Festa para Ceni inspira Cicinho por retorno e novas histórias no Morumbi - Gazeta Esportiva
Ana Carolina da Silva*
São Paulo, SP
12/18/2015 09:00:54
 
Atualmente, CIcinho defende o Sivasspor, da Turquia, e sonha com uma volta ao Tricolor (foto: divulgação/Sivasspor)
Atualmente, Cicinho defende o Sivasspor, da Turquia, e sonha com uma volta ao Tricolor (foto: divulgação/Sivasspor)

Campeão mundial pelo São Paulo no dia 18 de dezembro de 2005, há exatos 10 anos, Cicinho não estava no Morumbi para a despedida do capitão Rogério Ceni na última sexta-feira. Em entrevista à Gazeta Esportiva, o lateral direito do Sivasspor, da Turquia, se disse apaixonado pelo clube e garantiu que não lhe faltou vontade de comparecer à festa que emocionou a torcida tricolor.

Mesmo à distância, o jogador testemunhou a ovação do público à simples menção de seu nome, famoso não apenas pelas conquistas do Mundial, da Libertadores e do Campeonato Paulista, mas também pelo estilo voluntarioso apresentado naquele ano. Uma relação de respeito construída desde os gols e assistências até os arremessos laterais comemorados com vigor. “Ouvir o Morumbi gritando o seu nome é incrível”, disse.

Brincalhão no CT, o lateral divertia o elenco (foto: Fernando Pilatos/Gazeta Press)

A década vivida após a conquista do Mundial não ofuscou as memórias escritas em Yokohama, no Japão. Ainda nítida na retina durante a entrevista, a mais curiosa delas envolve uma impressionante quantidade de chocolate ingerida na companhia de Josué em plena véspera da final contra o Liverpool. Decisão perigosa, mas açucarada: gol de Mineiro, vitória por 1 a 0 diante dos ingleses e o alcance da “perfeição” pedida por Rogério Ceni.

Como o próprio capitão tratou de dizer na preleção, os “baixinhos” de branco atropelaram os “gigantes” de vermelho. Desempenho digno de um generoso presente do agora falecido Juvenal Juvêncio, então diretor de futebol. Entretanto, os cavalos prometidos a Cicinho ficaram apenas na lembrança melancólica do lateral, que fala com carinho sobre o saudoso ex-dirigente. “Mostra como o nosso relacionamento era bom e tranquilo. O doutor Juvenal foi uma boa pessoa e um profissional muito competente”, elogiou.

Porém, nem tudo foi festa na carreira de Cicinho. Sua breve segunda passagem pelo Tricolor, em 2010, ficou marcada por atuações abaixo da média decorrentes de um quadro de alcoolismo e depressão. Em virtude da dependência, adquirida com a ascensão meteórica para o Real Madrid, ainda em 2006, o atleta não conseguiu corresponder às expectativas são-paulinas.

Cinco anos depois do frustrante retorno, o jogador volta a projetar o desejo de encerrar a carreira no Morumbi. O desempenho de 2005 dificilmente vai se repetir, mas Cicinho promete demonstrar todo o comprometimento que faltou em 2010. “Melhor do que o de 2010? Sem sombra de dúvida. Aquele foi um período muito difícil da minha vida”, destacou.

Para que o sonho se concretize, basta o São Paulo querer: o lateral garante que não criará obstáculos financeiros para uma eventual proposta. “Hoje eu não jogo por dinheiro. Depois de tudo o que eu passei, Deus me proporcionou voltar a ter o prazer de jogar futebol, que é o que eu amo. Quando eu voltei em 2010, por empréstimo da Roma, já abri mão de metade do salário”, lembrou.

Antes de escrever o próprio futuro, porém, Cicinho curte a vida tranquila na pequena e fria cidade de Sivas. Pouco adepto ao kebab, tradicional iguaria turca, o atleta prefere curtir a família e as frequentes viagens para Istambul e Roma. Aos 35 anos, sem medo e muito desejoso por novas histórias no Morumbi, Cicinho ainda revelou a postura cautelosa de Diego Lugano diante da campanha pelo retorno do uruguaio.

Confira, na íntegra, a entrevista exclusiva com o lateral Cicinho:

Gazeta Esportiva: Cicinho, antes de qualquer coisa, acho que o torcedor são-paulino quer saber com detalhes: por que você não estava na festa de despedida do Rogério Ceni?

