Samba da Escandinávia - Gazeta Esportiva
André Sender
São Paulo
06/06/2016 10:00:16
 

O impacto de Pelé na história do futebol nacional é óbvio, mas o camisa 10 também ajudou a construir o primeiro título mundial da Seleção Brasileira feminina de handebol. Seus dribles e gols foram responsáveis por encantar o dinamarquês Morten Soubak, que viajou ao País pela primeira vez para conhecer a terra de seu ídolo e agora tentará levar a equipe nacional a uma inédita medalha nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro 2016.

Morten nasceu na pequena aldeia de Fodby, na Dinamarca, mas se considera brasileiro desde que viu Pelé jogando. Não gosta de lembrar da derrota da Seleção para a Itália na Copa de 1982, nem do 7 a 1 para a Alemanha em 2014. Mas se satisfaz ao falar, em português, sobre o trabalho que faz desde 2009 com o time feminino de handebol do Brasil, campeão do mundo em 2013.

Ele integra um contingente de 49 técnicos estrangeiros contratados pelo Comitê Olímpico do Brasil (COB) para tentar colocar o país-sede no top 10 do quadro de medalhas dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro 2016. Este é o quarto capítulo da série Made for Brasil, publicada às segundas-feiras, em que a Gazeta Esportiva apresenta perfis destes profissionais.

O dinamarquês chegou ao País pela primeira vez em 1993 como turista e em Salvador participou das comemorações do título da Seleção na Copa do Mundo de 1994. No ano seguinte, já voltou para trabalhar como técnico de handebol em um time de Osasco e em equipes universitárias graças aos contatos feitos na viagem anterior. Uma passagem rápida, mas que o ajudou a se preparar para se mudar para o País em 2005, desta vez como treinador do time masculino do prestigiado Esporte Clube Pinheiros.

“Em 95 era semiprofissional, mas nunca vou esquecer. Uma experiência gigantesca virar cidadão de outro país, falar outra língua. Foi a primeira vez na vida que fiquei tanto tempo fora da Dinamarca. Pude conhecer e entender os brasileiros e aprender com eles”, recorda-se.

A mudança definitiva de Morten para o Brasil, em 2005, ocorreu a convite de Eduardo Henrique de Macedo, o Dudu, responsável por chamá-lo para trabalhar em Osasco dez anos antes. Desta vez, ele era diretor do handebol do Pinheiros e pôde oferecer melhores condições de trabalho ao dinamarquês.

O sucesso à frente do clube paulista chamou a atenção da Confederação Brasileira de Handebol (CBHb) e ele foi convidado para treinar o time feminino em 2009. À frente da Seleção, Morten foi se tornando cada vez mais brasileiro enquanto preparava a equipe para os Jogos Olímpicos de Londres 2012.

Morten conheceu o Brasil como turista nos anos 1990 (Foto: Acervo Pessoal)
Morten conheceu o Brasil como turista nos anos 1990 (Foto: Acervo Pessoal)

À paixão pela culinária, o futebol e o povo somou-se a por Fernanda, com quem o treinador se casou. O nascimento de Manuel aumentou a família Soubak, que mora em um apartamento a duas quadras do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo.

Um dos cômodos é o escritório, onde ele prepara as fases de treinamentos da Seleção e assiste aos jogos das atletas que atuam na Europa. Isso quando está em São Paulo, porque gosta de viajar para assistir a jogos e treinos de handebol pelo País. De times profissionais, universitários e juvenis.

“Sempre me perguntam o que eu gosto mais no Brasil. Se é a praia, a temperatura. Mas na verdade o que realmente me encanta é o povo porque em qualquer lugar que vou me sinto bem recebido, com sorrisos”, explica. “Isso é muito significativo e até impressionante quando conto para minha família na Dinamarca como é aqui”, acrescenta.

No Brasil, o técnico dinamarquês também consegue se manter em contato com o fator que o fez se apaixonar inicialmente pelo País: o futebol. Virou são-paulino, por recomendação de Dudu, depois de ser questionado dezenas de vezes para qual time torcia. Até então, achava que precisava apoiar apenas a Seleção.

Morten garante frequentar vez ou outra o estádio do Morumbi para torcer pelo São Paulo, mas sua relação mais profunda continua a ser com a equipe canarinho. Na foto de identificação de sua conta no Whatsapp, aparece sorridente ao lado de Zico, outro de seus heróis.

Morten escolheu foto ao lado de Zico para sua conta no Whatsapp (Foto: Reprodução)
Dinamarquês escolheu foto ao lado de Zico para sua conta no Whatsapp (Foto: Reprodução)

Quando tem saudades de seu país natal, visita o restaurante dinamarquês Clube Escandinavo, o único do tipo que conhece na cidade. Por sorte, fica a apenas dez minutos de carro de sua casa. Foi lá, inclusive, que ele acompanhou a vitória do Brasil sobre a Dinamarca por 3 a 2 na Copa do Mundo de 1998, em meio a conterrâneos e familiares brasileiros, em uma torcida mista.

As idas ao local são razoavelmente raras porque Morten considera a culinária nacional a melhor do mundo. “Acho que dá para perceber”, brinca apontando para a barriga. O treinador também diverte-se com a música brasileira e arrisca alguns passos de samba, o que faz suas comandadas rirem só de falar no assunto.

O trabalho do dinamarquês à frente da Seleção (de handebol) começou a ser notado em 2011, ano em que São Paulo recebeu o Campeonato Mundial da modalidade. Pela primeira vez na história, o time nacional alcançou as quartas de final – foi derrotado pela Espanha por um gol. Nas Olimpíadas de Londres 2012, caiu na mesma fase por dois tentos diante da Noruega, que conquistaria o ouro.

