Técnico do Pérolas Negras vê no Haiti a essência perdida pelo futebol brasileiro - Gazeta Esportiva
Edoardo Ghirotto
São Paulo (SP)
01/08/2016 08:30:57
 

Está na simplicidade e na determinação do futebol haitiano a receita para o Brasil remodelar as categorias de base que tentarão tirar o País da sombra do 7 a 1. A avaliação é do mineiro Rafael Novaes, responsável pelo comando técnico do time Pérolas Negras há cinco anos. A equipe caribenha, que se despediu na quinta-feira da Copa São Paulo de Juniores, enviará jogadores para uma filial que disputará a terceira e última divisão do Campeonato Estadual do Rio de Janeiro. Sob o comando de Novaes, os atletas haitianos trabalharão para fazer história no esporte nacional e calar as manifestações xenófobas que tiveram como alvo imigrantes daquele país.

O técnico preparou o time que perdeu os três jogos disputados pela fase de grupos da Copinha, contra Juventus, América-MG e São Caetano. Mesmo com a fraca campanha no torneio amador, Novaes acredita que seus jogadores têm muito a ensinar às promessas do Brasil. “Eles mostraram que o brasileiro deve correr atrás do seu sonho”, disse.

“Nós vemos meninos brasileiros de 11 ou 12 anos anos brigando com o pai porque querem uma chuteira de marca. Às vezes os meninos de lá não têm nada. Eles jogam descalços, ficam com o pé cascudo e passam por cima até de pregos. Estamos perdendo essa infância no Brasil. Os meninos saíram das ruas por conta da violência e deixaram de jogar naqueles campos reduzidos. Lá no Haiti você ainda vai a lugares no meio da favela que têm terrenos onde só se joga bola. A técnica ainda é aprendida no futebol de rua. E o brasileiro saiu um pouco disso, ele tem buscado mais os aspectos figurativos. Ele quer um brinco igual ao do Neymar, ou mudar o cabelo. Isso é normal da idade, mas é preciso um pouco mais de investimento nas escolinhas e no futebol de rua. Seria importante para resgatar a individualidade brasileira que sempre encantou o mundo”, avalia Novaes.

O treinador estava no Haiti quando o Brasil foi goleado por 7 a 1 pela Alemanha, na semifinal da Copa do Mundo de 2014. Ele conta que a paixão demonstrada pelos haitianos naquela ocasião deveria servir de lição para os atletas e torcedores brasileiros. “O 7 a 1 foi um divisor de águas. Eu estava lá no Haiti e, mesmo sendo brasileiro, não chorei. Fiquei chateado, mas peguei muitos haitianos chorando. Veja a analogia do que é um haitiano chorando por causa do Brasil. Lá os caras são fanáticos. Quer aprendizado maior do que esse?”, afirma o comandante.

7 a 1 foi traumático para haitianos
As cenas de brasileiros chorando com o 7 a 1 para a Alemanha, no Mineirão, também levaram às lágrimas os haitianos que acompanhavam a partida pela televisão. Conhecidos por idolatrar a Seleção, os caribenhos se decepcionaram com o time comandado por Luiz Felipe Scolari. “Não consegui comer nem trabalhar naquele dia. Chorei muito, foi muito triste. Olhava para a escalação e ficava com dó, penso que nunca mais verei times como os de 1994 e 2002”, disse o pedreiro Gabriel Elie, 35, que assistia ao jogo do Pérolas Negras com o Juventus. Para Jean Maxeau Greffin, preparador físico da equipe haitiana, “a goleada foi um dia trágico para o futebol brasileiro e haitiano”. “Eu creio que Felipão não soube controlar os jovens jogadores da equipe”. Mas, segundo Jean Luiz Anel, jogador de 18 anos do Pérolas, o fiasco na Copa do Mundo não diminuiu o carinho pela Seleção. “Posso dizer que as pessoas chegam até a faltar do trabalho para assistir aos jogos”, disse o volante, que em 2004 correu atrás dos tanques da ONU que desfilaram por Porto Príncipe com os atletas brasileiros. Na ocasião, o time canarinho jogou um amistoso com a seleção local e venceu por 6 a 0.