Cicinho: Estava em contato com o Rogério direto, ele sabia, tive jogo no domingo e não teria como estar aí. Eles [Sivasspor] ainda conversaram comigo, disseram que eu era um jogador importante e que fica complicado justamente por isso. O que vamos falar para a imprensa, para os outros jogadores? A torcida não gostaria de ver um jogador importante do time atuando em uma partida festiva antes de um compromisso do time. O Rogério entendeu bem.

Gazeta Esportiva: O seu desejo era de estar no Morumbi, como o próprio Rogério disse?

Cicinho: Era sim, sem dúvida. O São Paulo enviou uma carta para o clube oficializando o pedido. A princípio, a possibilidade ainda existia, só que aqui na Turquia as datas dos jogos são definidas com pouca antecedência, cerca de duas semanas antes da rodada. Depois, quando saiu a data, acabou ficando difícil. Se o jogo do Sivasspor fosse na segunda-feira, até daria. Mas não foi o caso.

Gazeta Esportiva: Esse desejo só valia para aquele jogo de despedida, ou também se estende para o sonho de um retorno?

Cicinho: Olha, se eu tivesse ido, tudo cooperava para o reencontro com a torcida. Sou apaixonado pelo São Paulo. Se estivesse lá entrando em campo, com a torcida gritando… Mexeria com o meu coração, é difícil não balançar com isso.

Gazeta Esportiva: Você chegou a ver como a torcida gritou o seu nome?

Cicinho: Não assisti a transmissão ao vivo, mas os meus assessores me mostraram o vídeo depois. Foi emocionante. Os próprios torcedores se comunicaram comigo nas minhas páginas, mandaram mensagens, mostraram os vídeos que tinham gravado. Mostrei para todo mundo, né? Para a esposa, para os colegas, amigos… Ouvir o Morumbi gritando o seu nome é incrível, passa aquela retrospectiva de tudo o que eu vivi com a camisa do São Paulo.

No auge sua carreira, Cicinho foi convocado para a Seleção Brasileira (foto: Marcelo Ferrelli/Gazeta Press)

Gazeta Esportiva: Se o São Paulo te procurasse hoje, você aceitaria?

Cicinho: Nossa, mas sem sombra de dúvida. Sério mesmo, sem pensar duas vezes. Tenho um carinho muito grande pela torcida do São Paulo e por todos no clube. O pessoal que trabalha no CT no dia a dia com o elenco, todos na fisioterapia. É um clube que me proporcionou muita coisa na vida, sou muito grato.

Gazeta Esportiva: Mesmo se o salário fosse inferior ao que você ganha na Turquia?

Cicinho: A questão de dinheiro não me move, não. Hoje eu não jogo por dinheiro. Depois de tudo o que eu passei, Deus me proporcionou voltar a ter o prazer de jogar futebol, que é o que eu amo. Quando eu voltei em 2010, por empréstimo da Roma, já abri mão de metade do salário. Eu não estou na Turquia pelo lado financeiro. Se eu for colocar na balança o que me pagam aqui, alguns clubes do futebol brasileiro me ofereceram a mesma coisa. Ou até mais. Eu não transformaria o salário em um problema.

Gazeta Esportiva: E daria para jogar em alto nível no São Paulo? O Cicinho de hoje é melhor que o de 2010?

Cicinho: Melhor do que o de 2010? Sem sombra de dúvida. Aquele foi um período muito difícil da minha vida. Hoje estou bem, estou indo para o meu terceiro ano na Turquia. Sou líder de assistências, um dos melhores laterais da Turquia. Só de olhar os números já dá para ver que tenho jogado com bastante frequência.

Gazeta Esportiva: Os problemas com o alcoolismo e a depressão ficaram no passado de vez?

Cicinho: Sim, hoje as pessoas que me conhecem sabem da mudança. Aquilo foi fruto de empolgação, né? Eu comecei a conquistar as coisas na vida e me iludi como se já tivesse realizado todos os sonhos, como se só precisasse curtir. Deus me levantou nessa situação para falar com outros garotos. Depois que abri o jogo sobre os problemas que vivi, muitos outros também puderam falar. É muito gratificante pensar que não só dei a volta por cima, mas também o pontapé inicial para que outros também reencontrassem seus caminhos.

Gazeta Esportiva: A data de 18 de dezembro diz alguma coisa pra você?

Cicinho: Aah, não tem como esquecer, né? Foi o dia da nossa conquista do Mundial, .

Gazeta Esportiva: Completando 10 anos agora. Que tipo de sentimento passa por você com essa lembrança?