A redenção veio no ano seguinte no Mundial disputado na Sérvia, em que a Seleção Brasileira conquistou o inédito título da competição. Derrotou na final a equipe da casa em um ginásio lotado, mostrando que poderia brigar por medalha nos Jogos Olímpicos de 2016, quando fosse ela a anfitriã.

“Ele veio acreditando muito no nosso potencial. Ele queria chegar longe e apostou em nós, e nós queríamos chegar longe e apostamos nele. Juntou a fome à vontade de comer”, diz a capitã Dara, atleta que defendeu o BBM Bietigheim, da Alemanha, na última temporada. “Existe muito respeito, ele nos escuta e faz com que possamos dar nosso melhor. Ele consegue tirar o melhor de cada uma. Somando isso, conseguimos os êxitos”, explica.

A pivô paulista é capitã da equipe nacional já há cinco anos e exerce o cargo mesmo fora do período de competições e treinos. Uma vez por semana, conversa com Morten Soubak para trocar informações com o técnico e servir de porta-voz para as outas atletas.

O grupo não varia muito. Das 16 atletas convocadas para tentar defender o título do Brasil no Mundial de 2015, justamente na Dinamarca de Morten, dez estavam na conquista do ouro dois anos antes – o time foi eliminado nas quartas de final pela Romênia. Isso acontece porque o Brasil não tem estrutura para captar novos talentos, apesar do handebol ser uma das modalidades mais praticadas nas escolas. A última edição da Liga Nacional, por exemplo, teve seis equipes e três meses de duração.

Por isso as principais atletas brasileiras defendem equipes da Europa. Por três anos, muitas delas jogaram juntas graças a um convênio da CBHb com o clube austríaco Hypo No, que também teve Morten no comando. A ideia era garantir às atletas experiência nas principais competições do mundo e entrosamento quase permanente.

Técnico dinamarquês foi fundamental na evolução do handebol brasileiro (Foto: Wander Roberto/Photo&Graphia)
Técnico dinamarquês foi fundamental na evolução do handebol brasileiro (Foto: Wander Roberto/Photo&Graphia)

Com o fim da parceria, as jogadoras se espalharam pelas principais ligas mundiais, o que faz o treinador dinamarquês promover constantes fases de treinamento. Geralmente no Velho Continente, onde as atletas já estão e há estrutura desenvolvida da modalidade para auxiliar o trabalho.

Desde que o Campeonato Mundial feminino começou a ser disputado em 1957, só dois países de fora da Europa conquistaram o ouro. A Coreia do Sul em 1995. E o Brasil em 2013. O contato das jogadoras com o País durante as fases internacionais de treinamento vem com o fluente português, carregado de sotaque, falado por Morten.

“De vez em quando ele solta algum palavrão. É até engraçado ver o gringo falando nossos palavrões”, entrega a capitã Dara. O técnico dinamarquês aprendeu português fazendo aulas em sua primeira passagem profissional pelo Brasil. Quando voltou quase dez anos depois, tinha esquecido o idioma e não encontrou um professor tão bom quanto o da década anterior.

Resolveu aprender no dia a dia. Deu treinos no Pinheiros apenas na língua local e no início arrancou risadas dos atletas, mas desenvolveu boa compreensão do idioma. A ponto de fazer autocrítica a seu modo de falar, ainda considerando-o mais pobre do que o dos nativos –  a falta de vocabulário é o principal empecilho.

A pressão de jogar as Olimpíadas do Rio de Janeiro diante da torcida, que deve cobrar um bom resultado por causa do histórico recente da Seleção, já faz parte da conversa do técnico e de suas jogadoras desde 2014. A chance de fazer história, também. O handebol feminino integra o programa olímpico desde Montreal 1976 e a Coreia do Sul é o único país fora da Europa a conquistar o ouro – foi campeã em Seul 1988 (atuando em casa) e Barcelona 1992. Além disso, foi vice em Los Angeles 1984, Atlanta 1996 e Atenas 2004, além do terceiro lugar em Pequim 2008. A China, bronze em Los Angeles 1984, é o outro não europeu a subir ao pódio na história.

Morten Soubak (Foto:Sergio Barzaghi/Gazeta Press)
Morten Soubak tentará levar o Brasil a uma inédita medalha em sua casa (Foto:Sergio Barzaghi/Gazeta Press)

Para tentar compensar o retrospecto desfavorável, o treinador utiliza táticas motivacionais em suas conversas com as jogadoras. A preleção mais célebre ocorreu na final com a Sérvia no Mundial de 2013. Na ocasião, Morten entregou medalhas de prata a suas jogadoras para dizer que as adversárias eram favoritas. Com um agasalho vermelho, cor da camisa da Sérvia, o treinador segurava uma de ouro para simbolizar que as donas da casa tinham o título nas mãos.

A ideia deu certo. As jogadoras tomaram do técnico a medalha de ouro no vestiário e da Sérvia o título do Mundial na quadra. A estratégia ganhou admiradores, entre eles o argentino Rubén Magnano, campeão olímpico com seu país e treinador da Seleção Brasileira masculina de basquete.

“Nós não somos uma fábrica de talentos. Temos poucas jogadoras de altíssimo nível em comparação a Noruega, Suécia, Dinamarca, Rússia, Romênia e Coreia do Sul. Não temos a mesma estrutura e isso dificulta muito”, lamenta Morten antes de reparar que mais uma vez colocou-se como brasileiro. E isso é motivo de orgulho. “Nem percebo que falo nós, mas é o que sinto por dentro. No meu rosto está escrito Brasil. Eu falo em nome do Brasil”.



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