

No contexto da Guerra Fria, o desempenho nos grandes eventos esportivos ganhava ainda mais relevância e Cuba, a despeito da população diminuta, chegou a rivalizar com as grandes potências. Nos Jogos Olímpicos de Barcelona 1992, por exemplo, mesmo após o colapso do bloco socialista, a ilha conquistou 14 medalhas de ouro, ficando atrás apenas de Estados Unidos, Alemanha e China, além dos atletas da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), formada pelos países da extinta União Soviética.

Em tempos de polarização política, as referências a Cuba, usada como exemplo negativo, aumentaram. Justo Navarro, conhecedor de diferentes realidades, considera a ilha uma nação única. “Não me agrada que comparem meu país. Por tudo que viveu, é sui generis e ninguém nunca vai ser igual”, observou. Preferências partidárias à parte, do ponto de vista esportivo, para o Brasil cairia muito bem ser um pouco Cuba nos Jogos Olímpicos 2016.



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