Cicinho: É de felicidade. Imagina só fazer parte da história de um clube como o São Paulo! É claro que é um clube cheio de conquistas no Paulista, Brasileiro… Mas a Libertadores e o Mundial têm um sabor especial. Por onde você anda, dá para ver a foto do título de 2005. A própria despedida do Rogério Ceni deu um destaque maior para o Mundial. É muito importante e especial para todos nós.

Gazeta Esportiva: Existe algum momento específico daqueles dias em Yokohama que você gostaria de destacar?

Cicinho: Olha, teve uma situação de nervosismo. Fomos assistir ao jogo do Liverpool na semifinal e eles ganharam por 3 a 0 [do Deportivo Saprissa]. A gente se assustou, né? E aí chegamos no hotel depois para jantar. Estávamos eu, Rogério, Fabão, Lugano, Mineiro, Josué, Aloísio Chulapa e Júnior. O Rogério falou: “amanhã temos que ser perfeitos. Eles são muito altos, são gigantes. E nós temos Cicinho, Mineiro, Josué… Somos baixos, eles são altos e precisamos ser perfeitos. Vocês não tem noção do que vai ser se a gente for campeão”. E até que serviu, né? Porque se você for ver, nós ganhamos muitas bolas deles também pelo alto. A vontade de ganhar era tanta que deu certo, mas não significa que foi fácil.

Na noite antes do jogo, o Josué acordou e viu que eu também não conseguia dormir. Aí para controlar o nervosismo, comemos uma caixa de chocolate inteirinha. Se eu não me engano, eram 2h da madrugada [no horário do Japão – o jogo foi às 19h20 por lá]. Nem adiantava tentar passar o tempo na internet… Todo site que a gente abria só falava na dificuldade enorme que a gente teria, que o Liverpool era amplo favorito. O São Paulo era zebra. Então nem mesmo o chocolate deu muito jeito para mim, o único jeito de resolver o nervosismo seria se o jogo fosse às 2h30 da madrugada. Acordar, entrar pilhado e já rasgar tudo. Ganhar o título foi a coisa mais marcante da minha vida.

Gazeta Esportiva: Será que nem a ida para o badalado Real Madrid se compara?

Cicinho: Rapaz, nem a minha chegada ao Real Madrid se compara a isso. Nem os outros títulos que conquistei, e imagine só que fui campeão da Copa das Confederações. Não dá para comparar com o Mundial. Talvez a única coisa que se compare seja o segundo jogo da final da Libertadores [com goleada por 4 a 0 sobre o Atlético-PR no Morumbi], que nós chegamos no ônibus com aquela festa inesquecível da torcida. Aquilo arrepia até a alma.

As efusivas comemorações de Cicinho ficaram famosas (foto: Marcelo Ferrelli/Gazeta Press)
As efusivas comemorações de Cicinho ficaram famosas com a torcida são-paulina (foto: Marcelo Ferrelli/Gazeta Press)

Gazeta Esportiva: Como era o seu relacionamento com o Juvenal Juvêncio [falecido no dia 9 de dezembro]?

Cicinho: Sempre tive um excelente relacionamento com o doutor Juvenal [na ocasião, diretor de futebol a serviço do então presidente Marcelo Portugal Gouvêa]. Ele era famoso por dar algum bicho nas vitórias, né. Em 2005 mesmo, antes do Mundial, ele disse que me daria o que quisesse se a gente fosse campeão. Como ele tinha os cavalos dele, eu aproveitei e pedi dois (risos).

Gazeta Esportiva: Dois cavalos? E foi buscá-los depois do título?

Cicinho: Acabei nem indo, até porque pouco depois eu fui apresentado no Real Madrid. Mas só o fato de que eu tive liberdade de fazer esse pedido, e que ele se divertiu e aceitou, já mostra como o nosso relacionamento era bom e tranquilo. O doutor Juvenal foi uma boa pessoa e um profissional muito competente. Mas olha, o Souza e o Fabão ganharam cavalos depois (risos). Ficou um para cada. Se não me engano, eles conseguiram em um leilão, então nem tiveram que buscar com o doutor Juvenal.

Gazeta Esportiva: Tem acompanhado o time de longe? O que acha dos atuais laterais do São Paulo?

Cicinho: Sim, sempre acompanho. É complicado e até antiético falar disso. O São Paulo sempre teve grandes laterais, então qualquer recém-chegado acaba sofrendo um pouco quando começam a comparar. Comparações são ruins. Não adianta comparar o Cicinho com o Cafu. Se eu não tivesse ganhado os títulos que ganhei, talvez não fosse tão bem visto. É difícil chegar a um clube como o São Paulo e ter que viver à sombra de caras como o Cafu, o Belletti. Até o próprio Ilsinho, mais recentemente. Tenho certeza de que são profissionais dedicados no dia a dia e que só precisam de tempo, paciência e oportunidade.

