Destino ou desatino - Gazeta Esportiva
Fernanda Silva
São Paulo, SP
01/03/2019 08:00:25
 

Era 29 de agosto de 2004. O forte calor e a baixa umidade em terra grega até poderiam interferir no desempenho de Vanderlei Cordeiro de Lima, mas ele sabia: naquele dia, entraria na história. Só não esperava que os registros seriam como foram. Sua esperança era subir no lugar mais alto do pódio em uma das provas mais tradicionais dos Jogos Olímpicos, a maratona. O cenário não poderia ser melhor e Atenas completaria o ciclo do brasileiro com chave de ouro. Mas, destino ou sina, seu caminho foi impedido por um então padre irlandês. Isso porque, no quilômetro 35 da corrida, Neil Horan, o sacerdote em questão, empurrou o brasileiro e tirou dele a vantagem de 48 segundos que tinha diante de seus rivais. Após o episódio que, em 2019, completa 15 anos, Vanderlei cruzou a linha de chegada na terceira colocação. Na época — e ainda hoje — ele não lamentou. “Eu estava em Atenas e conquistando uma medalha. Ia reclamar do que?”, destacou, em entrevista exclusiva à Gazeta Esportiva. Serviu, por isso, de exemplo de espírito olímpico.

Naquele dia quente em meio à energia dos Jogos de 2004, o objetivo de Vanderlei era chegar no estádio do Paratheniko. Lá, pretendia cruzar linha de chegada com o melhor tempo. O brasileiro conhecia o percurso, seus adversários e seus limites. Sabia que era possível. Além disso, vinha de duas medalhas de ouro em pan-americanos. A primeira foi conquistada em Winnipeg 1999, no Canadá. A segunda veio um ano antes do fatídico evento, em Santo Domingo 2003. Ali, era o desfecho de oito anos de planejamento. “Eu estava muito seguro porque tinha feito uma preparação específica para a prova, naquelas condições”, lembra Vanderlei. 

Jamais poderíamos imaginar que poderia acontecer um fato como aquele

Depois de ter se arriscado e tomado a liderança da disputa no quilômetro 22, Vanderlei descia a Avenida Mesogeion. Não contava, entretanto, que teria sua passagem impedida. Um homem, de trajes típicos irlandeses, o empurrou para fora da pista. “Não tive nem reação de defesa”, recorda. “Por mais que a gente tenha feito um planejamento da corrida, da prova, dos adversários, jamais poderíamos imaginar que poderia acontecer um fato como aquele. É impactante a forma como ele me agrediu”, lamenta.

Neil Horan, o homem que bloqueou a passagem do representante do verde e amarelo, hoje, alega que não tinha a intenção de afetar Vanderlei. Tampouco conhecia o corredor. Saiu de sua casa, no Reino Unido, com o objetivo de anunciar ao mundo que a volta de Cristo estava próxima. Mas, por fim, mudou para sempre a vida do brasileiro. 

A linha de chegada

Fato é que Vanderlei foi ajudado pelo público e retomou seu trajeto. Como resultado, perdeu 20 segundos de seus 48 de vantagem. E aí, foi uma questão de tempo. Em determinado momento, viu seus rivais o ultrapassando. Mas não pensou, jamais, em deixar a prova. “Dentro de uma corrida, na hora em que você está ali, na adrenalina, não dá para pensar em alguma coisa. Em momento algum cogitei desistir”, destaca.

Eu estava em Atenas e conquistando uma medalha. Ia reclamar do que?

Por fim, o brasileiro chegou em terceiro. Ele completou o pódio do italiano Stefano Baldini e do norte-americano Mebrahtom Keflezighi. “Eu sabia que, mesmo diante daquela dificuldade, era possível alcançar um bom resultado”. Não reclamou do bronze. Entrou no estádio ovacionado pelo público. Emocionou a todos, mandando beijos e terminando como um campeão: celebrando.

Mas, se dependesse dele, apesar dos reconhecimentos que vieram posteriormente, aquele 29 de agosto não seria como foi. “Eu preferiria que nada daquilo tivesse acontecido. Você treina e se dedica a vida toda para esperar o grande momento”, conta, sem esconder a tristeza na fala. “E esse momento foi interferido por algo que não tem nada haver com a corrida, mas que acabou impactando e mudando o resultado”.

Pódio do reconhecimento

Vanderlei Cordeiro acredita: nada acontece por acaso. Apesar de não ter conseguido o ouro, ele voltou pra casa sorrindo e, por isso, em 29 de agosto daquele ano, conquistou outra medalha: a Pierre de Coubertin. A honraria não leva em consideração o desempenho técnico do competidor, mas sim a demonstração de Espírito Olímpico durante os Jogos. O destaque, dado pelo Comitê Olímpico Internacional, fez dele o único latino-americano outorgado com a Medalha.

“Talvez, tenha sido daquela forma para eu ter o reconhecimento que eu tenho hoje, principalmente dentro do meu país”, destaca, com otimismo, o atleta. De volta ao Brasil, anos mais tarde, no Rio 2016, mais uma vez, Vanderlei emocionou os brasileiros. Os pé, acostumados a longa distâncias, deram alguns poucos passos na abertura dos Jogos Olímpicos. Das mãos da rainha Hortência, eleita a melhor dos Mundias de basquete, ele recebeu a chama que acendeu a pira olímpica. “Eu jamais esperaria que pudesse passar um um momento desse. A maior glória de um atleta é poder vivenciar isso e ser reconhecido no momento mais importante e esperado do jogos. É um privilégio de poucos”, celebra.

Mais recentemente, na 20ª edição do Prêmio Brasil Olímpico, integrou a primeira turma do Hall da Fama do Comitê Olímpico do Brasil (COB). Na homenagem, esteve ao lado de Torben Grael, da vela, maior medalhista olímpico do Brasil e da dupla Sandra Pires e Jackie Silva, do vôlei de praia, primeiras brasileiras a ganharem ouro nos Jogos. “Isso só mostra que o esporte continua me surpreendendo”, afirma Vanderlei.

Um passo de cada vez

Tudo isso, talvez, seja destino. O próprio atletismo foi. “Eu não escolhi o esporte, o esporte me escolheu”, ressalta Vanderlei. Filho de nordestinos fugidos da seca para o Sul do Brasil, ele conheceu o atletismo incentivado por um professor de educação física. “Peguei carona no esporte para buscar alguma esperança na minha vida”, recorda. As coisas aconteceram como consequência e seu caminho foi transformado.

Hoje, ele ressalta não ter nenhuma frustração em sua carreira e afirma que não faria nada diferente. “Não penso no que deixei de ganhar ou poderia ter ganhado. Não é só uma carreira esportiva, é uma história de vida, de superação em todos os sentidos”.

Não penso no que deixei de ganhar ou poderia ter ganhado. Não é só uma carreira esportiva, é uma história de vida.

Apesar de ter deixado as pistas profissionalmente, Cordeiro ainda vê sua vida vinculada veementemente ao esporte. Hoje, ele faz parte de um programa da Confederação chamado Heróis do Atletismo. Por isso, participa de eventos, corridas de rua e atua em palestras. Ele tem também um projeto social, em Campinas, para retribuir ao esporte tudo o que lhe foi dado. “Saí do esporte, mas ele não saiu de mim”, ressalta.