Natural de Juiz de Fora, em Minas Gerais, Novaes estudou para ser técnico depois de deixar as categorias de base do Fluminense. O convite para comandar o Pérolas Negras foi feito pela organização social Viva Rio, que investiu na equipe e construiu um moderno centro de treinamentos na periferia da capital Porto Príncipe. Ele desembarcou no Haiti cerca de um ano após o terremoto que destruiu o país e provocou a morte de pelo menos 250.000 pessoas em 2010. O futebol, segundo o treinador, se tornou “tudo” para os jovens.

“Falo que eles podem ser os primeiros a jogar profissionalmente em um clube grande do Brasil. Falo para fazerem história. Não custa sonhar. Não imaginávamos que participaríamos da Copinha e estamos aqui”, afirmou. “A melhor coisa do mundo é ver olheiros procurando os meninos depois das partidas. E isso é interessante por eles serem todos haitianos. O Haiti não é conhecido pelo futebol, mas pelas catástrofes. E isso às vezes embaça um pouco o lado positivo do país. Eu morei lá por quatro anos e posso dizer que conheci pessoas e lugares maravilhosos”.

Para chamar a atenção de clubes brasileiros, parte do grupo de haitianos será encaminhada para a filial do Pérolas Negras sediada em Paty do Alferes, localizada a aproximadamente 100 quilômetros do Rio de Janeiro. Como são permitidos apenas cinco estrangeiros por jogo no futebol nacional, os meninos haitianos trabalharão ao lado de atletas locais no Estadual. O comando técnico do time ficará a cargo do próprio Novaes, enquanto as contratações de brasileiros serão supervisionadas por Rubem Cesar, diretor executivo do Viva Rio.

Com o Pérolas Negras sediado no Brasil, Novaes espera que os jogadores sejam vistos como exemplos na luta contra as manifestações racistas e xenófobas dirigidas aos imigrantes do país caribenho. No ano passado, vídeos com ofensas aos haitianos foram divulgados na internet e um atentado a tiros deixou seis pessoas feridas no centro de São Paulo. “Estamos aqui para mostrar que ninguém está vindo tomar o lugar de ninguém. Existe espaço para todos. A pessoa está vindo correr atrás de um sonho aqui. Todo mundo tem sonho, por que eles não podem ter um? Eles são iguais à gente, não existe nenhuma diferença”, afirmou. “A oportunidade está aí para todos. Eles terão a deles e correrão atrás”.

O treinador explicou que os jovens já estavam cientes dos crimes de racismo cometidos no Brasil por terem familiares no País. Não houve, no entanto, um trabalho específico para ensinar aos jogadores como proceder em situações dessa natureza. Segundo Novaes, a comissão técnica priorizou um acompanhamento psicológico para os atletas haitianos não serem enganados por propostas de dinheiro fácil no futebol nacional. Como muitos desejam ajudar parentes que ficaram no Haiti, a diretoria do Pérolas Negras se preocupa com o assédio de empresários mal intencionados.

“Tentamos explicar qual é o melhor caminho. Falamos que eles devem seguir uma reta, mas às vezes alguns vão querer desviar. Explicamos no dia a dia que eles não podem confiar em todo mundo e apontamos os caminhos. Às vezes vemos situações no Haiti em que pessoas tentam se aproveitar dessa fragilidade deles, mas hoje eles têm essa confiança no nosso trabalho. Claro que cada um quer seguir e trilhar seu próprio caminho, mas colocamos na cabeça deles que se o coletivo não funcionar, o individual não aparece. E eles compraram essa ideia. Às vezes pecaremos em alguns aspectos, o futebol é assim. Mas a nossa filosofia de trabalho é essa”. concluiu o treinador.

Imigrantes haitianos em São Paulo
Não é só através do futebol que os imigrantes haitianos têm buscado uma qualidade de vida melhor. Milhares chegaram ao Brasil nos últimos anos em busca de um emprego que lhes permitisse enviar dinheiro aos familiares que seguem no país caribenho. Em outubro do ano passado, o governo federal autorizou a obtenção de visto permanente de residência para mais de 40 mil haitianos que estavam em situação irregular no País. Na cidade de São Paulo, a Paróquia Nossa Senhora da Paz, na Baixada do Glicério, é referência no acolhimento de imigrantes e refugiados. A Missão Paz, como é conhecido o espaço, aceita doações materiais e financeiras e oferece oportunidades de trabalho voluntário. Para mais informações, acesse: http://www.missaonspaz.org/.



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