Gazeta Esportiva: E quanto ao Lugano, que você conhece bem? Acha que aquela festa toda vai fazer com que ele volte?

Cicinho: Eu conversei com o Lugano antes dele ir para o Brasil, para o jogo de despedida do Rogério. Ele disse: “o problema de voltar para o Brasil é que eles esperam o Lugano de antigamente, o Cicinho de antigamente. O futebol está diferente hoje, ainda mais no Brasil. Não existe mais tanta paciência quanto antigamente, a gente pode se queimar mesmo depois de tudo. Não sei se estou em condições”. Eu até brinquei com ele que eu estou, sim [risos]. Mas é importante ressaltar isso. É claro que ele deve ter se movido com a reação da torcida no Morumbi, mas tem que tomar cuidado de não manchar a história. Posso falar por mim quando digo que é complicado para a gente se desvincular desses desejos, estamos sempre recebendo mensagens dos torcedores nas redes sociais.

Gazeta Esportiva: Como é a vida por aí, Cicinho?

Cicinho: Olha, Sivas não é uma cidade turística, então são poucas opções. Aqui faz muito frio, agora mesmo estou em casa. Para você ter ideia, nós terminamos o treino de hoje com seis graus negativos a uma e meia da tarde. Agora já deve estar em dez negativos. Além disso tudo, hoje eu levo uma vida tranquila. Vou para Istambul a passeio nas minhas folgas, às vezes a gente viaja para Roma também.

Gazeta Esportiva: Você se vira bem com o idioma?

Cicinho: Não, não, eu tenho um tradutor turco que fala português e me ajuda no dia a dia. Se dependesse só de mim, seria difícil (risos). Quando estou sozinho, ainda arrisco o inglês ou o italiano, mas é complicado.

Gazeta Esportiva: E a alimentação? Tem comido bastante kebab por aí?

Cicinho: Não sou muito fã de kebab, não. Mas a alimentação de atleta é meio universal, né. Então a gente acaba comendo bastante purê, carne, massas. Talvez o único problema seja a quantidade de pimenta que eles colocam na comida, mas isso é fácil de resolver. É só pedir para não colocar, ou tirar o pimentão na hora mesmo.

Gazeta Esportiva: Sente falta de casa?

Cicinho: A questão da comida não é um problema. Nós trouxemos pessoas para cozinhar para a gente, para trazer um pouco da familiaridade de casa. Sempre que vou ao Brasil, trago alguma coisa nossa para cá. Eu gosto muito de macarrão.

Em sua chegada ao São Paulo, em 2004, Cicinho dirigia um fusca (foto: Djalma Vassão/Gazeta Press)
Em sua humilde chegada ao São Paulo, em 2004, Cicinho dirigia um fusca (foto: Djalma Vassão/Gazeta Press)

Gazeta Esportiva: Você já tem uma estimativa de quando encerrar a carreira?

Cicinho: Não tenho ideia. Conversei com o presidente e perguntaram se estou feliz aqui, porque eles creem que eu possa jogar mais dois anos em alto nível. Estão me valorizando muito e eu não sinto dores, estou muito bem fisicamente. Estou sempre disputando os jogos pelo Sivasspor.

Gazeta Esportiva: Será que o Morumbi é um bom palco pra isso?

Cicinho: O Rogério é único, não dá para igualar aquela festa toda. Mas por que não? Quem sabe. Sei que construí uma história muito bonita no clube. Se for o caso de voltar, sei que tenho os meus assessores para organizarem alguma coisa. Mas nada como aquela festa toda para o Rogério, o cara é único.

Gazeta Esportiva: Uma última pergunta para te fazer refletir um pouco. Com tudo o que você já conquistou, sofreu e superou na carreira, ainda tem algum medo e algum objetivo?

Cicinho: Medo? Não tenho mais medo, não. Depois de tudo o que eu passei, já superei e derrotei essas coisas. Tenho um prazer enorme de jogar futebol e isso é tudo o que posso pedir. Quanto ao objetivo, eu tenho um desejo do meu coração de voltar a jogar no São Paulo. Mas não é objetivo, eu tomo o cuidado necessário para que o meu coração não me engane.

*especial para a Gazeta Esportiva



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