Sapato de chumbo, corrida de canguru - Gazeta Esportiva
Marcos Guedes*
São Paulo (SP)
03/02/2016 02:42:40
 

A ânsia de contratar Garrincha, no início de 1966, não impediu o Corinthians de tomar alguns cuidados. O jogador já contava 32 anos, não atuava havia alguns meses e tinha problemas no joelho direito. Sem falar no alcoolismo. Por isso, antes mesmo de o técnico Oswaldo Brandão ir ao Rio de Janeiro convencê-lo ou de dirigentes alvinegros acertarem detalhes da proposta, fez a ponte aérea o preparador físico José Teixeira.

“Fiquei um dia inteiro na casa da Elza Soares na Barra, porque queria ver o comportamento dele, saber se sentava direito, se colocava a mão no joelho. Passei o dia inteiro lá e o vi sentando normal, tudo certo. Não percebi qualquer anomalia que pudesse prejudicar o futebol dele”, contou à Gazeta Esportiva o professor de educação física, que mistura memórias puxadas do cérebro com velhas anotações.

As observações de Teixeira se juntaram às radiografias feitas pelo ortopedista João De Vincenzo, que não encontrou nada de anormal. Garrincha, então, assinou seu contrato e ganhou um programa de treinamentos para fortalecer a perna direita e perder peso. Ele desembarcou no Parque São Jorge, segundo o clube, com 78,9 quilos, ao menos sete acima do que era considerado ideal.

Bicampeão mundial chegou ao Parque disposto a recuperar a forma (reprodução/A Gazeta Esportiva)
Bicampeão mundial chegou ao Parque disposto a recuperar a forma (reprodução/A Gazeta Esportiva)

E o Mané apareceu genuinamente disposto a se recuperar. Ainda que sem deixar de beber, algo que a doença não permitia, “empenhou-se com o entusiasmo de um principiante”, como relatou o biógrafo Ruy Castro. Com a Copa do Mundo daquele ano na cabeça, trabalhou duro vestindo camisa de plástico e se submeteu a exercícios pouco convencionais.

“Para Garrincha:
1 – Levantamento de peso duas vezes por dia, 100 vezes por sessão;
2 – Corrida tipo canguru até 6 voltas no campo;
3 – Massagens de sabão e duchas;
4 – Imersão de 10 a 15 minutos.”

Essa lista foi reproduzida por A Gazeta Esportiva em 19 de janeiro, em uma reportagem que acompanhou o esforço do camisa 7 no Hospital Pedro II, no centro de São Paulo, com a supervisão do médico De Vincenzo. Começava, ali, uma rotina cansativa e com uma dose de ridículo para que o craque recobrasse a velha forma.

“O negócio é o seguinte: levantamento de peso, no nosso caso, é uma espécie de sapato de chumbo que será aplicado no pé direito do jogador. Ele, durante os exercícios, irá levantando-se aos poucos, até onde der. Isso será em duas sessões diárias, de manhã e à tarde”, explicou, há 50 anos, José Teixeira.

Mané fez de tudo para ir bem à Copa do Mundo de 1966 (reprodução/A Gazeta Esportiva)
Mané fez de tudo para ir bem à Copa do Mundo de 1966 (reprodução/A Gazeta Esportiva)

João De Vincenzo, na sequência, tratou de esclarecer do que tratava o segundo item da lista. “São corridas de saltos, sem tirar nem pôr. Com os dois pés juntos. Por isso mesmo tem o nome de corrida de canguru. Exercício ótimo para o caso do nosso amigo jogador”, disse o ortopedista, deixando Oswaldo Brandão preocupado.

O técnico tomou uma decisão. “Pode deixar comigo, doutor João. Sei que os exercícios a serem ministrados a Garrincha podem dar gozação dos companheiros, principalmente a corrida do canguru. E justamente é por saber disso tudo que ninguém terá oportunidade de assisti-los, além dos jornalistas. Tanto o levantamento de peso como a corrida serão em horas fora dos treinamentos comuns aos demais jogadores. O Mané vai treinar sozinho, comigo, pela manhã e pela tarde, quando a turma ainda não houver chegado ou já tiver ido embora”, avisou o gaúcho.

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Garrincha ganhou atenção especial do professor José Teixeira (foto: A Gazeta Esportiva)

Assim foi. Garrincha correu, saltitou, levantou chumbo e perdeu peso, dia a dia, atingindo a meta estabelecida. Todos os que acompanharam o processo asseguram o empenho demonstrado pelo bicampeão mundial. Até hoje, brilham os olhos de José Teixeira. “Era um sujeito de quem só tenho coisas boas para falar”, sorriu. “Esse era um fulano que merecia ter terminado no auge.”

Não terminou. Houve algumas boas partidas em preto e branco, mas o Corinthians e a Copa do Mundo acabaram representando a última real tentativa de uma carreira que efetivamente já estava encerrada. Se não rendeu o tri ou o fim do jejum alvinegro, o esforço dos que tentavam ajudar o ponta-direita valeu a gratidão de Elza, que fazia de tudo pelo amado – até passar nos bares perto do Parque São Jorge e pedir que não lhe vendessem bebida.

“Era uma mulher bem justa, completamente apaixonada por ele. Então, o Garrincha não era um marido nem um companheiro, era o ídolo dela. Tudo o que fosse feito para ele era para ela. Quantas vezes fomos jantar eu e a minha senhora no apartamento deles em um sinal de agradecimento, entre aspas, pelo que eu fazia pelo Garrincha”, contou o preparador Teixeira. “A Elza dizia: ‘Traz a Dona Cleide’. É claro que tinha cozinheira, mas jantávamos lá. Era um claro agradecimento.”

*Colaborou Helder Júnior



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